quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

A CANÇÃO DE ROLANDO E SUA LEITURA HISTÓRICO-SOCIAL, de Ligia Vassalo

 


Embora existam muitos textos medievais sobre a história de Rolando, o manuscrito mais antigo e o mais artisticamente literário é o que foi descoberto na biblioteca de Oxford, redigido em dialeto anglo-normando e pertencendo ao ciclo do Rei ou ciclo de Carlos Magno, um dos mais prolíficos. Contém 4.002 versos decassílabos assonânticos, distribuídos em 291 estrofes de extensão desigual – as laisses – e dividido em quatro partes: “A Traição” (versos 1 a 1016), “A Batalha” (versos 1017 a 2396), “O Castigo dos Pagãos” (versos 2397 a 3674), “O Castigo de Ganelão” (versos 3675 a 4002). 

Pela ideologia do texto e pelo estado da língua, acredita-se que tenha sido escrito entre o final do século XI e meados do século XII, depois que a ideia de cruzada contra os pagãos já vicejava na Europa cristã. Admite-se no entanto que o manuscrito de Rolando seja o remanejamento de versões anteriores. Ignora-se a autoria do texto apesar da menção a Turoldus no último verso (“Ci falt la geste que Turoldus declinet”), porque o sentido de declinet permanece obscuro, podendo ser compor, transcrever, recitar ou copiar. 

O enredo da canção repousa sobre um fato real ocorrido no reinado de Carlos Magno (768814), a batalha de Roncesvales (15/8/778), quando o rei (742-814), que só se tornará imperador em 800, tinha apenas 36 anos. O exército franco havia ido a Saragoça por solicitação do governador de Barcelona, Sulayman Ben Al Arab, revoltado contra o emir de Córdoba, seu superior. O desentendimento entre os chefes árabes e uma revolta de saxões ao norte levaram Carlos a retornar em poucas semanas e não após os sete anos do poema: é quando bascos cristãos dizimam sua retaguarda, perecendo no combate sobrinhos do rei, como Rolando, e o bispo Turpino entre outros. 

Por causa do hierarquizado sistema de alianças então vigente, a guerra torna-se um assunto de família. A retirada e o massacre são episódios de monta, que levam o rei a desistir de aventuras na Espanha e a fortificar suas fronteiras na Aquitânia. Por prudência e diplomacia, os cronistas da época atestam o fato minimizando-o. Enquanto isso, no Oriente, Carlos Magno aliava-se ao califa de Bagdá, o célebre Harum Al-Rachid. Portanto, embora defensor da cristandade, Carlos Magno não era inimigo dos árabes e a ideia de cruzada não é do seu tempo. Mas ela pertence à época do manuscrito e identifica-se com a Reconquista espanhola. 

No entanto, os inúmeros anacronismos do texto levam a uma transfiguração da história: um episódio local serve de pretexto à exaltação da mística feudal e da monarquia, o serviço das armas abre as portas da eternidade e assim por diante; Carlos Magno já é o imperador da anacrônica barba florida, com mais de 200 anos, as armas e a forma de lutar não correspondem ao século VIII. Em compensação, o manuscrito reflete problemas políticos e jurídicos próprios da época de sua composição, como a independência dos senhores feudais, o papel social e político da linhagem, os deveres morais e feudais do rei, o lugar da realeza no sistema vassálico. Esta literatura, surgida do esfacelamento feudal e herdeira do mito imperial carolíngio, chega à maturidade num momento em que as estruturas do poder estão em plena mutação. Conclusão: não se trata de um texto histórico, mas de uma reelaboração dos dados reais do século VIII a partir da ideologia e da vivência dos séculos XI e XII. Excetuando-se alguns nomes próprios e de lugares e o malogro da expedição, tudo o mais é fictício. 

Alguns personagens têm existência histórica atestada (Carlos Magno), embora nem sempre seu papel real equivalha à importância que lhe atribui o poema (Rolando). Outros podem ser identificados com pessoas vivas ou um amálgama de várias (Naimes, Ogier, Turpino, Gerier, Gaifet, Torleu ou Traulos – chefe de uma seita religiosa). Outros ainda são pura ficção: Olivier – que representa o companheiro de guerra; Turpino ou o monge-soldado das Cruzadas; Ganelão o traidor, personagem tradicional de poema épico. 

