domingo, 7 de maio de 2023
DOIS RETRATOS DE JOHN BREWSTER, de Teju Cole
Entrei no parque na rua 72 e comecei a caminhar para o sul, em Sheep Meadow. O vento ficou mais forte e a água se derramou sobre o solo encharcado em agulhas finas e incessantes, encobrindo as tílias, os olmos e as macieiras silvestres. A força da chuva toldava minha visão, um fenômeno que eu já havia notado apenas em tempestades de neve, quando a nevasca apagava os mais óbvios sinais da época, deixando a pessoa impossibilitada de identificar em que século estava. A torrente havia revestido o parque com um sentimento ancestral, como se estivesse chegando um dilúvio de fim de mundo e, naquela hora, Manhattan pareceu exatamente como devia ter sido na década de 1920 ou até num passado ainda mais remoto, se a pessoa estivesse bem afastada dos edifícios mais altos.
A aglomeração de táxis na esquina da Quinta Avenida com a Central Park South desfez aquela ilusão. Depois que caminhei mais quinze minutos, já completamente ensopado, parei embaixo do beiral de um prédio na rua 53. Quando me virei para trás, vi que estava na entrada do Museu de Arte Folclórica Americana. Como nunca tinha visitado o museu, entrei.
As peças artesanais em exposição, a maioria dos séculos XVIII e XIX — cataventos, objetos de decoração, colchas, pinturas —, evocavam a vida agrária do novo país americano, bem como as tradições semiesquecidas dos antigos países europeus. Era a arte de um país que tinha uma aristocracia, mas não contava com o patrocínio das cortes: uma arte simples, franca e tosca. No patamar do primeiro lance da escada, vi um retrato pintado a óleo de uma garota com um vestido vermelho engomado, segurando um gato branco. Um cachorro espiava, enfiado por baixo da cadeira da garota. Os detalhes eram piegas, mas não conseguiam obscurecer a força e a beleza da pintura.
Os artistas expostos no museu, em quase todos os casos, trabalhavam fora da tradição da elite. Careciam de treinamento formal, mas sua obra tinha alma. Assim que cheguei ao terceiro andar do museu, a sensação de ter penetrado no passado foi completa. A galeria tinha uma fileira de colunas brancas e esguias que a cortavam ao meio e os pisos eram de cerejeira polida. Aqueles dois elementos remetiam à arquitetura colonial da Nova Inglaterra e das chamadas Colônias do Meio, estabelecidas por holandeses e suecos.
Aquele andar, bem como o que ficava abaixo, apresentava uma exposição especial das pinturas de John Brewster. Filho de um médico da Nova Inglaterra de mesmo nome, Brewster tinha recursos modestos, mas a escala da exposição deixava claro que se tratava de um artista muito requisitado. A galeria era silenciosa e tranquila e, exceto pelo guarda parado no canto, eu era a única pessoa presente. Isso realçava a sensação de tranquilidade que quase todos os retratos me transmitiam. A imobilidade das pessoas retratadas sem dúvida tinha participação naquele efeito, bem como a sóbria paleta de cores de todos os quadros, no entanto havia mais alguma coisa, algo mais difícil de definir: um ar de hermetismo. Cada um dos retratos era um mundo lacrado, visível pelo lado de fora, mas impossível de penetrar. Isso era mais verdadeiro ainda nos muitos retratos de crianças feitos por Brewster, todas serenas em seus corpos infantis, e muitas vezes com elementos extravagantes na indumentária, mas com rostos sérios, sem exceção, mais sérios até do que o rosto dos adultos, uma austeridade em franco desacordo com seus poucos anos de vida. Todas as crianças estavam numa pose de boneco e ganhavam vida por força de um olhar incisivo. O efeito era perturbador. O segredo, descobri, era que John Brewster sofria de uma grave surdez, e o mesmo acontecia com muitas crianças por ele retratadas. Algumas eram alunas do Asilo para a Educação e a Instrução de Surdos e Mudos de Connecticut, fundado em 1817, a primeira escola para surdos no país. Brewster ficou matriculado lá como aluno por três anos, já adulto, e foi enquanto esteve na escola que se desenvolveu aquilo que mais tarde seria conhecido como a Linguagem Americana de Sinais.
Enquanto contemplava o silencioso mundo à minha frente, pensava nas muitas ideias românticas associadas à cegueira. Ideias de uma sensibilidade e de um gênio incomuns eram evocadas por nomes como Milton, Blind Lemon Jefferson, Borges, Ray Charles; supõe-se que perder a visão física signifique adquirir uma segunda visão. Uma porta se fecha e outra maior se abre. A cegueira de Homero, acreditam muitos, é uma espécie de canal espiritual, um atalho rumo aos dons da memória e da profecia. Quando eu era criança em Lagos, havia um bardo cego errante, homem que era encarado com enorme espanto em razão de seus dotes espirituais. Quando cantava suas canções, ele deixava em todos a sensação de que, ao ouvi-lo, tocavam no divino, ou eram por ele tocados. Certa vez, numa feira apinhada de gente em Ojuelegba, no início da década de 1980, eu o vi. Foi a uma boa distância, mas recordo (ou imagino que recordo) seus olhos grandes e amarelos, calcificados nas pupilas com uma coloração cinzenta, seu aspecto assustador e o manto grande e sujo com que se cobria. Cantava numa voz plangente e de tom agudo, num iorubá proverbial e ressonante, que para mim era impossível acompanhar. Mais tarde, imaginei que tinha visto em torno dele algo semelhante a uma aura, um distanciamento espiritual que levava todos os seus ouvintes a enfiar a mão na bolsa e depositar alguma coisa na tigela que um menino, seu assistente, levava.
