sexta-feira, 8 de março de 2019
OLHO, de Myriam Campello
Quando ela acorda, põe imediatamente o seio esquerdo em minha boca. Sei muito bem que não é assim que se começa uma história. Mas a língua portuguesa nada mais é para mim que um instrumento de compreensão, de clareza científica. Por meio dela transmito minhas aulas de Botânica, leio as separatas, teses e livros que me informam das novidades do ramo por esse Brasil afora. Não sou escritor, isso vê-se. Pouco entendo de sintaxes ou estilos e sim de vegetais, florações. Um reino mais modesto. Devo confessar no entanto que a beleza perfeita de uma Phalaenotsis Winter Dawn var. Mauna Kea, por exemplo, me entusiasma bem mais que a frase cintilante do autor renomado. Se deito ao papel notícias do vendaval que no último mês desmantelou minha vida é por justamente sentir-me em pedaços.
Português de nascença e ex-seminarista de hábitos metódicos, não que a solidão eu não possa suportá-la. Mas na de minha irmã e eu que vivemos sós nesta casa há uma tal qualidade de exílio e afastamento dos homens que por vezes nos sufoca ao impossível. Não há a quem falar. Do que acontece, não se pode dizer por proibido. Vivemos arredios, sem sociedade com outros além de um boa-tarde seco, um bom-dia reservado que marca limites. Não serviria conversar com aqueles a nossa volta. Esbarrando em um vizinho, falo sobre plantas orquídeas, minha especialidade. Isto é, perguntam-me e respondo, nada mais. E entro em casa.
Minha irmã sei que sente-se como eu, embora minta: não quer aumentar a angústia que lê em meus silêncios. Ou por outra, sente-se como eu embora feita de material diverso. É mais forte, talvez. Talvez mais livre. Onde hesitei sequer pestanejou, radiosa como a Epidendrumfragrans, a mesma nitidez alba, a mesma elegância. Sua paixão tem a firmeza imaculada de certas sépalas, de certas pétalas. Mas tanto a ela quanto a mim se alguém nos oferecesse voltar no tempo faríamos tudo igual, privilégio dos atos perfeitos. O que não anula a noção de catástrofe que nos ronda, um perigo de partir-se o cristal a todo instante. É o tormento que se cola às minhas insônias. Pois o inferno mesmo é amar o proibido. Para todo o resto se encontra um jeito, se arma uma saída. Cirrose, lepra, enfarte, até mesmo certos tipos de câncer os médicos acham de curar. Mas experimente querer por um segundo impensável a própria irmã, querer como um homem quer uma mulher, eu digo tê-la. Pesadas comportas descerão sobre você em cadafalsos, isolando-o do mundo. Jaula sim. E o desterro brutal, o deserto. Terá que aguentar o silêncio como se fosse este o veículo natural entre os homens, já que a palavra denuncia a verdade e esta é arma de suicídio. E dar-se a uma existência surda, contida, de onde a espontaneidade será expulsa como um mal. Será um mal, trocada pela vigilância de si. Cárcere do desejo. Mentiras. Que nem assim adiantam. A primeira carta anônima meteu-se à minha correspondência mês atrás, caída do azul. Repelente como papéis desse tipo, dizia apenas “eu sei tudo” em letra forçada, velando-se. Estupor e medo subiram por mim. Como podiam ter visto algo e o quê se minha irmã e eu só em casa nos tocamos? Se só entre nós permitimos que a espuma do amor flua e se derrame? Junto aos outros, também o olhar é mantido sob ferros. Sofro por esse sol ardente que se congela em contato com o mundo, como certas substâncias. Mas apesar da tela que pretendíamos vazia, vazada como um olho cego, varada de qualquer expressão que não a consentida, ainda assim nos viram.
Desprenderá a paixão algum cheiro, traço, uma energia qualquer que emitindo-se nos denunciasse? Somos como lesmas? Outros o são? Analiso detidamente os casais em torno. Onde seus corpos se chocam, os pontos de pressão. Reentrâncias e volumes que disfarçadamente se esfregam em público. Eles, sim, fazem ondular a atmosfera com sua animalidade visível. Mas nós? Entre minha irmã e eu há sempre um rigor imposto, uma distância necessária, cerimônias que calham bem a meu jeito formal de ex-seminarista. Pois com olho sujo violaram nossa aparência impecável e surpreenderam-nos, os cães nojentos. Falo no plural por achar que a desgraça acode aos pares, às trincas; um canalha era pouco. Mas tenho que só uma víbora a nos morder o calcanhar. É ignorar-lhe os silvos. Cansar-se-á.