Os doze pares de Rolando são: Olivier, Turpino, Gerino, Gerier, Oton, Berenger, Ivon, Ivório, Engelier, Samson, Anseís, Gerard de Roussillon. Esta lista varia segundo a gesta. Pares aqui significam os que estão em pé de igualdade em relação a Rolando. Primitivamente recebiam esta denominação os vassalos de um mesmo suserano. Posteriormente estendeu-se dos vassalos mais poderosos, palatinos (isto é, do palácio, da corte) e que deviam ao chefe conselho e auxilio (militar e pecuniário). São portanto os defensores, donde a derivação para paladinos. Neste sentido o poema revela conceitos da feudalidade e da monarquia. 

Todos os personagens pertencem à nobreza em sua mais alta estirpe, dispondo pois de função militar na sociedade medieval, onde constituem o grupo dominante junto com o clero. Por isso não há personagens do povo nem plebeus. Frequentemente há vários parentes na mesma equipe. Dentre eles sairão os reféns, que garantem a palavra empenhada por um dos membros de seu clã. Assim, a guerra e o serviço militar são casos de família. A partir do texto, este fenômeno ocorre com os cristãos e com os pagãos. Um personagem pode ser denominado por vários títulos, além do de barão. Assim, Carlos Magno é rei, imperador; Rolando é conde, marquês da marca ou marquesado (território de fronteira) da Bretanha. 

Armas, lanças e espadas constituem os instrumentos de ação do guerreiro, daí receberem nomes próprios. Atesta-se a importância dos cavalos – companheiros de trabalho – nesta sociedade através da descrição dos animais, seu comportamento, sua especialização, conforme a tarefa a ser realizada – o que não deixa de revelar uma noção de hierarquia. 

Apesar de não ser uma obra histórica, o texto permeia vários traços da sociedade que o escreveu, alguns deles anacrônicos quanto à época dos eventos da Canção. 

a) A questão política do comportamento de Ganelão: vingança pessoal (já anunciada desde o princípio) ou traição ao chefe supremo? Esta dúvida transparece no julgamento do cunhado de Carlos Magno, quando se propõe perdoá-lo por esta vez. Porém, numa sociedade que repousa sobre a fidelidade aos acordos feitos, a atitude pessoal não pode ultrapassar os limites da segurança do chefe supremo, daí sua condenação. 

b) O julgamento de Deus materializado pelo duelo judiciário, que traz ganho da causa em litígio ao vencedor da luta corporal. 

c) A prisão e tortura do réu (Ganelão), bem como sua humilhação (é guardado por gente inferior à sua casta). 

d) A dicotomia Céu-Inferno, já que o conceito de Purgatório só se concretizará ao longo do século XIII. O Paraíso é um campo de flores, para onde vai diretamente a alma dos justos ou mártires, cabendo o Inferno aos pagãos, danados ou pecadores. 

e) A guerra de religião não existia ao tempo de Carlos Magno, mas decorre do espírito das cruzadas. Assim, são mártires os que morrem em defesa de sua fé. Por isso, a penitência imposta pelo arcebispo aos soldados é lutar bem. Por outro lado, o guerreiro é consciente do devotamento que deve demonstrar na defesa dos valores pelos quais luta e que lhe trarão fama. Prova disto é o temor às canções maldosas (satíricas) que poderão ser feitas a respeito dele se sua atitude não se identificar com o padrão almejado. 

f) A conquista da Inglaterra, obra de Guilherme o Normando em 1066, não fez parte da política de Carlos Magno, mas sua menção no texto permite de certo modo datá-lo como posterior a este evento. 

g) Os limites da Francia no século X: Saint-Michel du Péril ou São Miguel do Perigo (Bretanha-Normandia), Saints (Colônia ou Xanten, no rio Reno), Wissant (porto do canal da Mancha, ao norte de Boulogne), Besançon (junto às montanhas do Jura) – atestados na tempestade pela morte de Rolando – não correspondem às fronteiras do vasto império carolíngio. Conforme a passagem do texto, o termo França corresponde a um ou a outro destes dois conceitos territoriais. 

h) Durante cerca de um mês por ano cada nobre prestava seu serviço militar ao suserano, geralmente na primavera-verão, quando se realizavam as campanhas. No texto é maio. O rei ou imperador percorria seus domínios para utilizar tais serviços na própria região em que se encontrava, bem como para consumir os impostos que lhe eram debitados sob a forma de víveres. 

