domingo, 17 de maio de 2020

EVELINE, de James Joyce




Ela estava sentada junto da janela vendo a noite invadir a avenida. A cabeça estava apoiada contra as cortinas, e no nariz estava o cheiro do cretone empoeirado. Ela estava cansada. 

Havia pouca gente na rua. O morador da última residência passou a caminho de casa; ela ouviu o baque das passadas no calçamento de concreto e depois o ruído das pedras na estradinha antes das casas vermelhas. Lá costumava haver um campo onde eles costumavam brincar todo entardecer com os filhos dos outros. Depois um homem de Belfast comprou o campo e construiu casas – não casinhas marrons como as deles, mas casas claras de tijolos com telhados reluzentes. As crianças da avenida costumavam brincar juntas no terreno – os Devine, os Water, os Dunn, o pequeno Keogh, o aleijado, ela e os irmãos e irmãs. Ernest, no entanto, não brincava nunca: era crescido demais. O pai muitas vezes corria atrás deles pelo campo com uma vara de abrunheiro na mão; mas em geral o pequeno Keogh ficava de olheiro e dava um grito quando via o pai dela chegar. Mesmo assim, todos pareciam ter sido felizes naquela época. O pai dela não estava tão mal; e além do mais a mãe ainda estava viva. Tudo isso aconteceu muito tempo atrás; ela e os irmãos e irmãs tinham crescido; a mãe havia morrido. Tizzie Dunn também havia morrido, e a família Water tinha voltado para a Inglaterra. Tudo muda. Agora ela estava prestes a ir embora como os outros, a sair de casa. 

Casa! Ela olhou ao redor do cômodo, examinando todos os objetos familiares que havia espanado uma vez por semana ao longo de muitos anos, imaginando de onde vinha todo aquele pó. Talvez nunca mais fosse ver aqueles objetos familiares dos quais nunca tinha imaginado se separar. Mesmo assim, durante todos esses anos ela jamais tinha descoberto o nome do padre cuja fotografia amarelada pendia logo acima do harmônio quebrado ao lado das promessas coloridas feitas à Abençoada Margarida Maria Alacoque. Tinha sido um amigo de escola do pai. Sempre que mostrava a fotografia a uma visita, o pai a estendia com um comentário casual: 

– Agora ele está em Melbourne. 

Ela havia aceitado ir embora, sair de casa. Seria uma decisão sábia? Tentou avaliar todos os aspectos da questão. Em casa, tinha abrigo e comida; tinha todas as pessoas que havia conhecido durante a vida inteira por perto. Mas é claro que precisava dar duro tanto na casa quanto no trabalho. O que diriam a seu respeito nas Stores quando descobrissem que tinha fugido com um rapaz? Talvez que era uma boba; e a vaga dela seria preenchida através de um anúncio. A srta. Gavan ficaria contente. Sempre perdia a paciência com ela, em especial quando havia outras pessoas escutando. 

– Srta. Hill, não viu que as clientes estão esperando? 

– Srta. Hill, por favor, tente parecer mais animada. 

Ela não derramaria muitas lágrimas por abandonar as Stores. 

Mas na nova casa, em um país distante e desconhecido, não seria assim. Lá ela estaria casada – ela, Eveline. As pessoas haveriam de tratá-la com respeito. Não seria tratada como a mãe havia sido. Mesmo agora, com mais de dezenove anos, às vezes sentia-se vulnerável à violência do pai. Sabia que essa era a causa das palpitações. Quando estava crescendo o pai nunca tinha batido nela como fazia com Harry e Ernest porque era uma garota; mas nos últimos tempos havia começado a fazer ameaças e a dizer o que faria com ela não fosse por conta da falecida mãe. E agora ela não tinha ninguém para protegê-la. Ernest havia morrido e Harry, que estava no negócio de decoração de igrejas, passava quase o tempo inteiro em algum lugar no campo. Além do mais, a invariável discussão por causa de dinheiro nas noites de sábado estava começando a aborrecê-la além da conta. Ela sempre dava o salário inteiro – sete xelins – e Harry sempre enviava o quanto podia, mas o problema era conseguir dinheiro do pai. Ele dizia que a filha desperdiçava o dinheiro, que não tinha a cabeça no lugar, que não daria o dinheiro ganhado a muito custo para que ela o desperdiçasse pelas ruas e muitas outras coisas, pois via de regra acabava em um estado bastante precário nas noites de sábado. No fim ele entregava o dinheiro e perguntava se ela pretendia comprar o jantar de domingo. Então ela precisava sair de casa o mais depressa possível para fazer as compras, agarrando-se à bolsa de couro preto enquanto abria caminho a cotoveladas em meio às multidões e voltando tarde com a pesada carga de mantimentos. Era um trabalho duro manter a casa em ordem e cuidar para que as duas crianças deixadas a seus cuidados frequentassem a escola regularmente e fizessem as refeições regularmente. Era um trabalho duro – uma vida dura –, mas agora que estava a ponto de abandoná-la não parecia uma vida totalmente indesejável. 

