domingo, 30 de setembro de 2018

COMO ÁLVARO DE CAMPOS, de Eliana Iglesias






Eu que ainda me atenho a tantas coisas

Que reparo o movimento das nuvens

E percebo a chuva que vem

Pelo avisar dos ossos

Eu que anseio as areias

E o mar a salgar-me a pele

E sempre aposto em caminhadas

Como a melhor panaceia

Eu que arranjo tempo para estrelas

Para as fases da Lua

E mudanças de maré

Que tenho atenção para plantas

E não me descuido dos bichos

Que embora não tome Coca-Cola

E nem pense em casamento

Me imponho fidelidade aos poemas

Que outros à boca miúda

Dizem ser má companhia

Eu que execro salamaleques

E a atribuição de terceiros

Que apesar de uma casa sem filhos

Com tutano me aferro à intenção

De fazê-la sempre um lar

Eu que não perco a noção do que sou

E do que não pretendo vir a ser

E que por sorte praguejo, deliro, desatino

E que quando fecho os olhos

Procuro fazê-lo com afinco

Na convicção quem sabe

Poderei sonhar “a paz”

Eu que não invejo garrafas vazias

Postas fora pela vizinhança

Porque sei não necessito álcool

Para extasiar-me

Eu que a cada manhã

Ao abrir o jornal

Por ser consoante com o Humano que há em mim

Não posso entender a banalização da violência

As injustiças praticadas, a fome, o erro, a peste

E por ser consoante com o Humano que há em mim

E força alguma há de tirar

Como Álvaro de Campos, verifico:

“... que “já não tenho par nisto tudo neste mundo”





(Ilustração: Frida Kahlo)

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A HISTÓRIA DE CANDOLO E GIGÉS, de Heródoto





Ao escrever a sua História, Heródoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros. 


[...] 


VII — Eis como o poder soberano, tendo pertencido aos Heraclidas, passou para a casa dos Mermnadas, a que pertencia Creso. Candolo, a quem os Gregos chamavam Mirsila, reinou tiranicamente em Sardes. Descendia de Hércules por Alceu, filho desse herói; Agron, filho de Nino, neto de Belos e bisneto de Alceu foi o primeiro dos Heraclidas a reinar em Sardes, e Candolo, filho de Mírsus, o último. Os reis desse país, anteriores a Agron, descendiam de Lídus, filho de Átis, de onde o nome de Lídios dado a todos os povos da região, outrora conhecidos por Meonianos. Finalmente, os Heraclidas, descendentes de Hércules e de uma escrava de Jardanus, e aos quais esses príncipes haviam confiado o poder, obtiveram o reino em virtude de um oráculo, reinando de pai a filho, pelo espaço de quinhentos e cinco anos, através de vinte e duas gerações, até Candolo, filho de Mírsus. 


VIII — Era tal a loucura que esse príncipe devotava à esposa, que julgava possuir nela a mais bela de todas as mulheres. Obcecado pela paixão, não cessava de exagerar-lhe a beleza a Gigés, filho de Dascílus, um dos guardas a quem muito estimava e fazia confidente dos seus mais importantes segredos. Pouco tempo depois, Candolo (não podia evitar sua desgraça) assim falou a Gigés: “Parece-me que não acreditas no que te digo sobre a beleza de minha mulher. Os ouvidos são menos crédulos do que os olhos. Faze, pois, o possível de vê-la nua”. “Que linguagem insensata, senhor! — exclamou Gigés — Refletis no que dizeis? Ordenar a um escravo que veja nua sua soberana? Esqueceis que uma mulher desfaz-se do seu pudor quando se despe? Entre as grandes máximas formuladas há muito pelos homens e que nos cumpre adotar, uma das mais importantes é a de que não devemos olhar senão o que nos pertence. Estou convencido de que possuís a mais bela de todas as mulheres, mas não exigi de mim, peço-vos, uma coisa tão desonesta”. 