Essa é a narrativa acerca da cegueira. O mesmo não ocorre com a surdez, que, como no caso de meus tios-avós, era vista muitas vezes como mera infelicidade. Ocorreu-me então que muitas pessoas surdas eram tratadas como se tivessem retardo mental; mesmo a expressão “surdo-mudo”, longe de ser uma simples definição de condição fisiológica, comportava um sentido pejorativo.
Parado na frente dos retratos de Brewster, com a mente serena, vi as pinturas como registros de uma transação silenciosa entre o artista e seu tema. Um pincel carregado, ao depositar tinta sobre a tela ou o tecido, não pode registrar um som, e como é grande a paz palpável nos grandes artistas da imobilidade: Vermeer, Chardin, Hammershøi. O silêncio era ainda mais profundo, pensei, enquanto me achava naquela galeria e o mundo privado do artista existia completo em sua quietude. À diferença daqueles pintores, Brewster não tinha recorrido a olhares indiretos ou chiaroscuro para transmitir o silêncio de seu mundo. Os rostos eram bem iluminados e frontais, e no entanto eram silenciosos.
Parei diante da janela no terceiro andar e olhei para fora. O ar tinha mudado do cinza para o azul-escuro e a tarde já tinha virado fim de tarde. Uma imagem me atraiu de volta para o lado de dentro, a pintura de uma criança com um passarinho preso num cordão azul. A paleta, como era comum em Brewster, era dominada por cores em surdina: as duas exceções eram o azul vivo do cordão, que cortava a face da pintura como um raio de eletricidade, e os sapatos pretos da criança, que eram mais pretos e mais carregados do que quase qualquer outra coisa naquela galeria. O passarinho representava a alma da criança, como também acontecia no retrato feito por Goya do malfadado Manuel Osorio Manrique de Zúñiga, de três anos de idade. A criança na pintura de Brewster mirava atenta, com uma expressão serena e etérea, do ano de 1805. Ao contrário de muitas outras crianças pintadas por Brewster, o menino tinha sua audição perfeita. Seria aquele retrato um amuleto contra a morte? Uma em cada três pessoas, naquela época, morria antes dos vinte anos de idade. Seria aquilo a expressão de um desejo mágico de que a criança resistisse e se agarrasse à vida, assim como se agarrava ao cordão? Francis O. Watts, o modelo da pintura, de fato sobreviveu. Entrou na Universidade Harvard aos quinze anos e se tornou advogado, casou com Caroline Goddard, que era de Kennebunkport, a cidade natal dele, no Maine, e depois se tornou presidente da Associação Cristã de Moços. Morreu em 1860, cinquenta e cinco anos depois que o retrato foi feito. Mas, no momento da pintura, e para sempre a partir daí, ele é um garotinho que segura um passarinho num cordão azul, vestido numa blusa branca, com esmerados babados e rendas.
Brewster, nascido mais ou menos dez anos antes da Declaração de Independência, ganhava a vida como pintor itinerante e viajava a trabalho do Maine até sua nativa Connecticut e a região leste de Nova York. Morreu com quase noventa anos. O ambiente da elite federalista em que se formou lhe dera acesso a mecenas ricos e compenetrados (seus próprios ancestrais estiveram no navio Mayflower em 1620), mas sua surdez fazia dele um excluído e suas imagens eram impregnadas com aquilo que o demorado silêncio lhe havia ensinado: concentração, a suspensão do tempo, uma discreta sagacidade. Numa pintura intitulada Sem um sapato, que me deixou paralisado no momento em que parei diante dela, o laço caprichado no sapato do pé direito de uma menina repetia os asteriscos desenhados no piso. O outro sapato estava na mão dela e pentimentos vermelhos eram visíveis ao redor do calcanhar e dos dedos do pé esquerdo, agora descalço. A menina, tão segura dentro de seu próprio ser quanto todas as crianças de Brewster, tinha uma expressão que desafiava o espectador a achar graça.
Perdi toda a noção do tempo diante daquelas imagens, mergulhei fundo no seu mundo, como se todo o tempo entre elas e eu tivesse de certo modo desaparecido, e assim, quando o guarda se aproximou para me dizer que o museu ia fechar, esqueci como falar e me limitei a olhar para ele. Quando afinal desci a escada e saí do museu, foi com o sentimento de alguém que havia voltado à Terra, vindo de muito longe.
(Cidade aberta; tradução de Rubens Figueiredo)
(Ilustração: John Brewster (1766-1854) - one shoe off)
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