Além da importância ideológica da religião, percebe-se no texto, no âmbito cultural em sentido estrito, o impacto da formação de base clerical, através da influência da Bíblia sobre o escriba, atestada em inúmeras passagens, como a dos sonhos premonitórios do imperador, a dos signos precursores do fim do mundo (tempestade pela morte de Rolando), a parada do sol para que o combate se prolongue, a referência à terra de Datan e Abiron, a oração de Carlos Magno antes da batalha final. Por outro lado, é ainda por via desta mesma formação de base clerical que devem ter chegado ao poeta referências a Virgílio e Homero, simples menções não exploradas na Canção de Rolando. 

Pode-se ainda assinalar nesta canção de gesta o padrão de beleza medieval, representado não só pela atlética aparência física dos guerreiros como também pelos olhos. A excelência recai sobre os de cor cambiante, como os de Ganelão. O termo original, vair, confunde-se por homofonia com vert, verde, cor identificada com a dos olhos traidores, o que reforça este traço do personagem. 

A apresentação épica opera em terceira pessoa, através de um narrador que apresenta os personagens mediante estrutura dialogada. Aquele não se anula por trás da narrativa. Talvez como marca da oralidade, ele interrompe seu relato para se dirigir ao auditório, comentando os fatos e externando suas opiniões, favoráveis aos valores vigentes. Por isso, lamenta a sorte dos partidários de Rolando. Por outro lado, desde o início ele já anuncia o que vai ocorrer: a traição de Ganelão. Deste modo, retira-se a tensão. Resta apenas o prazer de narrar, cheio de digressões, próprias do estilo épico. Aliás, uma das convenções épicas repousa sobre o fato de que todos sabem o que vai ocorrer (narrador e fruidor da obra), exceto os personagens. Outros lugares-comuns característicos do épico são os sonhos, os avisos premonitórios e maus presságios, as cenas de batalha e de descrição da dor, o adeus fúnebre e a genealogia dos personagens, os epítetos, as repetições (de situações, gestos, estrofes, versos). E como intercalam-se o presente da narrativa com o relato do passado, o período também alterna pretérito e presente. 

Os personagens são estereotipados e sem densidade psicológica, falam pouco e se exprimem por gestos. Isto se verifica a partir do epíteto, reduzindo os actantes a um único traço, marcado por oposição ou por complementaridade Assim, o traidor Ganelão (félon, injúria máxima) se opõe a Rolando (o preux – valor supremo), corajoso e valoroso paladino dos valores estatuídos; o bravo se completa com a presença do prudente e sensato Olivier, o sábio (sage). Os traços antitéticos naturalmente colaboram para representar uma visão de mundo maniqueísta. Logo, os personagens atuam aos pares: Rolando e Olivier, Ganelão e Pinabel, Ganelão x Rolando, Pinabel x Thierry, sendo o companheirismo muito exaltado nos poemas épicos. Algumas vezes esta noção transparece através da semelhança de nomes: Gerino, Gerier; Ivon, Ivório; Basan, Basilio; Clarien, Clarifan. 

Os diálogos dos personagens, que na mesma fala alternam tu e vós como formas de tratamento, restringem-se a ordens de comando, apelo às armas, elaboração de estratégias de luta, comentários sobre a batalha campal, invectivas verbais para incitar o corpo-a-corpo, muito bem simbolizadas pelos brados de guerra. Excetua-se a discussão entre os paladinos a respeito do toque do olifante, um pouco mais elaborada devido à argumentação apresentada. No entanto é curioso constatar que, num embate onde tudo opõe os dois grupos de participantes, nenhum tem dificuldade em compreender a língua do outro. 

A linguagem gestual dos personagens atesta sua parca elaboração interior e a importância da sociedade oral no texto, motivo pelo qual tudo deve-se transformar em ação. Assim, a luva caindo da mão de Ganelão torna-se um mau presságio; os sonhos do imperador se concretizam em visões; um acordo é selado com beijos, presentes e juras; o anjo fala; a barba exposta sobre o peito indica desafio; o bastão e a luva representam o embaixador; o emir bate com a luva no joelho como garantia do que diz; o mártir Rolando prepara o cenário de sua morte e volta a luva para Deus, em sinal de submissão; as ações são reiteradas: um dá, o outro recebe. 

