segunda-feira, 1 de maio de 2023

O SONHO DE MAMA, de John Fante



Mama Andrilli estava sentada à mesa da cozinha, preparando o almoço. O sol quente e branco do Vale do Sacramento entrava pelas janelas voltadas para o sul — enormes cascatas de raios solares, que se derramavam sobre o piso de linóleo vermelho onde dormiam os gatos de papa, Philomina e Constanza. Eram dois machos, mas papa achava que os gatos só tinham um sexo.

Em menos de uma hora ele voltaria do trabalho. Estava agora com setenta anos, e pior que nunca. A não ser pelo enfraquecimento da visão, continuava a assentar tijolos e pedras com a velocidade de um jovem pedreiro. Mas os anos — mesmo que ele blasfemasse o contrário — haviam cobrado seu preço e, àquela altura, mama deixara para trás qualquer esperança de uma velhice tranquila.

Quando uma pessoa chega aos setenta, você pensa que ela ficará mais dócil. Mas não: os últimos dez anos, com os três filhos casados e morando sozinhos, foram os piores. Papa nunca mais amoleceria e se tornaria mais amável. Até seu último respiro, continuaria a se enfurecer e a gritar, com mama sempre ali, paciente até o fim. Fora assim por quarenta anos e agora mama tinha sessenta e oito, cabelos brancos e uma dor agonizante que às vezes tornava suas mãos murchas. Papa ainda tinha o bigode ruivo e só alguns poucos fios grisalhos nas têmporas. Ainda batia no peito com golpes furiosos quando suplicava a Deus que o abatesse e o levasse daquele vale de labuta. Anos atrás, quando era jovem e forte, mama se reconfortava ao pensar que, assim que os filhos crescessem, poderia deixar seu marido barulhento. Aquela ideia era como uma minúscula joia, que guardava em segredo. Mas agora estava perdida, largada em algum bule do passado, e mama a esquecera.

Sobre a mesa havia uma tigela de pimentões, verdes e bojudos. Mama os cortava em tiras para fritar e pensava novamente no sonho da noite anterior. Papa dormira mal, com os rins a lhe atormentar, fazendo-o levantar da cama meia dúzia de vezes.

Como sempre, culpou mama. Faltavam pimentões na sua dieta. Papa era uma espécie de curandeiro primitivo, com alguns conceitos italianos antigos sobre os alimentos. Você comia peixe por causa do cérebro, queijo para os dentes, berinjela para o sangue, feijões para o intestino, pão para os músculos, chicória para os nervos, alho para purificar, azeite de oliva para dar força e pimentões para os rins. Sem isso, o sujeito logo entrava em decadência.

Por uma semana, ele exigiu pimentões sem ser atendido. Aquele era o resultado. Quando desabou seu corpo cansado ao lado dela, acusou-a de tentar destruí-lo, privando-o deliberadamente de pimentões para que seus rins adoecessem, um mal que acometera seu primo Rocco aos trinta e cinco anos de idade, encerrando a carreira do homem que produzia o melhor vinho zinfandel da Califórnia.

O sonho veio em seguida, produto de um sono interrompido, lúcida em meio aos resmungos do marido. Nele, mama se viu nua no acostamento da Highway 99 e um carro que se aproximava a toda velocidade. Nick, o filho mais velho, dirigia o veículo. No banco ao lado estava sua esposa, Hild. Ela ria histericamente ao assoar o nariz num pedaço grande de renda. Apesar da nudez e de toda a vergonha, mama não conseguia deixar de notar, horrorizada, que a renda era uma sobrepeliz de coroinha. Hild jogou a sobrepeliz pela janela do carro, Nick buzinou alucinadamente e a veste voou até chegar a mama. Naquele instante, o automóvel despencou de um precipício e Nick gritou: — Mama, mama.

Assustada e lembrando repentinamente sua nudez, mama fugiu, cobrindo-se com a sobrepeliz. Suas costas permaneciam expostas e reluziam ao luar, enquanto ela corria por um campo. Em pouco tempo chegou a um cemitério, onde um serviço funerário estava em andamento. Dentro do caixão que descia para a terra, viu o filho Nick. O caixão estava aberto, mas Nick não estava morto. Estava ajoelhado diante de uma máquina de escrever e seus dedos digitavam uma mensagem num papel amarelo da Western Union. A mensagem dizia: Não querem me dar a unção final. Mama começou a gritar por um padre e as pessoas de luto em torno do túmulo viraram-se, irritados, para olhar para ela. Uma vez mais ela se lembrou da nudez e escapou, envergonhada, com as costas brilhando como um diamante à luz da lua. Ali acabava o sonho.