IX — Assim Gigés recusava a proposta do rei, receando que acontecesse alguma desgraça. “Tranquiliza-te, Gigés; — disse-lhe Candolo — nada tens a temer de mim. Não estou absolutamente armando um laço para te experimentar, nem tão pouco tua rainha; ela não te fará nenhum mal. Arranjarei as coisas de maneira que ela nem mesmo saberá que a viste. Ocultar-te-ei atrás da porta do nosso quarto de dormir. A porta ficará aberta. À entrada do quarto há uma poltrona, onde a rainha, ao recolher-se ao leito, depositará as vestes à medida que as for tirando. Assim terás muito tempo para apreciá-la. Quando, da poltrona, ela se encaminhar para o leito, terá de voltar-te as costas. Aproveitarás então o momento para escapar sem ser visto.” 


X — Gigés, não podendo fugir à situação, declarou-se pronto a obedecer. Candolo, à hora de dormir, conduziu-o ao quarto, para onde a rainha não tardou a se dirigir. O guarda viu-a despir-se, e enquanto ela lhe voltava as costas para alcançar o leito, esgueirou-se para fora do aposento; mas a rainha percebeu-lhe a presença. Compreendeu o que o marido havia feito e suportou o ultraje em silêncio, fingindo nada ter notado, mas decidindo, no fundo do coração, vingar-se de Candolo; pois entre os Lídios, como entre quase todos os povos bárbaros, constitui um opróbrio, mesmo para um homem, o mostrar-se nu. 


XI — A rainha permaneceu assim tranquila e sem deixar transparecer seu pensamento; mas logo ao romper do dia assegurou-se das disposições dos seus mais fiéis oficiais e mandou chamar Gigés. Longe de imaginá-la a par de tudo, ele atendeu-lhe a ordem, como estava habituado a fazer, sempre que ela o chamava. Quando chegou, a princesa disse-lhe: “Gigés, eis aqui dois caminhos que te dou a escolher; decide-te imediatamente: obtém pelo assassinato de Candolo minha mão e o trono da Lídia, ou a morte te impedirá de ver, de ora em diante, por uma cega obediência a Candolo, o que te é vedado. É preciso que um dos dois pereça: o que te deu essa ordem, ou tu, que me viste nua, desprezando todas as conveniências”. Ante tais palavras, Gigés permaneceu suspenso por alguns instantes. Depois suplicou à rainha que não o expusesse à contingência de tão dura escolha. Vendo a impossibilidade de dissuadi-la e a urgência absoluta de eliminar o soberano ou decidir-se a morrer, preferiu poupar a si próprio. 


“Já que me forçais — disse ele à rainha — a matar o meu senhor, dizei-me como deverei fazê-lo”. “— Será no próprio lugar onde me viste nua que te lançarás sobre ele; deverás atacá-lo durante o sono”. 


XII — Traçados os planos, ela tomou suas providências para evitar que o escravo pudesse, por qualquer meio, escapar à situação. Um dos dois teria de perecer: ou ele ou Candolo. Ao cair da noite, a rainha introduziu-o no quarto, armado de um punhal, e escondeu-o atrás da porta. Mal Candolo havia adormecido, Gigés avançou sem ruído e apunhalou-o, apoderando-se, assim, da esposa e do trono. Arquíloco de Paros, que vivia nesse tempo, faz referência a esse príncipe num poema composto em versos jâmbicos trimétricos. 


XIII — Gigés subiu, assim, ao trono, e ali foi confirmado pelo oráculo de Delfos. Os Lídios, indignados com a morte de Candolo, haviam, a princípio, pegado em armas, mas concordaram com os partidários de Gigés que, se o oráculo a este reconhecesse como rei, a coroa ficaria mesmo com ele; de outra maneira, ela voltaria para os Heraclidas. O oráculo pronunciou-se favoravelmente a Gigés, ficando-lhe assegurada a posse do trono. Todavia, a pitonisa acrescentou que os Heraclidas seriam vingados na quinta geração do príncipe. Nem os Lídios, nem os seus reis tiveram em conta semelhante advertência até ser ela justificada pelos fatos. E foi assim que os Mermnadas se apoderaram da coroa, arrebatando-a aos Heraclidas. 


XIV — Gigés, senhor da Lídia, fez a Delfos várias oferendas, das quais grande parte em dinheiro. Acrescentou muitos vasos de ouro aos já existentes no templo, bem como seis crateras de ouro, com o peso de trinta talentos, dádiva cuja memória merece ser conservada. Essas oferendas estão incluídas no tesouro dos Coríntios, embora, a bem dizer, esse tesouro não pertença absolutamente à república de Corinto, mas a Cípselo, filho de Etion. Gigés foi, depois de Midas, filho de Górdio, rei da Frígia, o primeiro dos bárbaros conhecidos a fazer oferendas a Delfos. Midas tinha presenteado o templo com o trono no qual costumava fazer justiça. Esse trono constitui obra digna de ser vista. Está colocado no mesmo lugar onde se encontram as crateras de Gigés. De resto, os habitantes de Delfos chamam as oferendas em ouro e prata de “gigeados”, do nome daquele que as fez. 