Vista de dentro, nada existe de estranho em nossa relação. Minha irmã e eu somos como todo mundo, embora o disfarcemos. Gostamos dos espaços amplos, da textura das pétalas, de receber amigos e bradar nosso amor sem que empalideçam a nossa volta. Gostamos também daquela rua escura, por exemplo. Dando aulas à noite, passo por uma rua escurecida por grandes exemplares de Ficus religiosus, troncos imensos mergulhados na sombra que os namorados aproveitam como pontos de apoio. Por que também não posso levar minha irmã para lá, erguer sua saia e comê-la contra a casca rugosa? Reivindico para nós os mesmos atos que qualquer par de amantes chancela com a displicência de um direito divino. A ideia persegue-me dia e noite, acossa-me os sonhos, atropela-me as aulas, dando-me a expressão concentrada de um ser em transe. As margens de minhas anotações se cobrem com desenhos de homem e mulher de pé contra uma árvore, em posição de cópula. Como um pintor rupestre, reproduzo-os com insistência. Os desenhos se tornam cada vez mais esclarecedores, o traço mais seguro. Tenho medo que abram meus livros, vejam por acaso meus papéis. Qualquer momento de folga guia minha mão e da caneta ou lápis brota a imagem fixa: homem, mulher e árvore. Conheço bem a cena. Só me falta vivê-la.
Há cinco dias nova carta anônima chegou-me às mãos. “Estou de olho em vocês”, rezava a mesma letra sob máscara. Nada digo a minha irmã, pois algum terror sempre imprime-se a tais documentos. Não quero assustá-la.
Apesar do temor, um prazer obscuro também se esgueira em mim: finalmente somos vistos. Gosto desse olho que nos cobre de uma gosma obscena. Nem as paredes nos protegem.
Inconscientemente, assumo posições escabrosas para agradá-lo. Quando derrubo minha irmã na cama, sei que o olho me vê e meu pau lateja mais duro. Invado-a então com o vigor de quem escava um poço. Ontem a machuquei. Mas não reclamou, como se por alguma razão também necessitasse disso. Ao contrário, dilacerou-me as costas num êxtase profundo, secreto. Enfiado em sua vagina, vasculhei-a com uma violência de estupro. Agora somos três. A lembrança disso logo me faz enchê-la de um jorro quente e espumante.
Hoje, ainda bem cedo, fui ver as orquídeas na grande estufa atrás da casa. Na espécie vegetal reina uma liberdade opulenta, caprichosa, que muito bem faria ser vista por quem nos persegue. Há de tudo. Algumas flores recebem dos pássaros o pólen necessário. Outras do vento. Ainda outras se autofecundam.
E quero ver se aponta-me alguém algo mais esplêndido que a Paphiopeclilum maudire Magnficum, cuja carnação branca de veios verdes lembra folhas a virarem pétalas, surpreendidas na alquimia. Quanto à bela Sophronitis coccinea Reichb, delicadamente vermelha, é minha irmã que me traz à memória. Embora a palavra orquídea venha do grego orchídion “pequeno testículo”, o labelo da flor assemelha a uma vulva deliciosamente aberta. Nomearam-na os gregos errado por não apreciarem mulher. Já eu sim. Morrendo-me a mãe viúva há quatro anos e não suportando mais o seminário, resolvi abandoná-lo. O sexo aguilhoava-me além do que se pedia a um sacerdote. Para evitar futuro desgosto à Igreja, e a mim uma contínua infelicidade, decidi ser professor. Na casa sobrara apenas minha irmã, que não via há tempos.
Espantei-me com a desabrochada moça a receber-me, bonita, quase uma estranha nos seus dezoito anos, eu que guardara dela uma imagem infantil. Aos poucos, porém, fluindo os meses, uma intimidade nova nasceu entre nós. Nada acostumado às mulheres, naquela tudo me encantava. Às vezes a olhava sem rebuços, mesmo às escâncaras. Outras secretamente.