Mama cortou o último dos pimentões e refletiu sobre o significado do sonho. Era uma mulher solitária e seus sonhos a fascinavam. Ela não acreditava em sonhos, pois a igreja a proibia, mas tinha um desejo de acreditar e ficava maravilhada com seus encantos.

Ela compreendera a parte de Nick diante da máquina de escrever, pois o filho era escritor. A sobrepeliz representava a juventude de Nick, quando foi coroinha. A atitude repugnante e sacrílega da nora assoando o nariz na veste de renda simbolizava o fato de Nick ter se casado com uma moça protestante. Já quanto ao funeral, mama não ousava fazer qualquer especulação. Podia significar que Nick havia morrido em Los Angeles, assim como outros sonhos envolvendo caixões pressagiaram as mortes de sua mãe e de seu pai, do irmão Gino e da irmã Cathy. O telegrama, obviamente, era uma notícia ruim. Mama sempre detestou sonhar com telegramas. Mas a parte mais confusa do sonho era sua própria nudez. Fazia dez anos que mama tinha sonhos onde caminhava pelos campos sem um só pedaço de pano para cobri-la, o que a deixava completamente estupefata. Por um tempo, achou que se tratava de uma gripe que estava por vir. Fortaleceu-se com aspirinas e passou a vestir um suéter a mais, mas a gripe jamais se materializava e ela acabava ainda mais confusa.

Os pimentões estavam todos cortados, prontos para serem fritos. Mama colocou a panela de Cathy sobre o fogareiro e acendeu a chama. A panela de Cathy não era uma panela, nem tampouco era de Cathy. Tratava-se de uma pesada frigideira de ferro que a irmã de mama, Cathy, lhe dera de presente de casamento quarenta anos atrás e ainda assim, com o passar dos anos, continuou a ser conhecida como a panela de Cathy. A casinha de mama era cheia de coisas descritas de tal maneira. Os anos de sacrifício na vida de mama Andrilli tinham removido do seu caráter qualquer sentido de posse. Vivendo com ela, tinha-se a falsa impressão de que tudo lhe fora emprestado.

Na verdade, todos os objetos da casa eram dela. Muitos foram presentes dos filhos, irmãos e irmãs. Não havia qualquer tipo de vínculo adicional a esses presentes, todos pertenciam exclusivamente a ela, mas mama Andrilli há muito perdera qualquer sentido de posse. Assim sendo, o bangalô de três cômodos abrigava o rádio de Nick, os lençóis de Stella, as toalhas de Mike, os abajures de Ralph, a cafeteira de Rosie, o vestido de Tony, os sapatos de Bettina e o roupão de Vito. Havia ainda a maleta de Mike, o jogo de mesa de Nettie, os pratos de Joe e os tapetes de Angelo. Uma omissão notável era a de qualquer objeto pertencente a papa, exceto, é claro, o café da manhã de papa, as roupas sujas de papa, o picadinho de papa. Mas estas não eram propriedades concretas. Eram coisas que mama tinha de fazer.

E agora, os pimentões de papa. Tinham de ser preparados com uma precisão solene. Ainda que mama fosse a única a cozinhar e tivesse excelente domínio da culinária napolitana, papa fizera com que ela mudasse suas técnicas para que melhor se adaptassem a seus gostos com origem nos Abruzos. A diferença era uma questão de quantidade. Quando mama usava um dente de alho, ele queria dois. Que ela cortava agora, jogando os pedacinhos no azeite de oliva quente dentro da panela de Cathy. Acrescentou manjericão e alecrim, temperando o azeite com extrema atenção. Passados quarenta anos, papa ainda experimentava a comida preparada pela mulher com enorme suspeita, desconfiado de que ela pudesse misturar algum ingrediente intragável que o deixasse de cama.

Um chiado enfurecido veio da panela quando ela jogou os pimentões no azeite quente. Protegendo o rosto, viu os gatos se levantarem, arqueando as costas e sibilando como serpentes. Philomina e Constanza sabiam que mama vinha perdendo a audição e sempre assumiam aquela posição hostil para avisá-la de que havia alguém na porta da frente.

Era o homem da Western Union. Era tão agourento quanto o anjo da morte, e ela o encarou com o rosto subitamente pálido quando disse: — Telegrama para o sr. Andrilli.

Ele abriu a tela e empurrou o envelope amarelo na direção dela, que se recusou a aceitá-lo. Seu braço era incapaz de alcançar a missiva, tão simbólica da morte em família. A lembrança de todos os telegramas passados bloqueava os reflexos do braço e ela ficou ali, parada, com os olhos esbugalhados, enquanto os gatos assustados se esfregavam em suas pernas e sibilavam de ódio contra o homem na varanda. Até que finalmente ele jogou o telegrama nas mãos dela que, enfraquecida, o aceitou.