Quando o príncipe viu-se senhor do reino, organizou uma expedição contra as cidades de Mileto e Esmirna, e apoderou-se da de Cólofon. Todavia, como nada mais realizou de notável durante um reinado de trinta e oito anos, contentamo-nos em reportar esse fato, não falando mais em tal reinado. 



(História; Tradução do grego por Pierre Henri Larcher - 1726 D.C. - 1812 D.C.; versão para o português de J. Brito Broca) 




(Ilustração: William Etty.- Candaules king of Lydia shews his wife to Gyges)





segunda-feira, 24 de setembro de 2018

GRACIAS A LA VIDA / OBRIGADA À VIDA, de Mercedes Sosa





Gracias a la vida, que me ha dado tanto

Me dio dos luceros, que cuando los abro

Perfecto distingo, lo negro del blanco

Y en el alto cielo su fondo estrellado

Y en las multitudes el hombre que yo amo



Gracias a la vida, que me ha dado tanto

Me ha dado el sonido del abecedario

Con él las palabras que pienso y declaro

Madre amigo Hermano y luz alumbrando,

La ruta del alma del que estoy amando



Gracias a la vida, que me ha dado tanto

Me ha dado la marcha de mis pies cansados

Con ellos anduve ciudades y charcos

Playas y desiertos, montañas y llanos

Y la casa tuya, tu calle y tu patio



Gracias a la vida, que me ha dado tanto

Me dio el corazón, que agita su marco

Cuando miro el fruto, del cerebro humano

Cuando miro el bueno tan lejos del malo

Cuando miro el fondo de tus ojos claros



Gracias a la vida que me ha dado tanto

Me ha dado la risa y me ha dado el llanto

Así yo distingo dicha de quebranto

Los dos materiales, que forman mi canto

Y el canto de ustedes que es el mismo canto

Y el canto de todos que es mi propio canto

Gracias a la vida, gracias a la vida

Gracias a la vida, gracias a la vida



Tradução de Ricardo Domeneck:


Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me dois olhos que quando os abro

perfeito distingo o preto do branco

no alto céu seu fundo estrelado

e nas multidões o homem que eu amo.



Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me o ouvido que em toda sua extensão

grava noite e dia grilos e canários

martelos, turbinas, latidos, chuvaradas

e a voz tão terna do meu bem amado



Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me o som e o abecedário

com ele as palavras que penso e declaro

"mãe, amigo, irmão" e a luz, iluminando

o rumo da alma do que estou amando



Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me a marcha dos meus pés cansados

com eles andei cidades e charcos

praias e desertos, montanhas e planos

tua casa, tua rua e teu pátio.



Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me o coração que agita seu marco

quando olho o fruto do cérebro humano

quando olho o bom tão longe do mal

quando olho o fundo de teus olhos claros



Obrigada à vida que me deu tanto

Deu-me a risada e deu-me o pranto

assim distingo felicidade de fraqueza

os dois materiais que formam meu canto

o canto de todos que é o mesmo canto

o canto de todos que é meu próprio canto

Obrigada à vida! Obrigada à vida!




(Ilustração: foto Violeta Parra)





sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O DICIONÁRIO, de Simon Winchester







O “dicionário inglês”, no sentido em que usamos comumente a expressão hoje em dia — como uma lista alfabeticamente ordenada das palavras inglesas, junto com uma explicação de seus significados —, é uma invenção relativamente nova. Quatrocentos anos atrás não havia nenhuma conveniência desse gênero em qualquer estante inglesa. Não existia nenhum disponível, por exemplo, quando William Shakespeare estava escrevendo suas peças. Sempre que vinha a usar uma palavra incomum, ou encaixar um termo no que lhe parecia ser um contexto invulgar — e suas peças são extraordinariamente ricas de exemplos —, ele quase não tinha modo de verificar a propriedade do que estava prestes a fazer. Não tinha possibilidade de estender a mão para uma de suas estantes e escolher um volume qualquer para ajudá-lo: não seria capaz de encontrar livro algum que pudesse lhe dizer se a palavra escolhida estava grafada com propriedade, se a havia selecionado corretamente ou se a usara da maneira certa no lugar adequado. 

