sábado, 9 de janeiro de 2021

ORGANON DAS PROFECIAS, de Alberto Augusto Miranda

 



1



Do século em seus espaços e tempos eu via

Para lá do eixo funcional dos limites

Animal de quinta dimensão mantido

Ao choro unido sem quebra, cabra

Indomável palavra em figura perpassando

Sua digna continuada emoção.

Subia a hortícola saia para me garantir

Fazedora do esquecido vento em cada pulo



2



Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé

Eu hostiava as sombras para as contentar de luz

E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida

Que já nada temia do ameaçador espelho

Afinal meu consolo, meu feito ser.

Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos

Como documento de firmeza sempre preparado

A saltar às conversas desditosas e às dúvidas

A mim própria saltando. Mais do que a prece

O espelho, o construído espelho, inquebrável

Salvação, a minha alegria do divino.



3



Procurava os perdidos de nome e uma traviata

Reconhecidos de mim nas águas dos extremos

Arca de Noé, eu seria aparição no desespero

Até no esquecido desespero de uma apática entrega

Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos.

Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca

O amor que nenhum lupanário conhece à vontade

De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens

De membro em riste apenas os cerco de imagens

As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem

E chuva do futuro em cada abandonante do presente

O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.



4



Não há verbo nacarado que consiga

O aroma dos meus braços voantes e abertos

À recolha da solidão e do desastre, os meninos

Todos para mim, explosão de afecto em minha ara.

Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer

Precisamos de sentir para falar em cada dedo

Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem

Viajando até ao luar dos olhos compreendidos

Sinais de todos os músculos e de outras forças

De que me faço e me fazem embarcação

Dos nautas que não desistiram do infinito.



5



Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele

Em soma vos quero dizer: Ele não é meu

Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia

De omitir à cidade e a mim mesma omitir

A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero

Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo

Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade:

Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta

Incapaz de ser única, tal a Vida seria.

Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo

De a mim própria me nomear pássaro e não voar.

Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.



6



Por inteiro, sem parábolas me prontifico

A lavar-me de manchas para nos outros as lavar.

Um primeiro quente me acaricia o rosto

Na missão de ligar as almas ao Supremo

Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos

Prefixados de negação: sou-vos afirmativa,

De mim corre e escorre tudo o que é meu

Fonte vossa, nosso resultado, espiral

Penteando os cabelos dos acessos difíceis

Meu máximo gosto, minha máxima razão é

Minha máxima culpa, meu máximo ser

Clareando em perigo uma pequenina célula

Locatária do escuro e meu máximo triunfo.



7



Algures, em retiro, sentava-me no areal

E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons

Como virtuosa hameline seduzindo

Pequenas multidões prontas de brancura atrás

De mim, oásis em regaço sem miragem

Hamsters abandonando o jogo da caça

Alegres do Sol, primevas claridades

Agora recuperadas na água baptismal

Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio

Com que os faço nascer, lhes confiro um nome

E pelo livre arbítrio os torno diferentes

Em seus corpos inscrevendo

Uma oração comum no discurso da semelhança.



8



Talvez seja assustador o meu extra-vento

O tranquilo golpe da minha mirada

O desafio de desafiar sem combate expresso

Porque todos têm medo, muito medo

De abandonar o refúgio do seu caos

E saberem nas narinas o que lhes era sabido:

O lado mordente da natureza de cada um,

O lugar de árvore e fruto que era o seu

O céu que queriam e a que nunca chegaram

Por muito exercício e conquista em jejum

Seus metaquímicos transes pudessem ser

A palavra iniciática do profeta.



9



Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo

Pura e transparente mão do milagre ou

Outro membro vos unte esses alimentos

Onde cozinhais em transmitida receita

Vosso mito por salgar

Que hoje aprendi no organon das profecias

Ser do profeta irredutível dever

Falar ao ouvido das setas

Em olhos reviravoltados.



(Semântica do Olhar, Lisboa, 1997)



(Ilustração: Henry Fuseli - Titania)


Nenhum comentário:

Postar um comentário