Dava para ver alguns outros telegramas dentro do chapéu e, enquanto o homem se afastava, mama pensou em quantos mais além de Nick tinham subitamente encontrado seu Deus. Nick! Seu Nicola, seu primogênito. Agora ela sabia o que significava o sonho da noite anterior. Seu filho estava morto. Ela se arrastou até a mesa da cozinha e começou a chorar, deixando escapar um pranto profundo que só a morte pode provocar. O telegrama amassado caiu como uma bola no chão e os gatos começaram a brincar com ele.

Trinta minutos depois, papa Andrilli entrou no quintal pelo beco dos fundos e sentiu o cheiro de pimentões queimados. Vestia um chapéu de feltro castigado, uma camisa bege e calças. Estava todo sujo de argamassa cinza, tendo apenas descido do andaime após passar a manhã assentando tijolos. Suas narinas se dilataram diante daquele cheiro. Sentindo já o gosto do almoço queimado, bateu o portão com força e subiu irritado os degraus da varanda.

A cozinha estava tomada por uma nuvem negra. À mesa, sua mulher chorava sem dar importância à fumaça sufocante. Ele rapidamente desligou a chama onde estava a frigideira. Os pimentões estavam pretos e murchos, mas a aparência trágica do rosto de mama Andrilli fez sua raiva arrefecer.

— O que aconteceu? — perguntou ele.

O queixo dela tremia e a torrente que jorrava de seus olhos o deixou assustado. Seus próprios olhos começaram a arder, enquanto se obrigava a manter a calma e pegava a cadeira diante dela. Os dois estavam ali, sentados em meio àquela densa cortina de fumaça, e ele retorcia os dedos grossos e calejados, preparando-se para o pior.

— O que foi, moglie mia? — perguntou outra vez. — Conte ao seu marido qual é o problema.

— Nosso Nicola.

Soava como algo terrível. Quando tinha algum problema era chamado de Nicola, se não era simplesmente Nick.

— O que ele aprontou agora?

— O telegrama. Ele morreu.

Papa procurou pelo telegrama, mas sua visão estava turva de lágrimas, provocadas pelo choque das palavras ditas pela mulher. O papel amassado rolava de um lado para o outro pelo chão liso, perseguido pelos gatos. Ele se levantou para apanhá-lo, mas não tinha coragem de ler. Tudo o que podia fazer era permanecer sentado diante da mulher, entorpecido pela dor que lhe acometia a alma. Diante de uma nova explosão de choro de mama, porém, ele projetou o queixo para frente e decidiu ser forte.

Disse uma vez mais a si mesmo que chorar era coisa de mulher, mas a dor em seu peito era enorme quando abriu as janelas para deixar a fumaça sair. Como um objeto de mau agouro, o telegrama ia de um lado para o outro da cozinha, enquanto os gatos o agarravam e rosnavam um para o outro. Mama Andrilli tremia, com o rosto enterrado nas mãos. Entristecido, ele deu as costas para ela, tentando confortá-la. Mas Italo Andrilli não tinha qualquer familiaridade com as emoções nem tampouco havia alguma vez demonstrado sensibilidade.

Envergonhado por sua falta de tato, ele abriu a porta da geladeira e pegou uma garrafa de vinho tinto. Bebeu apressado e desesperado, sentindo o choque do vinho frio atravessar a garganta enquanto lembrava do rosto do filho, de suas mãos e pés. Não existia outra pessoa como Nick, morto antes da hora, seu primogênito e filho favorito. Havia até mesmo um toque de genialidade em Nick, o escritor, com seus livros, suas ideias malucas e seu jeito irresponsável de gastar dinheiro. Papa Andrilli nem sempre aprovara tudo que saía nos livros do filho, como os episódios sobre a própria família e os amigos. O tema de um dos livros de Nick o deixara enfurecido, uma história de infidelidade envolvendo um pedreiro italiano e sua mulher. Apesar de haver uma parcela considerável de verdade na narrativa, ele rasgou o livro ao meio e o queimou, pensando até em processar o filho. Mas aquilo tudo ficara no passado; tudo estava perdoado agora, perdoado e esquecido. Fosse por algo bom ou ruim, nem todos tinham o privilégio de serem imortalizados em livros por seus filhos.