Shakespeare não seria capaz sequer de desempenhar uma função que hoje consideramos tão perfeitamente normal e comum quanto a própria leitura. Ele não poderia, como se diz, “consultar alguma coisa”. Na verdade, a expressão inglesa “look something up” — quando utilizada no sentido de “procurar algo num dicionário, enciclopédia ou outro livro de referência” — simplesmente não existia. Ela só vai aparecer na língua inglesa em 1692, quando um historiador de Oxford chamado Anthony Wood a usou. 

Como não havia a expressão até o final do século XVII, conclui-se também que certamente não existia tal conceito na época em que Shakespeare estava escrevendo — um período em que autores escreviam freneticamente e pensadores pensavam como nunca tinham feito antes. A despeito de toda a atividade intelectual daquele tempo, não existia impresso nenhum guia da língua, nenhum vade mecum linguístico, nem um único livro que Shakespeare ou Martin Frobisher, Francis Drake, Walter Raleigh, Francis Bacon, Edmund Spenser, Christopher Marlowe, Thomas Nash, John Donne, Ben Jonson, Izaak Walton, ou qualquer outro de seus eruditos contemporâneos pudesse consultar. Consideremos, por exemplo, a composição da Noite de Reis, de Shakespeare, que ele concluiu logo no início do século XVII. Pensemos no momento, provavelmente o verão de 1601, em que ele começou a escrever a cena do terceiro ato na qual Sebastian e Antonio, o marinheiro naufragado e seu salvador, tinham acabado de chegar ao porto e estão se perguntando onde poderiam passar a noite. Sebastian reflete sobre a questão por um instante e então, como alguém que tivesse lido e decorado seu guia de hotéis da época, declara com toda simplicidade: “In the south suburbs at the Elephant/ Is best to lodge”.[1] 

E agora — o que William Shakespeare entendia exatamente de elefantes? Além disso, o que conhecia ele de Elephants como hotéis? Inúmeras hospedarias em várias cidades por toda a Europa tinham esse nome. Este determinado Elephant, visto que se tratava da Noite de Reis, por acaso ficava na Ilíria; só que havia muitos outros — dois deles, pelo menos, em Londres. Mas fossem quantos fossem — por que era esse o caso aqui? Por que batizar uma estalagem com o nome deste animal? E, afinal, que animal era este? Todas essas eram perguntas que, pode-se imaginar, um escritor deveria ao menos estar apto a responder. 

Mas eles não estavam. Se Shakespeare não sabia lá muita coisa a respeito de elefantes, o que era provável, e se não tinha conhecimento deste curioso hábito de dar o nome do animal a hotéis — onde poderia pesquisar a questão? E mais — se não se achava rigorosamente certo de estar dando a seu Sebastian a referência adequada para suas falas — por que a estalagem se chamaria realmente elefante, ou quem sabe não fora batizada com o nome de outro animal, um camelo, ou um rinoceronte, um gnu? — onde poderia verificar para se certificar? Onde, na verdade, um dramaturgo da época de Shakespeare consultaria qualquer palavra? 

Seria de se pensar que ele gostaria de pesquisar alguma coisa o tempo todo. “Am not I consanguineous?” [Não sou eu um consanguíneo?], escreve na mesma peça. Algumas falas depois refere-se ao “thy doublet of changeable taffeta” [vosso gibão de tafetá furta-cor]. Em seguida declara: “Now is the woodcock near the gin” [Agora está a galinhola perto da armadilha de caça]. O vocabulário de Shakespeare era evidentemente prodigioso: mas como poderia ele ter certeza de que, em todos os casos nos quais empregava palavras incomuns, estava fazendo o uso correto, tanto no sentido gramatical como de fato? O que o impedia, empurrando-o para uns dois séculos depois, de se tornar um eventual Mr. Malaprop? [2] 

