sexta-feira, 13 de agosto de 2021

JEAN VALJEAN, de Victor Hugo

 




Jean Valjean era oriundo de uma pobre família de camponeses de Brie. Na sua infância não aprendera a ler. Depois de homem fizera-se podador em Taverolles. Sua mãe chamava-se Joana Mateus e seu pai Jean Valjean ou Vlajean, alcunha talvez formada pela contracção de voilà Jean.

Jean Valjean era dotado de carácter pensativo, sem ser triste, circunstância particular às naturezas afectuosas. No fim de tudo, porém, não passava de uma criatura dorminhoca e destituída de interesse, ao menos aparentemente. Perdera os pais ainda de tenra idade. A mãe morrera vítima de uma febre de leite mal tratada; o pai, que fora também podador, morrera em consequência de uma queda, caindo de uma árvore. Não ficara a Jean Valjean senão uma irmã, mais velha do que ele, viúva, com sete filhos, entre rapazes e raparigas. A irmã tomou conta de Valjean, e enquanto o marido foi vivo conservou o irmão na sua companhia e sustentou-o. Mas o marido morreu A mais velha das sete criancinhas tinha oito anos, a mais nova doze meses Jean Valjean tinha completado vinte e cinco anos. Para as criancinhas substituiu o pai que lhes faltara, e por sua vez passou a amparar a irmã que o amparara a ele. Esta mudança operou-se com a maior simplicidade, como se fora um dever, e até com certo orgulho da parte de Jean.

Assim consumira a mocidade num trabalho rude e mal retribuído. Nunca lhe tinham conhecido afeição amorosa, nunca tivera tempo para se preocupar com o amor.

A noite recolhia a casa fatigado e comia a sua sopa sem proferir uma só palavra. Às vezes, sua irmã, quando ele estava a comer, tirava-lhe da tigela o melhor da ceia, isto é, o bocado de carne, de toucinho, ou o olho de couve, para dar a algum dos filhos; ele não deixava de comer, curvado sobre a mesa e com a cabeça quase metida na tigela, os compridos cabelos caídos para diante dos olhos, nem opunha resistência, parecendo não dar por coisa alguma.

Havia em Taverolles, próximo da habitação dos Valjeans, do outro lado do lugar, uma caseira chamada Maria Cláudia; às vezes, os filhos de Joana, quase sempre esfaimados, iam pedir em nome da mãe, uma porção de leite a Maria Cláudia e bebiam-no atrás de algum valado ou na volta de qualquer caminho, arrancando-se tão sofregamente a bilha uns aos outros, que às vezes as rapariguinhas entornavam-no pelas roupas que traziam. Se a mãe tivesse conhecimento destes pequenos abusos de confiança, castigaria severamente os delinquentes. Jean Valjean, apesar dos seus modos bruscos, pagava o leite a Maria Cláudia às escondidas da mãe e as criancinhas não eram castigadas.

No tempo das podas, ganhava vinte e quatro soldos por dia; terminadas elas, ajustava-se como ceifeiro, como cavador, como moço de gado, como jornaleiro, enfim, fazia tudo o que podia. A irmã, pela sua parte, também não ficava ociosa. Mas que valia o trabalho de dois para sustentar um rancho de sete criancinhas? Era um triste grupo, que a miséria pouco a pouco foi abraçando e apertando no seu círculo de ferro. Chegou um Inverno muito rigoroso, em que Jean Valjean não encontrou que fazer. Ficou sem trabalho e a família sem pão. Sete criancinhas sem pão!

Num domingo à noite, preparava-se Maubert Isabeau, padeiro com estabelecimento no largo da igreja, em Taverolles, para se deitar, quando ouviu uma violenta pancada na vidraça gradeada da sua loja. Correu imediatamente para ali e chegou a tempo de ver um braço passando por uma abertura feita no vidro com um murro, pegar num pão e levá-lo. Isabeau saiu apressadamente e correu atrás do ladrão, que fugia como lhe permitiam as pernas, conseguindo alcançá-lo.

O ladrão largara o pão no caminho durante a corrida, mas tinha ainda o braço ensanguentado. Era Jean Valjean.

Passava-se isto em 1795.