Mas a morte de Nick acabava de vez com uma das grandes vontades que Italo Andrilli tinha para seus últimos dias. Relembrando-a, papa foi à sua mesa na sala de estar e pegou algumas plantas de construção. Tinha feito esses rascunhos a lápis em rolos de papel de desenho. Ele colocou a garrafa de vinho sobre a mesa e desenrolou as plantas. Ali, desenhado em linhas negras nítidas, estava o projeto que fizera para uma casa para Nick e a mulher. Trabalhara naquela planta durante semanas, quando tinha tempo, esperando mostrá-la ao filho quando voltasse a Sacramento.

Papa examinou os papéis e chorou amargurado, ouvindo os gemidos lamuriosos da mulher vindo da cozinha. Emborcando mais vinho, papa chorava desavergonhadamente. Mas sua dor estava impregnada de uma indignação cada vez maior. Não era certo que Nick morresse tão jovem. Ninguém deveria ser levado aos trinta e sete anos, nem mesmo uma pessoa má, e Nick era bom. Com os punhos levantados para os céus, papa gritou para seu Deus e exigiu uma explicação para aquela terrível tragédia. Os dedos sujos de argamassa agarraram os esboços, rasgando-os em pedaços enquanto chorava copiosamente.

Do beco, ouviu-se o chacoalhar e o ronco de um motor. Apenas um carro em Sacramento fazia aquele barulho: o de seu filho, Tony.

Dois anos mais jovem que Nick, Tony tinha um temperamento incendiário como seus cabelos ruivos. Também trabalhava como pedreiro, depois de um período de aprendizado com o pai. Os dois trabalhavam juntos, numa sociedade tempestuosa, na qual não conseguiam concordar nem sobre as questões mais insignificantes. Ao contrário de Nick ou Vito, Tony enfrentava papa de igual para igual em discussões que muitas vezes acabavam em bordoadas. Apesar de seus setenta anos, papa ainda tinha forças para enfrentar um filho com metade da sua idade, mas não sem um porrete ou uma espátula para se defender.

Tony se casara aos dezessete anos e logo depois pedira o divórcio. Aquilo virou um padrão em sua vida: estava agora com sua quarta mulher. Era um homem de um ciúme intenso, cheio de insegurança em relação às esposas. Trabalhava muito e jamais ficava satisfeito em fazer as coisas de qualquer maneira. Vivia sempre precisando de dinheiro, tendo uma integridade incorrigível num ramo em que a rapidez e os embustes eram as medidas do sucesso.

Tony e a atual mulher viviam num hotel ali perto, uma vez que ele sempre matutava um jeito de estar o mais próximo possível da cozinha da mãe. Sua vontade de comer os pratos italianos com os quais crescera o levavam à casa para, no mínimo, uma refeição por dia, mas mama Andrilli jamais sabia quando apareceria e ele ficava furioso quando lhe perguntavam.

Quando Tony abriu a porta da cozinha, mama se levantou soltando um grito tão dolorido que o fez parar na metade do caminho. Ela se jogou na direção dele, com os cabelos soltos das tranças e o rosto inchado de tanto chorar. Agarrou o filho com uma força descomunal, passando as mãos em seu pescoço, enquanto a boca torturada pregava beijos em sua garganta e depois nas mãos, ao mesmo tempo em que ele tentava se desvencilhar para saber o motivo de toda aquela histeria. Gritando e escorregando no piso de linóleo encerado, foi necessária toda sua força para que ele se desprendesse das mãos que lhe agarravam a nuca.

— O que aconteceu? — gritou ele. Sentiu então o cheiro dos pimentões queimados e viu a cozinha ainda coberta de fumaça. — Pelo amor de Deus, o que está acontecendo aqui?

De uma hora para outra, mama se acalmou e se apoiou no braço do filho, que a levou de volta à cadeira. Ele soprava o rosto dela e a abanava com as mãos agitadas.

Ela estava de olhos fechados, com o queixo sobre o peito.

— Mama — suplicou. — Oh, mama. Por favor.

Ela abriu os olhos e recomeçou a chorar. Papa veio cambaleando da sala de estar. Com os olhos vermelhos, apoiou-se na porta com a garrafa de vinho quase vazia pendendo da mão.

— Ah, então é isso — concluiu Tony. Atravessou a cozinha num instante e agarrou o colarinho de papa, sacudindo-o. — O que você fez com a minha mãe? — vociferou. — Seu velho bêbado.

Aquilo magoou papa. Ele cobriu os olhos e choramingou. Tony o soltou. Perplexo, olhou de um para o outro. Aquela confusão toda era mais do que podia suportar. Prendeu o polegar com os dentes e socou a própria cabeça com força, depois a mandíbula, depois as têmporas, disparando golpes que deixaram seu rosto avermelhado. Quando se acalmou, caiu de joelhos diante de mama Andrilli. Acariciou a mãe com leveza.

