terça-feira, 5 de maio de 2020
SE UM DIA VANDA VOLTAR, de Dóris Fleury
Eliane casou no sábado, com flores na igreja e festa num bufê. No domingo, Vanda já estava tocando a sua campainha.
-- Eliane, abre! Eliane, quero falar com você - e batia as mãos no portão.
O casal, lá dentro, se entreolhou.
-- ABRE, ELIANE, PORRA! - berrou Vanda, esmurrando o portão, que devolveu um som metálico. A casa ficava numa vila. A vizinhança era conservadora. Eliane resolveu atender.
-- Vanda, querida... - Aproximou-se, sorrindo, mas não abriu o portão.
-- Eu quero falar com você - repetia Vanda, transtornada.
-- Meu amor, é melhor a gente não se ver mais.
-- Abre, Eliane, por favor!
Eliane olhou para a outra. Estava pálida, com olheiras, a boca grande e polpuda quase sem cor. Abriu o portão.
-- O que você quer?
Vanda tremia.
-- Falar com você.
-- A gente não tem nada pra conversar.
-- Mas por que você fez isso, Eliane?
-- Eu mudei de ideia, Vanda. É um direito meu, certo?
Ela estava cabisbaixa, humilde feito um mendigo. "Está mais calma", pensou a outra, aliviada.
-- Você não me aguentou, é isso.
Não seria melhor dizer a verdade? "É isso mesmo, Vanda, não aguentei. Cansei dos teus escândalos, dos beijos na rua, das pessoas olhando. Cansei até da bateria, Vanda."
-- É melhor você ir embora - disse.
-- Você não gosta dele.
Eliane abriu a boca para responder, mas não disse nada.
-- Não dá a mínima pra ele! - insistiu a outra. A recém-casada não respondeu; era sua vez de ficar calada, com os olhos pregados no chão.
Vanda, então, entrou na casa, e quebrou tudo o que viu pela frente.
Três meses depois, ela estava saindo de um hospital psiquiátrico.
Mais uma vez, os médicos haviam fracassado. Não conseguiam nem lhe colocar um rótulo, os incompetentes. Procuravam um nome que os deixasse sossegados, com a segurança de pisar em terra conhecida. Esquizofrenia? Psicose? Nenhum rótulo colava bem.
Bel, a irmã de Vanda, a trouxe para casa. Já tinha um quarto reservado para ela. Vanda não perguntou se estava incomodando.
-- Quando ele volta? - perguntou, depois de atirar a mochila no chão.
-- Ele quem?
-- O Luís. Estou com saudades dele.
Bel comoveu-se.
-- Ele está trabalhando, Vanda. Volta no fim da tarde. - Abraçou a irmã, que correspondeu, enterrando a cabeça no seu ombro. Bel aspirou fundo: Vanda tinha um cheiro cálido e reconfortante. Cheiro das brincadeiras na infância. Da amarelinha na calçada. Do quarto que dividiam.
Com o rosto ainda enterrado em seu ombro, a outra perguntou:
-- E a banda?
Bel soltou-a:
-- Vai indo. Mês passado, a gente fez uns três shows... - e continuou a falar. A irmã tinha uma expressão distante, mas Bel sabia que ela estava ouvindo.
-- E a bateria? - perguntou.
-- O Marcinho ficou na bateria. Eu canto. Mas está uma droga -- confessou -- Ainda bem que você voltou.
Quando Luís chegou, no fim da tarde, Vanda estava sentada à mesa, com a cabeça enterrada nos braços. Ele retirou-se cautelosamente para a sala, e perguntou à mulher:
-- Faz tempo que ela está assim?
-- Uns minutos. Ela levanta logo.
Desde a infância, Bel acostumara-se a explicar a irmã ao mundo; "Ela está triste, ela quer comer, ela tem vergonha de falar." Luís resignou-se.
-- O pessoal da banda já sabe que ela voltou?
-- Já. Telefonei pro Marcinho e pro Gênio. Eles vão avisar o Cacau.
Só Deus sabe como a banda sobrevivera, na ausência da Vanda. Ela era a grande atração: uma baterista fantástica, sem falar nas canções que compunha e cantava.
Enfim, Marcinho pegara um bico no estúdio, Cacau fora morar com a mãe, e o Gênio -- bem, o Gênio sempre se arranjava. E Bel tinha Luís, que segurava a barra.
-- Você acha que ela já pode tocar? - perguntou ele.
Antes que Bel pudesse responder, Vanda soltou um grito selvagem. A sobrinha, Dandara, chegara da escola, e as duas rolaram pelo chão, rindo.