A simplificação do personagem confere com a simplificação do enredo, resumido nas peripécias da batalha. Este campo semântico permite justificar os episódios de luta corporal retratados com sangrento realismo, as batalhas colossais e o agigantamento das situações. Neste sentido, no primeiro embate há 20 mil francos contra 400 mil infiéis, depois reduzidos a 60 combatentes contra 100 mil. Há 15 mortos árabes para cada cristão abatido. Em torno de Turpino jazem 400 cadáveres. Os três últimos sobreviventes agonizantes, Rolando, Gautier e Turpino, eliminaram respectivamente 22, 6 e 5 vítimas, sendo que os três se defrontam com mil homens a pé e 40 mil montados. Diante do corpo de Rolando, cem mil franceses desmaiam. 

Neste mundo, onde predominam os valores e atividades masculinos, a fidelidade à palavra empenhada supera qualquer outro preceito. Por isto, Ganelão não pode trair o suserano por uma questão de vingança pessoal contra Rolando; Alda falece ao saber da morte do noivo, pela quebra do pacto e não por amor, sentimento desconhecido à época das canções de gesta. 

Mas nesta guerra, a religião serve apenas de ponto de partida. Pagãos e cristãos lutam por prestígio, poder, terras, riquezas, bens materiais, saques, acobertados ideologicamente sob a antinomia Bem/Mal. Seus valores são os mesmos, porém invertidos. Por isso, os francos são fiéis, valentes, seguidores da lei de Cristo, belos, bons e detêm a certeza de suas posições, ao passo que os árabes são infiéis, covardes, heréticos, feios, maus e detentores do erro. Tudo se opõe, no entanto há homologias entre os dois campos contendores. Em ambos os exércitos há um chefe supremo, de barba branca como flor, escoltado por um sobrinho e inúmeros familiares; cada um dispõe de doze pares e de um grito de guerra, uma religião defendida com a luta. Como o escriba ignora o contexto árabe, fato confirmado pela falta de menção verossímil ao território ocupado bem como à sua geografia e pelos nomes vagos ou inventados, atribuiu-lhe a mesma estrutura sócio-política dos francos e concede-lhe uma estranha santíssima trindade, composta por Maomé (profeta do Islã), Tervagante (divindade fictícia) e Apolo (adaptação do paganismo grego, ao qual também se junta Júpiter). 

E por conta destas transposições e associações do mundo cristão europeu, onde clero e nobreza compõem a classe dominante, o poder e o sagrado vêm juntos também no poema. Deste modo, as intervenções do maravilhoso cristão (pranto da natureza pela morte do herói, prolongamento do dia para vingar a morte dos pares de França, a corte celestial levando a alma de Rolando para o Paraíso, a intimidade entre o anjo Gabriel e Carlos Magno) só incidem sobre quem detém o poder – o imperador – ou seu representante – o sobrinho. No conjunto das identificações, o imperador corresponde ao cavaleiro de Cristo, Rolando ao apóstolo fiel, Ganelão a Judas, os doze pares aos apóstolos. 

Finalmente cumpre mencionar a parataxe épica. Na Canção de Rolando os versos são longos, comportando uma oração predominantemente coordenada. Pode-se supor que a conjunção destruiria a harmonia do verso ou que o estado da língua não a aceita. Na verdade a coordenação épica corresponde a uma estrutura e um estado de espírito, em homologia com a sociedade feudal cerrada e hierarquizada, em consonância com o estilo românico rural na medida em que não há governo central e que não há mobilidade social. 

Em suma, o caráter épico da Canção de Rolando enfatiza um único ponto de vista, não deixando margem a ambiguidades. Daí seu caráter exemplar, que permite extrapolar seus conceitos para outras sociedades igualmente maniqueístas. Desse modo se explica, em nossos dias, sua intensa sobrevivência na literatura de cordel brasileira, com todas as adaptações que o fenômeno comporta, porquanto o sertanejo profundamente religioso peleja em busca de justiça num mundo de antagonismo entre ele e o poderoso dono da terra, seu arqui-inimigo e representante do Mal. O mito carolíngio, embelezado pela lenda, espalhou-se através do mundo ocidental, o que se atesta pelas inúmeras estátuas, vitrais e iluminuras em toda a Europa, bem como por sua presença, retomada não só através de textos de várias épocas, mas também pelos enredos das marionetes sicilianas. 



(Ilustração: As oito fases da Canção de Rolando numa só figura - Simon Marmon - Grandes chroniques de France)

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