Ela estava prestes a explorar uma vida nova com Frank. Frank era muito gentil, másculo, sincero. Ela iria embora no barco noturno para casar e viver com ele em Buenos Aires, onde Frank tinha uma casa esperando por ela. Lembrava muito bem da primeira vez que o viu; ele estava hospedado em uma casa na rua principal onde ela costumava visitá-lo. Tudo parecia ter acontecido há poucas semanas. Ele estava parado junto do portão, com o quepe puxado para trás da cabeça e os cabelos caídos para frente por cima do rosto de bronze. Depois os dois se conheceram. Ele a esperava todas as tardes no lado de fora das Stores e a acompanhava até em casa. Levou-a para ver The Bohemian Girl e ela sentiu-se extasiada ao sentar em uma parte desconhecida do teatro em companhia dele. Frank adorava música e também cantava um pouco. As pessoas sabiam que os dois estavam se cortejando e, quando ele cantava sobre a garota que amava um marinheiro, ela sempre sentia uma agradável confusão. Ele a chamava de Pitoca por diversão. Em primeiro lugar tinha sido uma emoção para ela conhecer um rapaz, e depois começou a gostar dele. Frank contava histórias sobre países distantes. Havia começado como moço de convés ganhando uma libra por mês em um navio da Allan Line que foi até o Canadá. Contava para ela os nomes dos barcos em que tinha trabalhado e os nomes dos diferentes serviços. Tinha navegado pelo Estreito de Magalhães e contava histórias sobre os terríveis patagônios. Tinha se dado bem em Buenos Aires, segundo disse, e estava de volta ao país natal apenas durante as férias. Claro, o pai dela tinha descoberto o envolvimento e proibido que os dois se falassem. 

– Eu conheço esses marinheiros, disse. 

Um dia ele discutiu com Frank e a partir de então ela começou a encontrar o amado em segredo. 

Ficou mais escuro na avenida. O branco das duas cartas que ela tinha no colo tornou-se indistinto. Uma era para Harry; a outra era para o pai. Ernest era o favorito dela, mas também gostava de Harry. Havia notado que o pai tinha envelhecido nos últimos tempos; ele sentiria falta dela. Às vezes ele era muito gentil. Pouco tempo atrás, quando ela passou um dia de cama, ele leu uma história de fantasmas e preparou torradas na lareira. Uma outra vez, quando a mãe dela ainda era viva, todos foram fazer um piquenique na Colina de Howth. Ela lembrava que o pai tinha posto o chapéu da mãe para fazer graça na frente dos filhos. 

O tempo estava acabando, mas ela continuava sentada junto da janela, com a cabeça apoiada na cortina, inalando o cheiro do cretone empoeirado. Ao longe na avenida ouvia-se o som de um realejo. Ela reconheceu a melodia. Estranho que surgisse justo naquela noite para lembrá-la da promessa feita à mãe, a promessa de cuidar da casa enquanto pudesse. Lembrou-se da última noite da doença da mãe; e mais uma vez se transportou para o quarto escuro e apertado no outro lado do corredor, de onde ouvia uma melancólica canção da Itália tocando na rua. Deram seis pence ao tocador de realejo e mandaram-no embora. Lembrou do pai voltando até o quarto da doente e dizendo: 

– Esses malditos italianos que vêm para cá! 

Enquanto pensava, a visão triste da vida da mãe lançou um feitiço na essência de seu ser – uma vida de sacrifícios cotidianos terminada em uma loucura final. Ela estremeceu ao ouvir mais uma vez a voz da mãe repetir com uma insistência tola: 

– Derevaun Seraun! Derevaun Seraun![*] 

Ela se levantou em um súbito impulso de terror. Fugir! Precisava fugir! Frank haveria de salvá-la. Ele lhe daria vida, e talvez amor, também. Mas ela queria viver. Por que deveria ser infeliz? Ela tinha direito à felicidade. Frank haveria de tomá-la em seus braços, estreitá-la em seus braços. Ele a salvaria. 


* * * 

Ela estava em meio à multidão ondulante na estação da North Wall. Frank segurava a mão dela e ela notou que ele estava falando, dizendo e redizendo alguma coisa sobre a passagem. A estação estava cheia de soldados com bagagens marrons. Pelas amplas portas dos armazéns ela vislumbrou o vulto negro do barco, parado ao lado do muro do cais com as vigias iluminadas. Ela não respondeu nada. Sentiu o rosto pálido e frio e, em um labirinto de sofrimento, rezou a Deus para que a guiasse, para que indicasse o caminho do dever. O barco soltou um longo apito triste em meio à neblina. Se fosse embora, amanhã estaria no mar com Frank, deixando uma trilha de vapor a caminho de Buenos Aires. A passagem estava reservada. Será que ainda seria possível mudar de ideia depois de tudo o que ele tinha feito? O sofrimento despertou-lhe uma náusea no corpo e ela continuou movendo os lábios em uma ardorosa oração muda. 

Um sino dobrou no peito dela. Sentiu quando Frank tomou-lhe a mão: 

– Venha! 

Todos os mares do mundo desaguavam no peito dela. Ele a puxava para o fundo: acabaria por afogá-la. Ela se agarrou com as duas mãos à balaustrada de ferro. 

– Venha! 

Não! Não! Não! Era impossível. As mãos se agarravam desesperadas ao metal. Em meio aos mares ela soltou um grito de angústia! 

– Eveline! Evvy! 

Frank tinha ultrapassado a barreira e naquele instante a chamava. Outras vozes gritavam para que andasse, mas ele continuava a chamar. Ela voltou o semblante branco em direção a ele, passiva, como um animal indefeso. Nos olhos dela não havia sinal de amor, despedida ou reconhecimento. 



[*]Derevaun Seraun; Uma frase que pode ser duas coisas: ou uma frase que James Joyce inventou para a história, ou uma tradução de gaélico irlandês que significa "No final do prazer, há dor". Sua mãe poderia estar dizendo isso a ela para avisá-la que, embora as coisas possam parecer boas para Eveline naquele momento, no final será pior.(Nota do blogger) 



(Dublinenses; Tradução: Guilherme da Silva Braga) 



(Ilustração: John Bellany - Woman of the sea)





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