sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

A PRIMEIRA VEZ DE LENITA, de Júlio Ribeiro


 

Lenita mudava de posição, revolvia-se na cama, não dormia, não podia adormecer.

Uma obsessão mordente subia-lhe da periferia do corpo, comprimia-lhe o coração, atordoava-lhe o cérebro.

Sentia picadas na pele, tinha calefrios, zuniam-lhe os ouvidos.

Sugando-lhe as feridas feitas pelos aguilhões da cobra, Barbosa retirara um veneno, mas deixara outro. Lenita nunca mais cessara de sentir a sucção morna, demorada, forte, dos lábios de Barbosa em torno às picadas, no peito do pé. A sensação estranha, deliciosa, incomportável que produzira essa sucção perdurava, vivia; mais ainda, multiplicava-se, alastrava. Era um formigamento circular que lhe trepava pelas pernas, que lhe afagava o ventre, que lhe titilava os seios, que lhe comichava os lábios.

E ela queria Barbosa, desejava Barbosa, gania por Barbosa.

Esperar até amanhecer: uma! duas! três! quatro! cinco! seis horas! Ouvir o tique-taque do relógio, lento, medido, regular, igual, metálico; monótono, impiedoso; ouvi-lo sessenta vezes por minuto, três mil e seiscentas vezes por hora, vinte e uma mil e seiscentas vezes nas seis horas que faltavam para amanhecer? Impossível!

Ergueu-se e, descalça, em camisa, inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a sala, abriu a outra porta, saiu na antessala, enfiou pelo corredor, parou junto à porta do quarto de Barbosa, a escutar.

E nada ouvia.

Dentro, fora, dominava um silêncio profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu próprio coração.

Encostou o ouvido à fechadura, nada.

O seu ombro fez uma ligeira pressão sobre a folha da porta, e esta cedeu, entreabriu-se, chiando ligeiramente.

Uma lufada de ar quente, saturada de aroma de charuto havana veio afagar-lhe o rosto, os seios, o busto quase desnudo no decote grande da camisa. Lenita perdeu completamente a cabeça, entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslizando, como um fantasma, abeirou-se da cama de Barbosa.

Curvou-se, apoiou a mão no respaldo da cabeceira, aproximou a sua cabeça do peito do homem adormecido, escutou-lhe a respiração igual, hauriu-lhe o cheiro másculo do corpo, sentiu-lhe a tepidez da pele.

Quedou-se por muito tempo nesse ambiente entorpecedor.

De súbito o braço com que se encostava falseou; ela caiu pesadamente sobre o leito.

Barbosa deu um estremeção, acordou sobressaltado, sentou-se, estendeu as mãos, encontrou-a, perguntou assustado:

– Quem é? quem é?

A cútis morna, cetinosa da moça, a macieza da cambraia que a envolvia em parte, o perfume de Peau d’Espagne que de seu corpo exalava, não lhe permitiam dúvidas; mas ele recusava a evidência dos sentidos, não podia crer. Achava absurda, monstruosa, impossível a presença de Lenita em seu quarto, àquela hora, naquela quase nudez.

E, contudo, era real, ela ali estava: ele sentia-lhe a carne quente, dura, apalpava-lhe a pele híspida(1) pelo desejo, escutava-lhe o estuar do sangue, o pulsar do coração.

Um tropel de ideias desordenadas agitou-se-lhe, confundiu-se-lhe no cérebro excitado; o raciocínio ausentou-se, venceu o desejo, triunfou a sugestão da CARNE.

Sentou-se rápido à beira da cama sem largar a moça, puxou-a para si, cingiu-a ao peito, segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda, e, nervoso, brutal, colou-lhe a boca na boca, achatou os seus bigodes ásperos de encontro aos lábios macios dela, bebeu-lhe a respiração. Lenita tomou-se de um sentimento inexplicável de terror, quis fugir, fez um esforço violento para desenlaçar-se, para soltar-se.

Era o medo do macho, esse terrível medo fisiológico que, nos pródromos(2) do primeiro coito, assalta a toda a mulher, a toda a fêmea.

Baldado intento!

Retinham-na os braços robustos de Barbosa: em suas faces, em seus olhos, em sua nuca os beijos dele multiplicavam-se: esses beijos ardentes, famintos, queimavam-lhe a epiderme, punham-lhe lava candente no sangue, flagelavam-lhe os nervos, torturavam-lhe a carne.

Cada vez mais fora de si, mais atrevido, ele desceu à garganta, chegou aos seios túmidos, duros, arfantes. Osculou-os, beijou-os, a princípio respeitoso, amedrontado, como quem comete um sacrilégio; depois insolente, lascivo, bestial como um sátiro.

Crescendo em exaltação, chupou-os, mordiscou-lhes os bicos arreitados(3).

– Deixe-me! deixe-me! Assim não quero! implorava, resistia Lenita, com voz quebrada, ofegante, esforçando-se por escapar, e presa, todavia, de uma necessidade invencível de se dar, de se abandonar.

De repente fraquearam-lhe as pernas, os braços descaíram-lhe ao longo do corpo, a cabeça pendeu-lhe, e ela deixou de resistir, entregou-se frouxa, mole, passiva.

Barbosa ergueu-a nos braços possantes, pô-la, na cama, deitou-se junto dela, apertou-a, cobriu-lhe os seios macios com o peito vasto, colou-lhe os lábios nos lábios.