A banda se reconstituiu, os shows recomeçaram. Bel vigiava o telefone. Eliane ligou, mas ela bateu o telefone na sua cara. Não sem antes dizer um monte de desaforos.
-- Vaca. Chamar a polícia pra prender minha irmã. Mau-caráter!
-- Calma, Bel - dizia o marido.
Luís não perguntava quanto tempo Vanda ia ficar. Todas as tardes, ela se instalava na cama do casal. Deixava atrás de si um rastro de papeizinhos, que o cunhado recuperava depois.
-- O que diz aí? - perguntava Bel, curiosa, espiando sob o ombro do marido. Luís lia alguns versos. -- Bel guardava os papéis numa caixinha; depois os passava ao Marcinho, o outro compositor da banda.
Alguns críticos diziam que a Simples Veneno era a melhor coisa que surgira no rock paulista dos últimos anos. Principalmente as letras. Uma grande banda. Merecia ser mais conhecida.
Mas Bel, Marcinho, Gênio e Cacau sabiam que a banda tinha um problema.
-- Quer um fuminho, Vanda?
Bel já tinha ido embora, e Vanda estava sozinha em frente à bateria, parada, olhando para o infinito. Não respondeu à pergunta. Cacau insistiu:
-- Uma vodca, então?
Ela ergueu os olhos do seu instrumento. O show terminara há quarenta minutos. O resto da banda tinha ido embora. O bar estava fechando, e o barman lavava os últimos copos.
-- Uma vodca - concordou ela. E, antes mesmo que Cacau pudesse fazer o pedido, o barman já abria a garrafa e vinha trazer a dose.
Por Vanda, as pessoas saltavam dos seus lugares. Afobavam-se para servi-la, amá-la, protegê-la. Por quê? - pensou Cacau. Ela não é bonita, não é simpática, nunca se preocupou em conquistar ninguém. A única coisa que sabe fazer é tocar a porra da bateria. É ou não é?
Vanda entornou a dose de vodca; no minuto seguinte, estava de pé.
-- Vamos sair daqui, Cacau. Já encheu.
Cacau seguiu-a, obedientemente. Duas horas depois, estavam de pé, encostados ao parapeito de uma das pontes da Marginal. Eram cinco da manhã. Cacau detestava amanhecer na rua.
-- Vou puxar o carro, Vandinha - disse.
-- Não - contestou ela, sem ênfase na voz -- Vamos ficar aqui.
-- Mas está fedendo...
-- Eu adoro olhar o rio.
-- Essa porcaria aí?
-- É bonito. Todo preto.
Ficaram em silêncio por alguns minutos. Fazia frio, e Cacau estava cansado, doido por uma cama. Mas não conseguia tirar Vanda dali, e também não tinha coragem de deixá-la sozinha. Ficou olhando para o seu rosto: o cabelo preto caído na testa, eternamente despenteado e oleoso; os olhos pequenos e afundados; a boca grande. Não estava cansada. Vanda nunca ficava cansada.
-- Sabe o que eu queria, Cacau? Um barco.
-- Um barco? Ué, pra quê?
-- Pra andar com ele nesse rio.
-- Nossa, que nojo.
-- Eu pegava o barquinho de noite - continuou ela, absorta - e ia passear pelo rio inteiro...
-- É, vai ver à noite fede menos - caçoou ele. Mas ela não prestava atenção:
-- O meu barco não ia ter luz. Só velas. Velas acesas, entende?
-- Entendo.
-- Imagina que bonito, Cacau. Você aqui, encostado na ponte, olhando lá pra baixo. Aí de repente vê um barquinho cheio de velas, no meio do escuro...
-- E aí?
-- E aí, você sabe que sou eu, lá em embaixo.
"Você sabe que sou eu"? -- pensou Cacau, fechando os olhos, presa de uma momentânea tontura. Vanda nascera tão estranha, num mundo cheio de gente tão igual... Não precisava do barco. Não precisava de velas.
Abriu os olhos e viu que ela ainda o olhava, a mecha de cabelos despenteada pelo vento. Tentou beijá-la. Vanda lhe deu um empurrão:
-- Pára, Cacau - disse, com voz neutra.
Bel queria que a irmã seguisse um tratamento, fizesse terapia. Mas o psiquiatra chateava Vanda, que largou o tratamento em três sessões.
Quando estava em casa, Bel tentava vigiá-la. Não queria que saísse, que ficasse sozinha por muito tempo. Mas, numa noite sem show, Vanda brigou com a irmã e foi passear.