Gostava de vê-la sair do banho, os cabelos limpos envoltos na toalha em turbante. Lufadas de colônia seguiam-lhe cada gesto, espécie de neblina que se tornou para mim a denunciadora inefável de sua presença.
Deslocava-me para o quarto dela, atraído de corpo e alma, fisgado como um peixe. Oferecia-me para segurar-lhe o secador. Em silêncio, voluptuosamente, entregava a cabeça em minhas mãos. Eu libertava os cabelos curtos como os de um menino, muito louros, fios de seda que a água escurecia brevemente como num ato mágico. Eriçados pela minha mão, varridos pelo jato quente como campo de trigo ao vendaval, os pelos molhados desfaziam-se em mil fios leves, secos agora, novamente de ouro. Meu prazer aumentava quando isso era feito sob o sol. Ativada pelo banho, iluminada pela luz, em sua pele clara imprimia-se o tom das pequenas rosas silvestres que cresciam nos jardins do mosteiro.
Sequioso, sem me fazer perguntas, buscava secretamente novas formas de contemplá-la. Preparando-se para sair tinha-me sempre por perto. Vestia-se, é claro, sozinha, a porta do quarto nos separando. Mas eu a observava pintar-se dentro do banheiro, encostado à parede, uma displicência fingida escondendo a tensão perturbadora. Atento, acompanhava o pó lhe cobrindo o rosto, o ruge tornando humano o tom só declarado em pétalas. Fria, absorta, ela examinava estranhamente a imagem do espelho como se a desconhecesse, namorando-se. Via sem dúvida uma mulher bonita. Quando pintava a boca com o batom vermelho, uma resposta clara esboçava-se no centro do meu corpo. Esperava que saísse e masturbava-me furiosamente no ar saturado de perfume.
Às vezes a surpreendia com uma expressão tão intensa fixada em mim que bem podia ser desejo. Mas este, se o fosse, era logo varrido por autocontenção implacável que a obrigava a arredar a vista. Só voltava a fitar-me com o olhar limpo de tudo que não fosse ternura e um leve toque de zombaria, se de mim ou de si nunca soube. Travar-se-ia nela o mesmo combate agônico dilacerando-me? Muitas vezes chamei-me de louco, duplamente louco por pensar assim.
Um dia, certa greve de professores me fez voltar mais cedo do trabalho. A casa boiava em silêncio, como sem ninguém. Larguei livros e um caderno cheio de meus traços em qualquer lugar e empurrei a porta do banheiro. Com movimento de susto, minha irmã cobriu-se com a toalha. Acabara de tomar banho e não esperava tão cedo minha volta. Durante um longo momento ficamos ali, um diante do outro, imóveis. O coração selvagem. Meu primeiro impulso foi virar-me e sair, mas forças contrárias o combateram, paralisando-me. Finalmente o desejo me sufocou. Fui até ela e puxei a toalha. Ainda tentou resistir, virou-se mas acabou cedendo, posso dizer que muito menos à força que à minha vontade. O grande espelho do banheiro viu quando beijei sua nuca loura e explorei-lhe o odor, minha boca eriçando os pelos sedosos, a fronteira entre pele e pelo que sempre quisera sondar. Virei-a de frente. Nosso banheiro tem uma antiga pia de mármore, muito sólida. Ergui minha irmã e sentei-a ali, naquela borda. Quando abri a boca e ela sentiu minha respiração dolorida, apressada como a de um animal que sofre, só podia fazer mesmo o que fez. Pegou o seio duro com a mão e o pôs em minha boca. A mucosa incendiada de febre o envolveu. Minha língua rolou pelo mamilo tentando derretê-lo, açoitando o botão de carne em todas as direções. Chupei, mastiguei, devorei seus seios com uma fome antiga. Sempre os mastigo longamente antes de caminhar pelo resto de seu corpo. Azeitonas que se enrijecem, vermelhas, e largam seu suco em minha boca.