Jean Valjean foi levado aos tribunais daquele tempo «pelo crime de roubo nocturno com arrombamento, praticado numa casa habitada». Possuía uma espingarda de que se servia como o melhor atirador e exercia às vezes o mister de caçador furtivo. Tudo isto lhe foi prejudicial. Há contra os caçadores furtivos um preconceito legítimo. O caçador furtivo e o contrabandista vizinham paredes meias com o salteador. Contudo, seja dito de passagem, entre estas raças de homens e o medonho assassino das cidades há ainda um profundo abismo.

O caçador furtivo vive na floresta, o contrabandista na montanha ou no mar. As cidades produzem homens ferozes, porque produzem homens corruptos. A montanha, o mar e a floresta, produzem homens selvagens: desenvolvem a parte feroz, porém muitas vezes sem destruir a parte humana.

Jean Valjean foi considerado criminoso. Os termos do código eram formais. Existem na nossa civilização momentos terríveis: os momentos em que a penalidade é descarregada sobre um culpado. Que lúgubre momento aquele em que a sociedade se desvia e consuma o irreparável desamparo de uma criatura racional! Jean Valjean foi condenado a cinco anos de galés.

A 22 de Abril de 1796, proclamava-se em Paris a vitória de Montennote, alcançada pelo general em chefe do exército de Itália, que a mensagem do Directório de Quinhentos, chama Bonaparte, e nesse mesmo dia saía de Bicêtre uma numerosa leva de forçados. Jean Valjean fazia parte dessa leva. Um antigo carcereiro daquela prisão, que conta hoje perto de oitenta anos, lembra-se ainda perfeitamente desse infeliz que foi acorrentado na extremidade do quarto cordão, no ângulo norte do pátio. Jazia sentado no chão como todos os outros e parecia não compreender mais nada além do horror da sua situação. É provável que por entre as vagas ideias da sua lamentável ignorância se lhe afigurasse excessivo o tormento que os homens lhe infligiam. Todo o tempo que lhe estiveram a soldar a argola da gotilha, pelo lado de trás, o que se fazia descarregando sobre o ferro grandes marteladas, o infeliz chorou sempre e, sufocado pelas lágrimas que lhe embargavam a voz, apenas de quando em quando se lhe ouvia dizer: «Eu era um pobre podador em Taverolles!» Ao dizer isto, no meio de contínuos soluços, levantava e baixava gradualmente a mão direita sete vezes, como se tocasse sucessivamente em sete cabeças desiguais, e por este gesto depreendia-se que o crime que cometera, fora para alimentar sete crianças.

Partiu para Toulon, onde chegou ao cabo de uma viagem de vinte e sete dias, num carro e com a corrente de forçado ao pescoço. Em Toulon vestiram-lhe a jaqueta vermelha, que constitui o trajo dos sentenciados às galés. Desde então, tudo o que constituíra a sua existência até aí se desvaneceu, incluindo o nome; deixou de ser Jean Valjean para ser apenas um número, o 24601. E sua irmã? Que destino levou? Que destino levaram aquelas sete criancinhas? Quem se ocupa de semelhantes coisas?

Perguntai ao tufão que passa para onde arremessou as folhas secas da pequena árvore serrada pelo pé.

É sempre a mesma história. Aquelas pobres criaturas de Deus, agora sem apoio, sem guia nem asilo, partiram ao acaso, talvez mesmo que cada qual pelo seu lado, e pouco a pouco se foram embrenhando nessa névoa frígida em que se perdem os destinos solitários, trevas espessas no meio das quais sucessivamente desaparecem tantas frontes assinaladas com o estigma do infortúnio, durante a triste peregrinação da humanidade.

