terça-feira, 31 de agosto de 2021

LITURGIA DE LUZ E NUDEZ, de Autran Dourado

 


Fazia frio e lá fora ventava. Um vento manso e contínuo. A casa toda apagada, todos com certeza dormindo. A solidão e o silêncio pesavam enormes sobre ele. Se cansara de ler, se cansara do caderno em que de uns tempos para cá dera para escrever. O cinzeiro cheio, de tanto que fumara. A garganta ardendo, a língua grossa, o pigarro.

Olhou com nojo o cinzeiro cheio até às bordas, se arrependeu de ter fumado tanto. com certeza ia passar mal a noite, custaria mais a dormir. Na insônia aquelas lembranças todas, a dor. A luz acesa, sem se dispor a deitar, demorando de pé o mais que podia, ainda era capaz de dominar a angústia e manter a onça de longe.

Deitado no escuro, um outro João parecia nascer de dentro dele. Um João que ele vinha tentando afogar na memória, enterrar na paradeza do tempo, desde aquela sua primeira noite no internato.

Mergulhado nas névoas da lembrança, na imensidão infinita do tempo, na mornidão opaca, na modorra das horas, ele neutro e silencioso, só então reparou que o quarto estava embaciado, o ar pesado demais. Assim, o cinzeiro fedendo a sarro, ia ser difícil respirar, impossível dormir. Abriu a janela, respirava fundo o ar fininho e frio da noite. Tão frio, mas era um friozinho seco, penetrante, gostoso. Cheirava a dama-da-noite. Um cheiro bom de resina de mangueira, de mato, de terra. O canto persistente dos grilos furando de miúdas estrelas o silêncio encorpado da noite. A noite pálida coalhada de estrelas, era lua cheia. A lua que nascera vermelhona e escandalosa na boca da noite, agora estava alta no céu: pálida, fria, branca, brilhante, nua, longe demais. A noite clara, a lua cheia, os grilos, cheiros e estrelas.

As mangueiras brilhantes, cobertas da poalha esbranquiçada, o chão pintado de manchas brancas de lua.

Ah, lua, disse ele frio, mais por dizer. Ah, Endemião, disse ele já literário. Respirava o cheiro macio e fino da noite, enchia o peito insaciável de luar e de estrelas.

Uma doce e fria paz descia sobre ele na noite subitamente estagnada. Se sentia miúdo, pequenino demais. Mesmo assim apaziguado, estranhamente feliz. Naquela imensidão de noite estrelada, inundado pela luz alvacenta do luar, gostaria de descansar o coração na mão espalmada de Deus, dissolver-se na luz distante, parada, fria, serena (tudo envolvia a doce brisa macia), serena e eterna de Deus. Aquele Deus de sua infância, que ele agora, na sua desesperada suficiência, na sua insegura e violenta certeza, na sua angústia de viver, na sua busca, na sua sede nunca satisfeita, na sua fome total, entre lágrimas palmilhando o caminho da dor, do deserto, procurava negar.

O cinzeiro na mão, jogou fora as baganas secas e fedidas. Respirou ainda mais fundo a paradeza da noite de estrelas e lua cheia, a brancura fria, o ar manso e cheiroso.

Ia caindo sobre ele uma doce paz, o imenso silêncio de cujo oco podia nascer a voz de Deus.

Só então reparou que havia luz em outro quarto da casa. Não era só ele, tia Margarida também estava acordada. Que estaria fazendo tia Margarida àquela hora de noite com a luz acesa, a janela aberta? Ela era tão friorenta e medrosa. Será que não sentia frio, não tinha medo? Ou ela também sentia o ar abafado, irrespirável, a prisão do quarto, precisava da brisa fria da noite? Ela também não podia dormir? Ou dormia de janela aberta, esquecera a luz acesa? Tia Margarida dormindo de luz acesa, descoberta. Esquecido do frio, de que se ela estivesse dormindo estaria toda encolhidinha debaixo das cobertas, começou a vê-la descuidadamente deitada. Os braços abertos, o corpo largado, a camisola arregaçada pelo movimento no sono, as coxas brancas e quentes à mostra. Aquele corpo quente e branco dormindo. O cheiro que deitava fundas raízes no menino. Ele não era um menino, alguma coisa cantou forte dentro dele. Podia surpreendê-la dormindo, não a acordaria. Mesmo dormindo, era capaz dela perceber a sua presença no quarto e acordar. Ela não grita, afoga o susto, finge que ainda continua dormindo, mas ele percebe tudo pelo movimento das pálpebras, pelo pulsar das narinas na respiração apressada. Como aquela vez na mesa da sala, ela deixaria. O peito incendiado, a garganta apertada, mal podia respirar.

E de repente um touro feroz acordou dentro dele. Agora era só narinas respirando apressado. Um touro de chifres vermelhos, saltando, mugindo no labirinto escuro, sanguinolento.

Apagou a luz do quarto, pulou a janela. Foi deslizando pela parede da casa, pisando cuidadosamente, na macieza de um gato, para não fazer nenhum barulho. Vovô Tomé, apesar de dormir tarde, tinha o sono muito leve. Se agachou, prendia a respiração, pisava nas pontas dos pés quando passou pela janela do avô. Na quina da casa parou. Respirava fundo, descansando, como se tivesse dado uma longa corrida. Agora tinha de tomar distância, se afastar do corpo da casa, correr para detrás daquele tronco de mangueira.