— Mama, me diga. O que aconteceu?

Ela se ajeitou na cadeira, ofegante, incapaz de dizer uma só palavra.

— É Nick — interveio papa. — Seu irmão.

— Ele está doente?

Mama se jogou sobre a mesa e começou a chorar novamente. Os lábios de papa tremiam, mas ele não conseguia dizer mais nada. Tony esperou até que mama retomasse o controle. Ela cruzou os braços sobre o peito, segurando os ombros com as mãos, e falou num tom cuidadoso, com os olhos voltados para o céu.

— Ontem à noite eu tive um sonho — começou ela. — Ali estava o meu Nick, dentro do caixão, com sua máquina de escrever…

Tony prontamente se colocou de pé, mordeu o polegar e começou a se estapear outra vez.

— Sonhos! — gritou. — Sempre sonhos. O que me importam seus sonhos? Quero saber o que aconteceu. Nick está bem? Está vivo, morto, na cadeia ou o quê?

Mas mama continuou falando no mesmo tom pesaroso. — E então o telegrama chegou.

— Telegrama? Que telegrama?

Olharam ao redor. O telegrama não estava à vista. Tony se pôs de joelhos a procurar debaixo do fogão. Um dos gatos estava brincando com o telegrama amassado. Tony jogou o animal de lado e pegou a bola amarela.

— Ué — disse ele —, nem o abriram ainda?

— Não abra, Tony — implorou mama. — Oh, por Deus que está lá no Céu, não leia!

Tony rasgou o envelope e leu a mensagem em voz alta. Leu com consternação, raiva e horror.

Dizia: Chegando amanhã. Preparem ravióli. Amor e beijos. Nick.

Por um instante, todos ficaram em silêncio. Depois, mama soltou um gemido longo e lancinante. Jogou os braços e a cabeça para trás e deixou o som vir do fundo da garganta. Até os gatos se assustaram, arqueando as costas.

— Louvado seja Deus! — gritou mama. — Muito obrigada, ó Nosso Senhor Abençoado! por esse milagre dos Céus.

Papa suspirou e sorriu, contente, mas a aversão de Tony não podia ser expressa em palavras. Exausto, desabou numa cadeira e começou a puxar metodicamente os cabelos ruivos. O rosto de mama brilhava de alegria, mas ainda estava inchado de tanto chorar. Vendo-a daquele jeito, Tony desviou o olhar com uma expressão de náusea e dor.

— Faz alguma coisa para eu comer — disse ele.

Papa Andrilli esvaziou a garrafa de vinho e examinou o telegrama, espremendo os olhos por causa do brilho do sol. O sangue lhe voltou às bochechas e ao nariz e a raiva foi controlada.

— Ele é louco — disse papa, amassando o telegrama. — Nunca teve cabeça.

— Qual seu problema agora? — perguntou Tony.

— Ele — disse papa, sacudindo o telegrama. — Escrevendo esses livros, esses telegramas, fazendo as pessoas morrerem de susto. Quem ele pensa que é para enviar um telegrama?

— E por que não?

Papa foi até a janela e olhou para a figueira, onde os jovens frutos eram menores que bolas de gude. O vinho fizera efeito com mais rapidez por causa do calor.

Balançou a cabeça, confuso.

— O que está acontecendo com o mundo? — perguntou à figueira. — Telegramas, guerra, hambúrgueres que custam dois dólares o quilo. Quando eu era um menino, trabalhava por uma lira por semana. Nunca recebi qualquer telegrama naqueles tempos. Também nunca mandei nenhum. Uma lira por semana, era o que eu recebia.

— Na última vez que disse isso, era uma lira por dia — disse Tony.

— Vamos beber um copo de vinho — disse papa.

Ele abriu o alçapão próximo ao fogão e o ar frio e bolorento vindo do porão entrou pela cozinha. Ele desceu os degraus e Tony ouviu o vinho gorgolejar da torneira. Num instante, papa estava de volta e as gotas rubis do vinho reluziam à luz do sol.

Beberam em silêncio, pai e filho. Mama jogou novas tiras de pimentão na panela de Cathy e o aroma de alho, alecrim e azeite de oliva impregnou a cozinha. Papa pegou uma bola de queijo de cabra da geladeira e cortou grossas fatias de pão.

Sentados, beberam em silêncio, pensando em Nick.



(A grande fome; tradução de Roberto Muggiati)


(Ilustração: Édouard Manet - the lunche on the grass)

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