terça-feira, 14 de janeiro de 2020
EU, ANA CLARA BREVES DE MORAES, NICOTA, CONDESSA HARITOF, ESTOU MORRENDO, de Mary del Priore
Deslizo num abismo. Uma boca invisível aspira minhas últimas forças.
Sinto que afogo, mas dizem que sofro por nada. Que não há causa específica para minha dor, quando desfilam horríveis imagens na sonolência das primeiras horas da manhã. Engano. Vivo um sofrimento lancinante, e não é físico. Sofrimento sem natureza ou causa conhecida. É a neurastenia, estrada noturna e sem fim. Estrada sem ponto de chegada e solitária. Morro de dor, coberta de manchas azuis que marcam meus braços. São as manchas de melancolia. Bebo um resto de vida sem sede.
Na mesa dos santos, toalha branca e velas de cera pura. Preferia que abrissem a janela. Sufoco. Há um cheiro de urina disfarçado pelo vaso de jasmins. Não me controlo mais. Ouço as portas que se fecham. Vultos circulam à volta da cama. Alguém diz que ainda estou formosa, que até parece que vou levantar. Porém, cochichos anunciam a minha morte. As serpentinas e as mangas de vidro cintilam. Maurice e os outros insistirão em me esquecer? Caso se recusem a se lembrar, me tornarei mais cruel e mais presente. Continuarei viva em meu túmulo. Irei me comunicar por aparições ou sinais exteriores. Assombrarei Maurice.
Digo isso porque estou morrendo. Devo aceitar meu destino. Nada de emoções excessivas. Meus cabelos: estarão penteados? Alguém murmura em meu ouvido: “Trouxe a fita benta”. Um pedaço de cetim não irá me arrancar da agonia. Outro me pede para levar um recado ao irmão falecido. Quase vejo a Dama de Branco. Atrás dela, meus pais. Outra voz puxa o Creio em Deus Pai e a Oração dos Agonizantes. Rezam alto e baralhadamente.
Toque de sineta. É o padre, meu tio. O barulho que vem junto é de criados e ex-escravos da fazenda, orando. Uma onda de sons ininteligíveis acaba em minha cama. Trajados de preto, vizinhos e amigos enchem o quarto. Imobilizada, lembro que me esqueci de dizer quantas missas quero por minha alma ou onde desejo ser enterrada. As janelas vão se cobrir de reposteiros em veludo com franjas douradas. Regina Angelorum vai ajudar a pendurá-las. Um negro já deve ter ido buscar folhas de canela, cravo e laranjeira, para estendê-las na entrada da casa. Outro irá distribuir as cartas-convite para o funeral.
Quando sair meu caixão num coche de cavalos com plumas escuras na cabeça, os criados irão apagar os rastros da morte. Minha camisola e roupa de cama serão doadas ou queimadas. A casa será varrida com especial cuidado de empurrar a poeira pela porta da frente, que ficará semicerrada, impedindo o retorno de minha alma. No quintal, jogarão fora a água do último banho e enterrarão meu cabelo e unhas cortadas em lugar previamente escolhido por tia Maria Gata. As pistas serão embaralhadas para que eu não volte. Para que eu veja que não há mais lugar para mim. Depois que eu fechar os olhos, meu nome deixará de ser pronunciado. Guiada por São Miguel, aspirada pela lua, minha alma há de passar à Via Láctea. Na cidade de Piraí, as badaladas da agonia hão de cair da torre, pedindo orações. Os passantes hão de se descobrir, ajoelhar e bater no peito.
Sinto que o movimento à volta de minha cama cessou. Uma falsa calma encarna na voz que tenta me confortar: “Pede a Nosso Senhor Jesus Cristo que perdoe teus pecados, tome posse de tua alma e a limpe com o preciosíssimo sangue que por ela derramou”. Nada tenho a confessar. Maurice diz que sou uma santa. Serei uma alma bendita cercada por luz azulada e clara. Quero ser enterrada com os sapatos de laço franceses. Não! A tradição exige enterro sem ornatos. O luxo deve desaparecer, pois não se penetra assim a bem-aventurança. Melhor amortalhada no hábito de Nossa Senhora do Carmo, com touca e peitoral de opala branca.
Quem está ao pé do leito se curva, une as mãos, se abraça, troca palavras com Maurice. Fragilizados por meu fim próximo, vão encontrar reconforto nos gestos e palavras, fortificando o mundo dos vivos. Tais ritos protegem os que ainda estão nele. Bruscamente compreendi: como são importantes, uns para os outros, aqueles que seguem vivendo. Não, não haverá milagre, nem vou sentar no caixão como fez a moça que julgavam finada, na matriz de Nossa Senhora das Dores de Piraí. Fecharei os olhos para sempre. Hoje mesmo.
Agora, tudo escuro. Frio. Muito frio. “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará.” Mal consigo acompanhar as preces e mexo os lábios com dificuldade. As palavras não têm som. Sinto os toques da extrema-unção: nos olhos, orelhas, nariz, boca e mãos, instrumentos do pecado. Quero despedir-me de Maurice. Dizer-lhe que o amei. Não, que o amo. Mas o odeio, também. O amor: foi mais fácil fazer do que viver. Beije-me, Maurice, beije-me onde o sol não alcança. Silêncio. Mais frio. Novamente, a boca que mais parece um buraco negro.
(Fazenda Bela Aliança, março de 1893)
(Beije-me onde o sol não alcança)
(Ilustração: Frida Kahlo, Girl with Death Mask by 1938)
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