Ela deixava-o fazer, inconsciente, quase em delíquio, mal respondendo aos beijos frementes que a devoravam.

E corria o tempo.

Barbosa não podia prestar fé ao que se estava dando.

Descrente de mulheres, divorciado da sua, gasto, misantropo, ele abandonara o mundo, retirara-se com seus livros, com seus instrumentos científicos, para um recanto selvagem, para uma fazenda do sertão. Abandonara a sociedade, mudara de hábitos, só conservara, como relíquias do passado, o asseio, o culto do corpo, o apuro despretensioso do vestir. Levava a vida a estudar, a meditar; ia chegando ao quietismo, à paz de espírito de que fala Plauto(4), e que só se encontra no convívio sincero, sempre o mesmo, dos livros, no convívio dos ausentes e dos mortos. E eis que a fatalidade das coisas lhe atira no meio do caminho uma mulher virgem, moça, bela, inteligente, ilustrada, nobre, rica. E essa mulher apaixona-se por ele, força-o também a amá-la, cativa-o, aniquila-o. Faz mais: contra a expectativa, tornando realidade o improvável, o absurdo, vem ao seu quarto, interrompe-lhe o sono, entrega-se-lhe... Ele a tem entre os seus braços, lânguida, mole, roída de desejos; aperta-a, beija-a...

E... nada mais pode fazer!

Não que o detenham preconceitos, receio de consequências; não tem preconceitos, já não receia consequências.

O que o detém é um esgotamento nervoso de momento, uma impossibilidade física inesperada.

Debalde procura na concentração da vontade o tom da fibra nervosa, o robustecimento do organismo...

Sente o ridículo da posição, desespera, tem as mãos frias, banha-se em suor, chega a chorar. Afastou-se de Lenita, dementado, louco, escalavrando o peito com as unhas.

– Não posso! não posso! exclamou, ululou desatinado.

Deu-se uma inversão de papéis: em vista dessa frieza súbita, desse esmorecimento de carícias, cuja causa não podia compreender, nem sequer suspeitar; no furor do erotismo que a desnaturava, que a convertia em bacante impudica, em fêmea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa, cingiu-o, enlaçou-o com os braços, com as pernas, como um polvo que aferra a preia; com a boca aberta, arquejante, úmida, procurou-lhe a boca; refinada instintivamente em sensualidade, mordeu-lhe os lábios, beijou-lhe a superfície polida dos dentes, sugou-lhe a língua...

E o prazer que ela sentia revelava-o na respiração açodada; no hálito curto, quente; era um prazer intenso, frenético, mas... sempre incompleto, falho.

Barbosa arquejante tinha ímpetos de levantar-se, de tomar uma pistola, de arrebentar o crânio.

Pouco a pouco operou-se uma reação.

Sentiu Barbosa que, menos agitado, lhe circulava o sangue, que um calor doce se lhe expandia pelos membros, que o desejo físico se despertava, dominante, imperativo.

Recobrou-se de vez da passageira fraqueza, achou-se forte, potente, varão.

Com o ímpeto irresistível do macho em cio, mais ainda, do homem que se quer desforrar de uma debilidade humilhosa, retomou o papel de atacante, estreitou a moça nos braços, afundou a cabeça na onda sedosa e perfumada de seus cabelos que se tinham soltado...

– Lenita!

– Barbosa!

E um beijo vitorioso recalcou para a garganta o grito dorido da virgem que deixara de o ser...

Depois foi um tempestuar infrene, temulento, de carícias ferozes, em que os corpos se conchegavam, se fundiam, se unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que frêmito respondia a frêmito, beijo a beijo, dentada a dentada.

Desse marulhar orgânico escapavam-se pequenos gritos sufocados, ganidos de gozo, por entre os estos curtos das respirações cansadas, ofegantes.

Depois um longo suspiro seguido de um longo silêncio. Depois a renovação, a recrudescência da luta, ardente, fogosa, bestial, insaciável.

Pela frincha da janela esboçou-se um rastilho de luz tênue.

Era o dia que vinha chegando.

– Deixe-me! deixe-me, Barbosa! É preciso ir, está amanhecendo, está clareando.

– Não, não! ainda não! aquilo não é o dia, é o luar.

– Vou! deixe-me, deixe-me.

E, fazendo um esforço violento, Lenita escapou-se do leito e dos braços de Barbosa.

No desvão da porta entreaberta enquadrou-se, por um momento, a sua sombra indecisa. Desapareceu.

Barbosa ergueu-se, vestiu-se rapidamente, saiu, fechou a porta, tirou, guardou no bolso a chave.

Lenita do seu quarto ouviu-lhe, contou-lhe as passadas que ressoavam fortes.

A moça estava com febre; tinha a cabeça em fogo; sentia-se zonza, atordoada; via a todo o momento discos luminosos, com um núcleo que se alargava, cambiando de cores, passando do verde-escuro ao vermelho-cobre; ardia-lhe a garganta, a boca estava peganhenta.

No quarto deserto de Barbosa o rastilho de luz, coado pela frincha da janela, ia bater sobre a cama desarranjada: na alvura dos lençóis amarrotados punham notas muito vivas algumas manchas de sangue frescas, úmidas, rubras.



Notas:

(1) Arrepiada.

(2) Prenúncios.

(3) Estimulados sexualmente.

(4) Comediógrafo romano (254-184 a.C.).



(A carne)



(Ilustração: Tainá Maneschy)


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