quarta-feira, 10 de maio de 2023

ALMA CORSÁRIA, de Claudia Roquette-Pinto

 





De tanto sono me baixa uma lucidez estranha

em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,

sob o fundo escuro da noite meio baça

(cilíndrica, roliça, bizarra)

seu vulto verde acocorado sobre a água

da piscina que não tem um pensamento.



Eu sinto inveja dessas águas anuladas

tão plácidas, idênticas ao próprio contorno

enquanto eu mesma nem sei onde começo,

quando acabo

e sofro o assédio de tudo o que me toca.



O mundo ora me engole, ora me vara

e tudo o que aproxima me desterra.

Chorei, ao ver no chão da cela,

o botão arrancado na contenda,

os óculos pisados do escritor judeu.



Tenho um coração que estala

com o peteleco das palavras de Clarice.

Numa vila miserável na Bahia,

um negro lindo, lindo,

dança ao som do corisco

- e só me apaixono por casos perdidos,

homens com um quê de irremediável.



Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,

vi abrir-se a máquina do mundo

sob a luz inclinada de Ipanema,

na Serra da Bocaina, no meio da floresta,

no alto da escada no topo do morro

por onde a moça sequestrada vinha subindo

debaixo das lágrimas do pai.



Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro

diante da página impressa,

e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel

de dentro da copa do desespero de amor.

Acredito, do fundo das minhas células,

que uma amizade sincera “é o único modo de sair da solidão

que um espírito tem no corpo”.

Sim, eu acredito no corpo.



Por tudo isso é que eu me perco

em coisas que, nos outros,

são migalhas.

Por isso navego, sóbria, de olho seco,

as madrugadas.

Por isso ando pisando em brasas

até sobre as folhas de relva,

na trilha mais incerta e mais sozinha.



Mas se me perguntarem o que é um poeta

(Eu daria tudo o que era meu por nada),

eu digo.

O poeta é uma deformidade.




(Ilustração: Juan Medina)

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