Abandonaram a terra que os viu nascer; o campanário da sua aldeia esqueceu-os; esqueceu-os o marco do campo que fora seu; no fim de alguns anos passados nas galés, até o próprio Jean Valjean os esqueceu. Naquele coração, onde existira uma ferida, ficara uma cicatriz. Eis tudo. Durante todo o tempo que esteve em Toulon, uma só vez ouviu falar da irmã. Foi pelos fins do seu quarto ano de cativeiro. Alguém que os conhecera na terra tinha visto a irmã. Residia em Paris, onde morava numa rua pobre das proximidades de S. Sulpício, chamada a rua de Geindre. Apenas tinha na sua companhia um filho, o mais novo de todos. Onde estavam os outros seis? Nem ela mesmo o saberia dizer. Todas as manhãs ia trabalhar para uma tipografia na rua do Sabot, n.º 3, onde exercia o mister de encadernadora, e onde tinha de estar às seis horas da manhã, hora que de Inverno ainda nem se conhece o dia. No mesmo edifício havia uma escola, para onde ela levava o filho, que tinha sete anos. Como ela, porém, entrava às seis horas, e a escola não se abria senão às sete, a pobre criança, a quem não consentiam entrada na tipografia, tinha de esperar uma hora cá fora, no Inverno, ao relento da noite, antes de principiar a aula. Todas as manhãs, os operários que passavam, viam a infeliz criança sentada no chão, pendendo com sono, e muitas vezes a dormir nalgum canto, acocorado e encostado ao seu cestinho.

Quando chovia, a porteira, compadecida do rapazinho, recolhia-o no seu cubículo, onde havia apenas uma enxerga, uma roda de fiar e duas cadeiras de pau; o pequeno deitava-se a um canto e adormecia abraçado ao gato para não ter tanto frio. Às sete horas abria-se a escola e ele lá se apresentava.

Eis o que disseram a Jean Valjean. Contaram-lhe isto um dia, foi um momento, um relâmpago, como uma janela repentinamente aberta sobre os destinos dos entes que ele tanto amava e que logo após se fechou. Depois disto não tornou a ouvir falar deles, foi aquela a última vez. Nada mais soube a seu respeito, nunca os tornou a ver, nem no decurso desta dolorosa história se tornará a fazer menção a eles.

Nos fins do quarto ano, chegou a Jean Valjean a vez de se evadir, no que foi auxiliado pelos seus camaradas, como é costume de tão triste lugar. Evadiu-se e andou dois dias errante pelos campos, usufruindo a liberdade, se ver-se livre, ver-se perseguido, voltar a cabeça a todo o instante, estremecer ao menor ruído, ter medo de tudo, da chaminé que fumega, do homem que passa, do cão que ladra, do cavalo que galopa, da hora que bate, do dia porque se vê, da noite porque se não vê, da estrada, do atalho, do arvoredo, do sono.

Na noite do segundo dia, Jean Valjean era recapturado. Havia trinta e seis horas que não tinha comido nem bebido.

Em virtude deste novo delito, foi condenado pelo tribunal marítimo a uma prolongação de três anos, o que perfez oito anos.

Ao fim do sexto ano, chegou-lhe novamente ocasião de se evadir; aproveitou-se dela, mas não chegou a consumar a fuga. Apenas deram pela sua falta na ocasião da chamada, dispararam o tiro de peça do costume, e, apesar da escuridão da noite, deram com ele escondido debaixo da quilha de um navio em construção. Resistiu aos guardas que o prenderam.

Crime de evasão e rebelião.

Este novo delito, previsto pelo código especial, foi punido com um agravo de cinco anos, sendo dois de dupla grilheta. Treze anos.

No décimo ano, tentou a fuga novamente, porém, não foi mais feliz do que das outras vezes. Mais três anos por esta nova tentativa. Dezasseis anos.

Finalmente, no décimo terceiro ano, tentou mais uma vez evadir-se e foi novamente preso depois de quatro horas de liberdade. Três anos por estas quatro horas.

Em Outubro de 1815 foi posto em liberdade, tendo entrado em 1796, por ter quebrado um vidro e furtado um pão.

Permitam-nos aqui um parêntesis. É a segunda vez, nos seus estudos sobre a penalidade e sobre a condenação pela lei, que o autor deste livro encontra o roubo de um pão, como origem da catástrofe de um destino Cláudio Gueux roubara um pão; Jean Valjean tinha roubado um pão; segundo uma estatística inglesa, está provado que em Londres de cinco roubos quatro têm por causa imediata a fome.

Jean Valjean entrara para as galés soluçante e trémulo; saiu de lá impassível. Entrara angustiado, saiu sombrio.

Que se passara naquela alma?



(Os Miseráveis; tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira)



(Ilustração: Gustave Brion - Jean Valjean - Les Misérables)



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