domingo, 17 de março de 2019

GENEALOGIA, de Manuel de Freitas




  

Para a Céu 



Tinha medo de morrer, a minha avó.

A minha mãe não, nunca teve,

e o meu pai tem desde que me lembro

um talento inato para contornar a questão.



Era um medo simples e espontâneo,

o da minha avó. Receava

não acabar o bordado infinito

e o alheamento de tudo,

com a vaga excepção do afecto.

Queria apenas encontrar a manhã,

o pequeno missal junto à cabeceira

- e foi, sem o saber, a minha «musa distraída».



Arrependi-me, tantos anos depois,

de julgar que a vida se podia - querendo

ou não querendo - deitar fora.

Ainda aqui estou, vivo e descontente.

Não esqueço a antiga criada (foi mais

do que isso: uma segunda mãe) perguntando-me

num sorriso se eu, no fundo, desejava

a morte que a avó não queria desejar.



E poluo essas memórias, talvez

por saber que não voltarei a atravessar

com ela a rua onde mais vezes caiu,

onde era senhora distante de um mundo

acabado, vagamente aristocrático

e, por sorte, ainda sem muito trânsito.



Ninguém, mesmo que queira,

quer morrer. E, do mais, ficam-nos

vislumbres, pormenores, anotações

cujo sentido descobrimos demasiado tarde.



Não sei se a cultura ajuda. Preferia

a qualquer obra de Bach

que a música ambulante do amolador

pudesse de novo passar na infância,

na infância breve de estarmos ambos vivos,

sentados na varanda. À espera de dias

iguais, sob a alta sombra de pinheiros.



Era isso.



(Sunny Bar)



(Ilustração: James Whistlers - mother)






Nenhum comentário:

Postar um comentário