Vale a pena propor essas perguntas simplesmente para ilustrar o que acharíamos hoje da profunda inconveniência da impossibilidade de recorrer a um dicionário. Na época em que estava escrevendo, havia uma abundância de atlas, e também de livros de orações, missais, histórias, biografias, romances, assim como volumes de ciência e arte. Acredita-se que Shakespeare extraiu muitas das suas alusões clássicas de um léxico especializado (Thesaurus) que havia sido compilado por um homem chamado Thomas Cooper — os muitos erros do léxico aparecem reproduzidos com excessiva precisão em suas peças para que isso possa ser considerado coincidência — e pensa-se também que tenha bebido na fonte da Arte of rhetorique, de Thomas Wilson. Mas isso era tudo; não existia nenhum outro instrumento de pesquisa disponível, literário, linguístico ou léxico. 

Na Inglaterra do século XVI, dicionários como os que conhecemos hoje simplesmente não existiam. Se a língua que tanto inspirou Shakespeare tinha seus limites, se suas palavras tinham origens, grafias, pronúncias, significados definíveis, não havia um único livro que os tivesse estabelecido, definido e consolidado. Talvez seja difícil imaginar uma mente tão criativa trabalhando sem uma única obra de referência lexicográfica a seu lado, a não ser a “cola” proporcionada pelo léxico do sr. Cooper (que a sra. Cooper certa vez atirou ao fogo, obrigando o grande homem a começar tudo de novo) e o pequeno manual do sr. Wilson, mas essa foi a situação sob a qual seu talento especial viu-se compelido a florescer. A língua inglesa era falada e escrita — mas na época de Shakespeare não estava definida, fixada. Era como o ar — tida como certa, a substância envolvente que continha em si e definia todos os britânicos. Mas quanto ao que ela era exatamente, e quais eram seus componentes — quem sabia? 

Durante o século e meio seguinte deu-se um grande alvoroço de atividade comercial no setor, e dicionário após dicionário saíam com grande estrépito das prensas, cada um maior do que o outro, cada um deles apregoando um valor superior na educação dos deseducados (entre os quais se contavam as mulheres da época, a maioria das quais contava com pouca escolaridade, se comparadas aos homens). 

Ao longo do século XVII esses livros tenderam a se concentrar, como fizera a primeira contribuição de Cawdrey, no que eram as ditas “palavras difíceis” — palavras que não se achavam no uso comum, cotidiano, ou palavras que tivessem sido inventadas especificamente para impressionar os outros, os assim chamados “termos de tinteiro”, com os quais os livros dos séculos XVI e XVII parecem bem adornados. 

O fato de os livros se concentrarem apenas na pequena parte do vocabulário nacional que abrangia tamanha bobagem poderia sugerir hoje que isso lhes conferia um caráter bizarro e incompleto, mas naquela época sua seleção editorial era vista como uma virtude. Falar e escrever dessa maneira constituía a mais alta ambição da grã-finagem inglesa. “Apresentamos-lhes”, trombeteava o editor de uma dessas obras para os futuros membros da alta sociedade, “as palavras de escol.” 


Notas: 

[1] Nos subúrbios do Sul no Elefante / é o melhor lugar para se hospedar (N. E.) 

[2] Referência à personagem Mrs. Malaprop, da pela The rivals (Os rivais), de Richard Brinsley Sheridan, que se destacava pelo emprego errôneo e, especialmente, ridículo de parônimos (malaproprism, do francês "mal-à-propos", ou seja, "inadequado para o propósito") (N. T.) 




(O professor e o louco; tradução de Flávia Villas-Boas) 






(Ilustração: George Henry Hall, 1825–1913 - Shakespeare portrait) 



terça-feira, 18 de setembro de 2018

ELEGY: GOING TO BED / ELEGIA: INDO PARA O LEITO, de John Donne






Come, Madam, come, all rest my powers defy;

Until I labour, I in labour lie.

The foe ofttimes, having the foe in sight,

Is tired with standing, though he never fight.

Off with that girdle, like heaven's zone glittering,

But a far fairer world encompassing.

Unpin that spangled breast-plate, which you wear,

That th' eyes of busy fools may be stopp'd there.

Unlace yourself, for that harmonious chime

Tells me from you that now it is bed-time.

Off with that happy busk, which I envy,

That still can be, and still can stand so nigh.

Your gown going off such beauteous state reveals,

As when from flowery meads th' hill's shadow steals.

Off with your wiry coronet, and show

The hairy diadems which on you do grow.