Ela não pegava ônibus. Não gostava dos veículos cheios de gente, dos olhares maldosos das pessoas que sentavam ao seu lado. Andou vários quilômetros, até chegar à vila onde Eliane morava.
Fazia seis meses agora. Vanda ficou olhando o sobrado pequeno, o Gol guardado na garagem. Das casas da vila vinha o cheiro de comida, os gritos das crianças. Homens e mulheres voltavam do trabalho, entravam apressados, sem olhar para ela.
O marido de Eliane saiu na calçada. Gritou alguma coisa, e uma voz feminina respondeu, dentro da casa. Vanda estremeceu.
O homem entrou no carro, deu a partida e saiu.
Várias horas se passaram. A rua estava deserta e quase às escuras. A luz da sala do sobrado continuou acesa. Através do vidro, Vanda podia ver a tela colorida da TV. Um ou outro cachorro latia. De repente, a luz se apagou, e logo depois a janela do primeiro andar - um quarto, provavelmente - se acendeu.
Vanda, que estivera chorando baixinho, fixou a janela iluminada. Ficou olhando a silhueta que passeava pelo quarto. Para lá e para cá. Para lá e para cá.
Ela colocou a mão dentro das calças, e começou a se acariciar. Seguia o ritmo da figura lá em cima: para lá e para cá. Depois de alguns minutos, gemeu alto, dolorosamente. E ficou agachada na calçada, molhada de suor, esperando que a luz se apagasse.
Nunca antes Vanda estivera bem por tanto tempo. A banda começou a fazer planos. Marcaram shows com meses de antecedência.
Só Bel não estava contente. Preocupava-se com as saídas noturnas da irmã, cada vez mais frequentes e prolongadas. Percebia também que às vezes, em pleno show, ela se ausentava. Cantava, tocava a bateria, mas não estava lá. Os olhos, vazios, se fixavam no nada. Será que só Bel notava? Os outros não percebiam?
As horas que Vanda passava no quarto do casal também aumentavam. A cama transbordava de papeizinhos.
A mãe de Bel e Vanda ligou, no fim de semana:
-- Como é que ela está?
-- Tá bem, mãe.
-- Bem como?
-- Bem. Pode acreditar em mim.
Houve um longo silêncio. Depois, veio o choro do outro lado da linha.
-- Mãe, não fica assim - disse Bel - Por favor.
Vanda passou muitas noites em frente à casa de Eliane. Via o marido sair. Depois, ficava horas olhando a sombra que se movimentava, dentro do sobrado.
No fim de abril, quando as noites começaram a esfriar, Vanda finalmente conseguiu ver Eliane. Ela saiu na garagem do sobradinho para receber o marido, que dava aulas à noite. Quando abriu a porta, avistou Vanda na calçada em frente.
As duas ficaram se olhando.
Mesmo na luz fraca da entrada, Vanda pôde ver o quanto ela mudara. Tinha engordado, e seu rosto tomara um ar calmo e satisfeito. Plácido. Vanda achou-a repulsiva.
Não voltou mais ali.
Na cama de casal, os papeizinhos transbordavam. Bel os recolhia, classificava (tentativamente), e depois os dava a Marcinho. Marcinho sentava na cozinha, e começava a compor a música.
O som da guitarra viajava até o quarto de Vanda, que emergia do corredor, despenteada e emburrada. Com os braços cruzados, ficava escutando Marcinho. De repente, interrompia-o, no meio de um acorde:
-- Tá uma merda.
E arrancava a guitarra das suas mãos. (Marcinho não ficava zangado). Mudava vários trechos da música. Os dois ficavam trabalhando até altas horas da noite; no dia seguinte, Bel os encontrava desmaiados na sala. Marcinho dormia no sofá. Vanda, no chão duro. Tinha os punhos fechados, como os de um bebê.
No final de junho, a dupla já tinha composto trinta músicas novas para a Simples Veneno. Foram convidados a lançar o seu segundo CD por uma grande gravadora. Era quase uma estreia. O primeiro CD não contava -- tiragem muito pequena.
Trinta músicas eram demais para um só álbum. Foi então que a Simples Veneno recebeu uma proposta da gravadora: gravar tudo já, lançar um CD com quinze faixas, e um segundo dali a seis meses, com o material que sobrara do primeiro. Todos ficaram entusiasmados com a ideia - menos Vanda.
-- Nem pensar - disse ela.
-- Nem pensar como, Vanda? - perguntou Marcinho.
-- A gente não vai gravar as trinta músicas. Só dez prestam.
Houve um murmúrio de revolta.