Poderia ver melhor dali, de frente para a janela acesa. Tinha de fazer tudo muito rápido, ser mais ligeiro e silencioso que um gato, correndo para que ela, ninguém pudesse perceber que tinha gente na horta. Deu uma corrida, se agachando, quase de quatro. Era ligeiro e elástico feito um gato, comparou mais uma vez. Mesmo assim cuidou que tivesse feito barulho. Se encostou no tronco da mangueira, respirava em pequenos fôlegos - um cachorrinho bebendo água, o coração batia agitado no peito, na goela. Vovô Tomé podia acordar assustado, abrir a janela, pensando que era ladrão, capanga, bandido empreitado para matá-lo. Os meninos do colégio saltavam o muro para roubar fruta na horta de tio Maximino. Corriam apavorados, o velho esbravejando, a espingarda na mão. Chumbo ou sal, o efeito era quase o mesmo, dizia.

Só que vovô Tomé atirava era com o trabuco de matar até onça. Uma onça miava farejando a lua, os olhos lumeando na escuridão do mato. bom na pontaria, mesmo no escuro, só pelo barulhinho era capaz de acertá-lo. Se encostou no tronco da mangueira, foi se deixando cair devagarinho. Ficou assentado, encolhidinho, protegido pela árvore, à espera.

Assim algum tempo. Até que teve a certeza de que ninguém tinha reparado a sua corrida, voltou a ouvir os grilos. Quando viu que não vinha ninguém, foi se levantando, e protegido pela árvore, pôde ver a janela acesa. A janela aberta, a luz acesa, ela não aparecia. com certeza dormindo, como tinha primeiro imaginado. Se afastou da mangueira, foi avançando, pé-ante-pé. Por mais cuidado que tomasse, as folhas secas estalavam. Se aparecesse alguém, a janela de vovô Tomé abrindo de repente, estaria perdido a meio caminho entre a mangueira e a janela aberta. Parou, as pernas bambas, trêmulo. Agora tinha medo de avançar ou recuar.

Paralisado, trêmulo, alguma coisa devia acontecer.

Súbito viu: tia Margarida apareceu no quadro iluminado da janela. A camisola de rendas abo toada até o pescoço, as mangas compridas. Toda branca, ela parecia mais branca do que realmente era. Os cabelos compridos, soltos e pretos, lustrosos, brilhavam, caindo em ondas sobre os ombros. Ele fascinado pela aparição diáfana e branca. Ela parecia envolta num halo de luz, uma luz que irradiava dela mesma. Linda, ele achava-a linda. Os olhos enormes, havia nela alguma coisa estranha e misteriosa.

Andava lentamente, descalça certamente. Era como uma figura nascida do fundo da noite, que vinha varando as névoas do sonho. Irreal, como uma

Verônica de cabelos soltos numa procissão noturna. Só que ela estava de branco, a cabeça descoberta. Agora de costas. Embora com medo que ela pudesse vê-lo, queria que ela se voltasse.

Ela se voltou, estava no meio do quarto. Agora podia vê-la, os pés descalços como tinha sonhado.

Fascinado pela aparição, se esquecia de tudo. O silêncio se espraiando apagava os grilos, os cheiros, as estrelas. Só os olhos viviam plenamente. E de novo viu que ela era linda, assim de cabelos soltos. Muito mais nova do que na verdade era. Muito mais linda e mais nova do que quando nas suas noites de urutau no internato.

Ele não esperava que mais nada acontecesse. Só aquela visão lhe bastava.

Quando aconteceu. Aconteceu que ela, antes letárgica, começou a se mover. E foi desabotoando a camisola em gestos suavíssimos: primeiro os punhos, depois a gola, o trespasse. Ele fechou os olhos, com medo de ver. Queria ser surpreendido pela visão com que sempre sonhou, que sempre temia. As ramagens de um roupão de cetim, um roupão vermelho, as chinelinhas cor-derosa, os cabelos pingando água do banho.

Uma dor verrumava fundo, varando. Tinha medo de abrir os olhos e ver. Os olhos fechados, dentro dele espocavam gritos, foguetes na escuridão. Eram palavras gritadas por bocas vermelhas, de dentro de negros labirintos. Nudez, mistério, brancura, morte! Êxtase, transe, fascínio, agonia, ressurreição! Todo ele eletrizado, à espera de morrer.

Quando abriu os olhos viu que ela, na brancura de sua nudez, explodia iodarem luz, luar. Toda ela nudez e luz: diáfana, pura, leitosa. Ela podia morrer agora, morreria no seu mais alto momento de luz e glória. A nudez que via era maior do que toda nudez que sonhara.

Os braços abertos, a cabeça erguida, ela se dava em espetáculo e agonia.

Para quem aquela liturgia de luz e nudez? Aqueles passos que agora eram dança? Os passos de pura música não eram para ele nem para ninguém. Para um deus desconhecido que mera na lua talvez.

Era para a lua que agora dançava, oferecendo os seios brancos e luminosos, o ventre redondo, as coxas firmes e arqueadas, toda ela um arco na mão do deus. O corpo esticado em arco, segurava os seios como se desse leite a alguém. Toda ela um só estremecimento, um só estertor. Feito em gozo, os olhos fechados, parecia balbuciar.

Como se estivesse sendo possuída, flechada. Ela podia desmaiar naquele paroxismo, podia mesmo naquele sacrifício morrer.

Ele sentia um medo tão forte, um estremecimento tão grande, uma dor tão funda, que cuidou também não resistir.

Foi quando, sem perceber, avançou. Os pés bateram numa pedra, caiu. O barulho que fez, ela ouviu. Viu-o. Na cara, nada - o terror branco. Sem poder se afastar, a boca aberta com que procurava articular um grito: ele cuidou ouvir, ela na verdade não gritou. Não se afastou nem se cobriu. Quem teve de fugir foi ele, como se ele é que estivesse nu.



(O risco do bordado)



(Ilustração: Edward Hopper - 1882-196 - solidão)

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