Puxei-a para o quarto e joguei-a na cama. Com a língua, umedeci sofregamente e por muito tempo as fendas de seu corpo. Quando a cobri, ela quis. Abriu-se como fruta que se racha no solo. O desejo é vagalhão enfurecido, avalanche que se nutre do próprio excesso para melhor derrubar e engolir. Iniciado, nada pode detê-lo. Se abrissem a porta e me vissem dentro de minha irmã, gozando-a, meu sêmen se estancaria? Penso que não. Uma vez explodindo, é esperar que a convulsão cesse por si mesma. Assim, fomos de roldão nas asas da carne até que o esgotamento nos fez dormir, eu ainda com o membro dentro dela. Desde então vivemos o que podemos, equilibrando-nos no fio aguçado.
Apesar do dissímulo, eis-nos fortes como um par de leões. Antes deviam nos ver, que nos escondermos. Sabemos contudo que existe o que deve ser olhado e o que não deve sê-lo. Este inclui o relâmpago, por exemplo; o andar furtivo de um rato; pássaros fazendo ninho; dois amantes que se beijam. Como os mistérios de Elêusis, são matéria interdita, esfera do sagrado. Uma proibição implícita os protege.
Do mesmo modo disfarçado e sonso com que os contemplamos, observo minha irmã, atualmente mais silenciosa que nunca. Pensamentos febris fulguram em suas íris douradas como a Brassidium Aloha var. Elisabeth, um amarelo pintalgado de madeira clara, flores fugidias que parecem exibir duas matérias diferentes. É só distrair-me e capto os pequenos faróis pousados sobre mim com algo movendo-se por trás deles como sob um véu. Não adianta perguntar-lhe nada, não o dirá: quer poupar-me de tudo. E se não fosse só isso? Preciso observá-la melhor.
Lanço também aos namorados sob as árvores o mesmo olhar turvo, fugidio. Hoje passei lentamente pela rua escura para registrar o que fazem. O olho pronto a disparar como uma câmera. Escolhi um par: nem me perceberam, aos beijos, esfregando-se. Também quero ter minha mulher sob as árvores. É uma ideia fixa. O odor do tronco crestado e das folhas crescidas à chuva e ao sol se misturaria ao de minha irmã, tépido, de carne humana florescente.
Paro na rua ofegante, de nariz para o ar, os pulmões cheios até que doam. De repente, as células do corpo vibrando com a força do prazer contrariado me avisam que estou perto de realizar meu desejo. Como um cavalo veloz tolhido pela brida, basta-me um sinal. Basta-me um leve empurrão, o toque que precipita no abismo coisas já abaladas. Estou, estamos, no limite da resistência. Quero ser visto, exijo que me vejam. Quero o olho do mundo sobre nós, esse banho salgado e primordial que colará ainda mais minha irmã a mim. Vasculho a mente em todas as direções para decifrar o enigma. Em torno de mim tudo está fechado, imutável. O céu impassível não me diz com que sinal vencerei. Não desisto.
Chego em casa incendiado como nunca. Quem sabe a resposta estaria ali, entre as paredes que nos cerram? Um bilhete de minha irmã avisa-me que logo voltará. Ando pelos cantos a esmo, as paredes devolvem-me muros frios. Não há salvação. Um desespero de morte tolhe-me o peito quando entro no escritório e ponho-me automaticamente a desenhar. Homem, mulher e árvore enchem um caderno encontrado ao acaso. O Ficus religiosus acobertando o par de pé, enlaçado como numa gravura hindu. O pênis dele mergulhado nela como um punhal.
Desenho incessantemente durante algum tempo em busca de um alívio que não chega. Então paro, ofegante. Meus olhos caem sobre a correspondência na mesa, o envelope de cima com a letra embuçada que nos persegue. Desta vez, no entanto, algo familiar se destaca dele e investe contra meus olhos, rápido inseto esvoaçante. Numa revelação, reconheço sua função secreta. Rasgo o envelope em alvoroço. “Um gesto em falso e eu os denuncio.” Uma onda quente de amor envolve-me com doçura. Somos iguais. Precisamos do peso do mundo. Minha irmã usa cartas anônimas. Já eu quero a árvore e a rua escura. É um grande salto no vazio, um salto sem retorno. Mas retornar para quê? Esta noite me casarei com ela sob a árvore. Esta noite sem falta.
(Cem melhores contos brasileiros do século)
(Ilustração: Sarah Anne Johnson - Wonderlust)
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