quarta-feira, 31 de maio de 2023

NA TRILHA DE MACUNAÍMA: A DIVINA PREGUIÇA, de Celio Turino (*)


A ideia de preguiça em Mário de Andrade é anterior a Macunaíma e foi sedimentada em um artigo publicado em 3 de setembro de 1918, no jornal A Gazeta, ainda em sua juventude. Podemos perceber claramente que vários conceitos desenvolvidos em Macunaíma já estavam perfeitamente elaborados no artigo A Divina Preguiça.

Neste artigo notamos uma incrível proximidade do pensamento de Mário de Andrade com o Manifesto de Paul Lafargue. Não há registro de que ele tenha tomado contado com O direito à preguiça, mas certamente ambos se inscrevem na mesma direção e devem figurar, junto com O direito ao Ócio, de Bertrand Russel, como os grandes clássicos do tema, herdeiros do mais refinado pensamento grego.

A Divina Preguiça aponta dialeticamente a necessidade de se rever conceitos e processos acerca do desencadeamento da civilização:

Aqueles que asseveram ter a humanidade eras de progresso, de estacionamento e eras em que a civilização volta atrás, laboram num ligeiro desvio de concepção e, numa comprehensão menos exacta de synonymia das palavras. Na passagem das civilizações, como na própria vida, tudo é marchar, buscando um horizonte deanteiro inattingível. A destruição é, como a criação, uma necessidade dessa marcha que impulsiona os homens.

Note-se que a rediscussão destes conceitos de progresso é reforçada pelo impacto da Primeira Guerra Mundial em um processo de matança e barbárie dantesco:

Não se poderá dizer, sem receios de pesado errar, que a civilização perlongasse (antes da guerra) esse caminho que vai ter à luz. Digo antes da guerra, porque é certo, que o pampeiro das metralhas, o holocausto dos homens moços pela Grande Causa varreram o futuro dos bulcões que os o ensombravam; e a humanidade que sobreviver sentirá mais incentivos no desejo, mais enthusiasmos na inspiração.

Como um dos efeitos da guerra, ele imagina que talvez ela tenha o poder de reabrir conceitos, sendo o ''Sezamo, abre-te!'', que desencadearia uma série de ideias novas e libertadoras. Entre as velhas ideias a serem combatidas situam-se os conceitos pré-estabelecidos de trabalho e preguiça. Seu artigo contesta um outro, de um famoso articulista e acadêmico brasileiro, Austragésilo de Athaíde, que se refere à preguiça como sendo uma patologia a ser combatida, curada. O título do artigo é a Preguiça Patológica e assim Mário de Andrade o contesta:

Não me assaltou com lêl-as, a garganta dos deuses de Homero, mas confesso ter-me encrespado os lábios, o sorriso das figuras de Da Vinci. Mais uma illusão que nos querem tirar! A preguiça, que para uns fora o dom dos deuses e para outros peccado mortal, eil-a reduzida a um morbo de nova espécie! Não poderíamos mais gosar de nossos lazeres, agradecendo-os aos deuses, nem inculpar as nossas acedias preguiçosas, só remíveis no gradil dos confissionários!... Não; nem gosar com aquelles, nem sofrer com estas: a preguiça não era nem regalo nem culpa, resumia-se a uma doença! Todos os preguiçosos seriam outros tantos doentes!...

A visão criminalizadora da preguiça, que condena o próprio lazer como desvio do espírito, estava inserida no contexto higienista da época e teve ampla difusão com o personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato (posteriormente Monteiro Lobato reviu a caracterização dada a seu personagem síntese). Mário de Andrade apresentou a preguiça com um outro significado:

Nem gosar nem sofrer! Não se lhe poderia increpar a mandranice, nem exaltar a felicidade dos ócios, todos sofriam o contágio do mesmo morbo! E a uma receita de doutor e dois meses de estação de águas, sarada e firme, a humanidade voltaria ao labutar diuturno da vida!

Aproximando-se de Lafargue (mesmo sem conhecê-lo), ele deixa claro que a humanidade nem sempre teve a mesma opinião sobre a preguiça, demonstrando que o seu significado mudou de acordo com o tempo, as necessidades e valores decorrentes de cada momento histórico:

