quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

COBAIAS HUMANAS: LIÇÃO DE TORTURA, de Daniela Arbex





Havia um estranho entre e sai de carros naquela manhã de 8 de outubro de 1969. Jipes e carros pretos chegavam a toda hora na 1ª Companhia do Exército da Vila Militar, no Rio de Janeiro. Transferidos para aquela unidade após seis meses de prisão em Belo Horizonte, os integrantes do Colina foram mantidos nus e em precárias condições de higiene no interior de celas ladrilhadas, com dimensões inferiores a quatro metros quadrados. Um inquérito havia sido instaurado na capital fluminense para apurar a participação dos prisioneiros do comando mineiro em ações realizadas lá, como a expropriação ao banco Tricontinental e a fracassada tentativa de assalto ao Banco do Estado da Guanabara. 

— Quem matou os policiais em Minas? — perguntou um oficial ao grupo mineiro em seu primeiro dia na unidade do Rio. 

Silêncio. 

— Não vão responder? — ameaçou o militar. 

— Fui eu, respondeu Murilo. 

Separado dos demais ainda pela manhã, Murilo passou o dia sendo interrogado. Os membros do Colina ainda puderam ouvir seus gritos. À noite, ele foi colocado na cela. Seu rosto estava deformado. 

Numa manhã, Pedro Paulo Bretas disse a Ângelo, irmão de Murilo, que não suportava mais as atrocidades que estavam sendo cometidas na Vila Militar. Os militares insistiam em arrancar dele informações sobre um aparelho alugado para cuidar dos feridos em combate, embora não houvesse um imóvel com essa finalidade. Os representantes da força não acreditavam. Achavam que Bretas estava fazendo jogo duro. Com diversos ferimentos nas costas, ele foi surpreendido com a chegada de um pacote de sal. Dois militares pegaram com as mãos um punhado no saco e jogaram sobre as feridas abertas no estudante. Bretas quase desmaiou de tanta dor. 

— Cabral, não vou aguentar uma nova sessão de tortura. Não vou! — avisou Bretas a Ângelo. 

— Deixa comigo. Na próxima, você vai dizer a eles que eu sei o endereço desse lugar — disse o comandante do Colina, que também havia recebido diversas descargas de eletrochoque na Polícia do Exército da Guanabara. Em uma ocasião, Ângelo teve os dedos das mãos esmagados com um ferro. 

— Onde fica a casa que vocês atendem os guerrilheiros feridos — insistia o militar com Ângelo, enquanto usava a palmatória de madeira contra as solas dos pés, as palmas das mãos e as nádegas do líder do Colina. 

Bolhas de sangue já haviam se formado nas regiões atingidas, mas seus algozes desejavam arrancar dele a confissão. Também queriam ouvi-lo implorar por sua vida. Ângelo não gritou como eles queriam, mas se jogou contra a janela de vidro da sala, caindo ensanguentado no pátio. Perdeu os sentidos e foi levado ao hospital militar. Com cacos pelo corpo, tomou dezenas de pontos nas costas e nos braços. Apesar de muito ferido, sentia-se aliviado por estar livre da tortura. A trégua na rotina de agressões durou pouco. 

— Sabe que dia é hoje? — perguntou um capitão para os ocupantes da cela. Oito de outubro. Amanhã faz dois anos da morte do líder que vocês idolatram, o Che Guevara. Vamos comemorar. 

“Comemorar o quê?”, pensou Nilo. 

Apesar do sarcasmo do militar, não foi o que ele disse que deixou Nilo preocupado, mas o que não falou. Afinal de contas, o que os esperava? 

Não demorou para que os prisioneiros descobrissem. Ainda pela manhã, Nilo, Murilo, Ângelo, Afonso Celso Lana, Júlio Bittencourt, um ex-PM, além de um preso comum foram retirados das celas. 

Levados em fila indiana, estranharam ao ouvir o burburinho de vozes que vinha do interior da sala. Estavam assentados no chão do corredor, quando um recruta passou carregando uma barra de ferro usada comumente como pau de arara. Os presos se entreolharam. Maurício Paiva chegou logo depois. Estava pálido. 

— Me mandaram segurar um fio e me deram vários choques. Disseram que era apenas um teste para ver se o aparelho estava funcionando bem — contou, assustado. 

Não houve tempo para falar nada. 

— Levanta! — determinou um oficial a Ângelo. 

Diante de homens armados com metralhadora, o universitário seguiu o militar. 

Os outros fizeram o mesmo. Ângelo entrou primeiro. 

— Apresento a vocês Ângelo Pezzuti, o comandante do Colina. 

Com ordem para entrar na sala, os outros sete presos levaram um susto. Cem homens fardados lotavam o salão. 

— Oh! — manifestou-se a assembleia composta em sua maioria por sargentos da Aeronáutica. 

— Podem tirar as roupas — avisou o tenente Ailton. 

Nilo diz ter ficado de short, mas houve os que foram colocados nus. 

— Hoje vamos ensinar aos senhores alguns métodos de interrogatório que têm funcionado bem na missão de combate aos crimes cometidos contra o país por terroristas — disse o tenente segurando nas mãos uma vareta semelhante às usadas em salas de aula por professores. 

Ao iniciar sua fala, o tenente Ailton determinou que o projetor fosse ligado. Os slides continham desenhos de tortura. As cenas deveriam ser reproduzidas ali, naquele auditório, com os jovens escolhidos para serem cobaias humanas. O cabo Mendonça, o soldado Marcolino, além dos sargentos Andrade, Oliveira, Rossoni e Rangel foram chamados para ajudar na “exposição”. 

Descalço, Murilo foi colocado sobre duas latinhas abertas que feriram as solas dos seus pés. Maurício continuou a receber choques, tantos, que chegou a cair próximo à mesa reservada para oficiais. Muitos riram. 

— Olha, cuidado que o cara que está levando choque às vezes finge que desmaiou. Às vezes, ele faz assim com o pescoço para trás, ó, mas é mentira. Aí você dá uns choques nele para ver se ele desmaiou mesmo — orientava Ailton. — Abre a mão aí. 

Pá! 

O ex-policial militar teve a palma das mãos ferida pela palmatória. 

Pá! 

— O que é isso, tenente? Ô sargento, não faz isso comigo não — implorava o homem que mais tarde viu cair a unha. 

Um preso comum foi colocado no pau de arara. Acabou sendo o mais agredido do grupo. 

— Ai... Ai... — gritava, diante da plateia covardemente assentada. 

Nilo, por sua vez, foi obrigado a apoiar uma das pernas sobre uma cadeira. Deveria equilibrar um catálogo telefônico em cada braço enquanto era atingido por socos no estômago. 

— Segura isso aí. Se deixar cair, vai levar mais porrada. 

O militante tinha certeza de que jamais seria o mesmo após aquele episódio. Acuado como um animal numa caçada, ele teve confiscada a sua humanidade. Estava de novo no circo. Não naquele mágico da sua infância, mas em um no qual era exibido como uma fera por domadores sem escrúpulos. 

De vez em quando, o som de risadas cortava o desconcertante silêncio que pairava no ar. As cenas de barbárie, porém, foram tão perturbadoras que, durante a sessão, um sargento não aguentou ficar na sala. Outro vomitou. 



(Cova 312 – A longa jornada de uma repórter para descobrir o destino de um guerrilheiro, derrubar uma farsa e mudar um capítulo da história do Brasil




(Ilustração: Monumento Tortura Nunca Mais, concebido por Demétrio Albuquerque - Recife - PE - foto de autoria não identificada)




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