-- Isso na sua opinião - disse Cacau, aborrecido. A discussão se esquentou, as vozes subiram de tom. Bel concordava com a irmã. Marcinho estava confuso. O resto do grupo queria agarrar aquela oportunidade de qualquer jeito. As músicas estavam todas ótimas, por que Vanda era tão insegura? Por que não caía na real? Pensava que uma proposta daquelas pintava todo dia?
Vanda estava irredutível:
-- Não gravo esse lixo.
Finalmente, chegou-se a um acordo provisório. As trinta músicas seriam gravadas. Depois, o grupo decidiria o que fazer delas.
As gravações duraram três semanas. No último dia, Bel encontrou a irmã num canto, inconsolável:
-- Ficou tudo uma bosta.
-- Que é isso, Vanda? Você estava ótima, os meninos...
-- Ficou horrível, Bel.
A irmã olhou-a, alarmada: Vanda não estava bem. Emagrecera, e o seu rosto pálido parecia sofrer de um inchaço invisível. Articulava as palavras com dificuldade. Bel falou de novo em terapia, mas Vanda gemeu, impaciente.
No dia seguinte, ela passou a tarde toda no quarto do casal. Mas não deixou nenhum papelzinho.
Naquele domingo, a Simples Veneno tinha um show ao ar livre, num dos parques da cidade. Quando chegaram, de manhã cedo, ficaram surpresos com o tamanho do público.
-- Vamos arrasar -- previa Cacau, excitado, com uma risadinha maníaca.
A plateia era a melhor possível. Naquela pequena multidão, quem não conhecia a Simples Veneno dos bares, estava ansioso para conhecê-la. A gravadora colocara duas músicas para tocar na rádio (justamente as que Vanda considerava mais fracas).
A cada canção, ouviam-se mais aplausos. Finalmente, a banda chegou à melhor coisa que tinham gravado -- uma música longa, de harmonias dissonantes e ásperas. Os instrumentos todos foram se calando, até que sobrou apenas a voz de Vanda, dialogando com a bateria.
De repente, calou-se; e, num improviso que assustou o grupo, arrancou num longo solo de bateria. Decolou como um pássaro e manteve-se por um longo tempo nas alturas, arrastando o público atrás de si numa sucessão interminável de saltos mortais.
Os minutos iam passando. A plateia continuava muda, presa ao som da bateria. Mas o grupo começou a se entreolhar, preocupado. Não só temiam que o solo cansasse o público, como também se alarmaram com o rosto desfigurado de Vanda, debruçada sobre a bateria. Cacau olhou para Gênio e Marcinho. Eles acenaram de leve. E então o guitarrista começou a tocar, interrompendo bruscamente o solo de Vanda.
A baterista acordou, parou as baquetas ainda no ar, e olhou para Cacau. Tinha uma expressão dolorosa no rosto. Cacau desviou os olhos.
No fim do show, ninguém conseguia encontrar Vanda. Bel voltou para casa, já com um mau pressentimento. Vanda também não estava lá. E não voltou no dia seguinte. Bel chamou a polícia.
Todos acharam bobagem, precipitação. Não era a primeira vez que Vanda sumia. Voltaria no máximo em uma semana.
Mas duas semanas se passaram, e ela continuava desaparecida. Desesperada, Bel telefonou para Eliane.
-- Nunca mais vi aquela louca -- disse Eliane. -- Graças a Deus, aliás. A sua irmã precisa de internação, sabia?
Bel controlou-se para não xingá-la. Em vez disso pediu, humildemente, que ela a avisasse, se Vanda aparecesse.
Mas a verdade é que ninguém, nunca mais, viu Vanda. E não foi por falta de procurá-la: a família espalhou cartazes pela cidade inteira e pelo interior. Até um detetive foi contratado, e voltou de mãos abanando, meses depois.
Agora já faz três anos que ela sumiu. E é como se nunca tivesse existido. Só Cacau, às vezes, depois de muito beber e cheirar, vai terminar a noite encostado a uma certa ponte de Rio Tietê. Talvez ele espere ver, de repente, um barco cheio de velas, descendo pelo leito negro e fétido do rio.
Bel não sabe disso, porque não fala mais com ninguém da Simples Veneno. Rompeu com a banda, depois que eles gravaram os dois CDs, um atrás do outro -- exatamente como Vanda não queria.
Em todo caso, ela ainda conserva a velha bateria no quarto que era da irmã. Agora que Dandara tem oito anos, de vez em quando vem brincar com as baquetas. Escondida. Bel quer que a bateria continue sempre no mesmo lugar, para que, quem sabe, um dia...
Enfim: se um dia Vanda voltar.
(Ilustração: Edvard Munch - the escape - 1886)
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