A preguiça teve sempre conforme o sentido em que foi tomada, modulações varias. Cada época e cada religião, acceitando e comprehendendo a preguiça segundo seu modo de ver, decantara-a ou repulsara. Na Grécia e na Roma de apogeus incontrastáveis, apesar de terem sido estádios de continua actividade, onde mais se accentuava o prurido dos ideaes, ancias de perfeição, ella foi apreciada e divinizada quase. Tempos de formoso trabalho, onde as saúdes abundavam de selva, onde as intelligencias eram mais geniais e as riquezas mais plethoricas, foi-lhes dado imprimir a quase todas as artes plásticas ou literárias o impulso que fez com que ellas atingissem a portentosa serenidade na força e a suprema belleza na verdade. A arte que – como explana Reinach – é mais ou menos um luxo, differenciando-se, entre outros, por esse caracter especial das outras manifestações da actividade humana, não poderia desenvolver-se e alcançar o seu fastigio sinão em meio das riquezas que prestigiaram as collinas da Hellade e os serros mansos de Roma. A arte nasceu porventura de um bocejo sublime assim como o sentimento do beijo deve ter surgido duma contemplação ociosa da natureza. O beijo e a arte são a descendência que perpetua e enaltece o ócio.; e os próprios philosophos hellenicos, nas suas preguiças illuminadas, esmagando ao peso das sandálias a areia especular dos seus jardins, gostavam de repousar os olhos nos mármores intemeratos no verde polychromico das relvas e vergeis, na palpitação das carnações sadias.

''Preguiça mãe das artes e das virtudes nobres!'' disse Lafargue em seu manifesto. ''A arte nasceu de um bocejo sublime...'' disse o nosso poeta ao defender as preguiças iluminadas dos filósofos gregos.  E também o beijo, surgido de uma contemplação ociosa da natureza. Mário de Andrade também se aproxima de Max Weber ao identificar no cristianismo o momento de virada deste conceito, quando a preguiça transforma-se em pecado:

O christianismo, comprehendendo mais humana e verdadeiramente a vida, fez da preguiça um peccado.... Mas já não é a mesma preguiça. O vício que o christianismo repulsa é o conclue pelo abandono das luctas e das porfias a que nunca refugiram os governados por Péricles. O preguiçoso que o christianismo indigita é o que se avilta na inércia lânguida - porta aberta aos pecados dos mortaes.

Neste momento ele deixa claro a distinção entre um sentido de preguiça como inércia e a preguiça criativa:

O preguiçoso do paganismo é como Titero de Virgílio que, derreado á sombra das balseiras, olhava as suas vaccas pascerem longe, tangendo na  avena ruda; ou é como o calmo Petrônio, que vagava pelas ruas de Roma, entrando os mercados onde expunham virgens nuas , ouvindo as intrigas no Fórum, descobrindo as ambições dos Eumólpios, para legar aos homens do porvir as paginas vivazes do Satiricon,a chronica mais perfeita dos romanos da decadência.

''Primeiras sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância'', assim como o antropólogo M. Sahlins apontou, Mário de Andrade também percebeu na preguiça a base definidora da identidade dos povos nativos:

Para os nossos indígenas as almas libertadas do envolucro da carne, iriam também repousar, lá do outro lado dos Andes, num ócio gigantesco. É a mesma concepção do Eldorado, de Poe, existente além do Valle da Sombra, que inspirou Baudelaire, Antonio Nobre e o nosso Alberto, nos alexandrinos lapidares de ''Longe...mais longe ainda!''.

Estes conceitos foram aprofundados dez anos depois, em Macunaíma e a preguiça foi apresentada uma das matrizes do caráter nacional, uma preguiça criativa, gingada e inovadora. Mas, definitivamente, foi neste artigo que Mário de Andrade consolidou a sua convicção da importância de travar um embate com essa noção moralizadora e controladora do tempo (que deveria ser) livre das pessoas. O ócio é apresentado em seu contrário, como um elemento libertário e de recusa da dominação onde o riso, a brincadeira e o lazer são entendidos como fundamentais para a emancipação humana:

Mas eis que os paychiatras querem trazer á preguiça mais essa qualificação de doentia; redimindo os ócios culposos, vulgarizando os ócios salutares!... Revoltemo-nos! A preguiça não pode ser reduzida a uma doença! Si algumas vezes é o resultado passageiro duma lesão, não poderá jamais misturar todos os preguiçosos num só caso de observação clínica!

Mil vezes não! Forçoso é continuar para que o idealismo floresça e as illusões fecundem, a castigar os que se aviltam no ''far niente'' burguez e vicioso e a exaltar os que comprehenderam e sublimaram as Artes, no convívio da divina Preguiça!

E todo esse sofisticado pensamento de Mário de Andrade é sintetizado em uma frase magistral de seu companheiro de modernismo, Oswald de Andrade, registrada no Manifesto Antropofágico: ''A alegria é a prova dos nove''

Que o movimento pela redução da jornada de trabalho, que hora se inicia, pratique sempre a ''prova dos nove'' da antropofagia criativa dos brasileiros. Um bom ''trabalho'' a todas e todos que se engajam nesta luta que, no fundo, é pela emancipação humana.

 

(Na trilha de Macunaíma: Ócio e trabalho na cidade)

 

(Ilustração: Grande Ohelo no filme de Joaquim Pedro de Andrade – Macunaíma) 


(*) O texto original de Mário de Andrade está publicado neste blog.

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