Off with your hose and shoes ; then softly tread

In this love's hallow'd temple, this soft bed.

In such white robes heaven's angels used to be

Revealed to men ; thou, angel, bring'st with thee

A heaven-like Mahomet's paradise ; and though

Ill spirits walk in white, we easily know

By this these angels from an evil sprite;

Those set our hairs, but these our flesh upright.

Licence my roving hands, and let them go

Before, behind, between, above, below.

O, my America, my Newfoundland,

My kingdom, safest when with one man mann'd,

My mine of precious stones, my empery;

How am I blest in thus discovering thee !

To enter in these bonds, is to be free ;

Then, where my hand is set, my soul shall be.

Full nakedness ! All joys are due to thee;

As souls unbodied, bodies unclothed must be

To taste whole joys. Gems which you women use

Are like Atlanta's ball cast in men's views ;

That, when a fool's eye lighteth on a gem,

His earthly soul might court that, not them.

Like pictures, or like books' gay coverings made

For laymen, are all women thus array'd.

Themselves are only mystic books, which we

—Whom their imputed grace will dignify —

Must see reveal'd. Then, since that I may know,

As liberally as to thy midwife show

Thyself; cast all, yea, this white linen hence;

There is no penance due to innocence :

To teach thee, I am naked first; why then,

What needst thou have more covering than a man?



Tradução de Augusto de Campos:

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;

Até que eu lute, em luta o corpo jaz.

Como o inimigo diante do inimigo,

Canso-me de esperar se nunca brigo.

Solta esse cinto sideral que vela,

Céu cintilante, uma área ainda mais bela.

Desata esse corpete constelado,

Feito para deter o olhar ousado.

Entrega-te ao torpor que se derrama

De ti a mim, dizendo: hora da cama.

Tira o espartilho, quero descoberto

O que ele guarda, quieto, tão de perto.

O corpo que de tuas saias sai

É um campo em flor quando a sombra se esvai.

Arranca essa grinalda armada e deixa

Que cresça o diadema da madeixa.

Tira os sapatos e entra sem receio

Nesse templo de amor que é o nosso leito.

Os anjos mostram-se num branco véu

Aos homens. Tu, meu anjo, és como o céu

De Maomé. E se no branco têm contigo

Semelhança os espíritos, distingo:

O que o meu anjo branco põe não é

O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que a minha mão errante adentre

Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.

Minha América! Minha terra à vista,

Reino de paz, se um homem só a conquista,

Minha mina preciosa, meu Império,

Feliz de quem penetre o teu mistério!

Liberto-me ficando teu escravo;

Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém

De um corpo (como a alma sem corpo) sem

Vestes. As joias que a mulher ostenta

São como as bolas de ouro de Atalanta:

O olho do tolo que uma gema inflama

Ilude-se com ela e perde a dama.

Como encadernação vistosa, feita

Para iletrados, a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente

A alguns (a que tal graça se consente)

É dado lê-la. Eu sou um que sabe;

Como se diante da parteira, abre-

Te: atira, sim, o linho branco fora,

Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:

A coberta de um homem te é bastante.




(Ilustração: Gerardo Sacristán Torralba - desnudo femenino de espaldas)





sábado, 15 de setembro de 2018

VONTADE DE DESCOBRIR OS ESTADOS UNIDOS, de Chimamanda Ngozi Adichie





Cada onda de calor fazia Ifemelu se lembrar de sua primeira, no verão em que chegara. Era verão nos Estados Unidos, ela sabia, mas a vida toda pensara no “exterior” como um lugar de casacos de lã e neve, e como os Estados Unidos eram no “exterior” e suas ilusões eram tão fortes que não podiam ser abaladas pela razão, comprou o suéter mais grosso que encontrou no mercado Tejuosho para levar. Usou-o na viagem, fechando o zíper até em cima no interior murmurante do avião e abrindo-o quando saiu do aeroporto com tia Uju. O calor abrasador alarmou-a, assim como o velho Toyota hatch de tia Uju, que tinha uma mancha de ferrugem na lateral e tecido dos bancos descascado. Olhou com atenção para os prédio, carros e letreiros, todos opacos, decepcionantemente opacos; na paisagem de sua imaginação, as coisas mundanas dos Estados Unidos eram cobertas por um esmalte brilhante. O que deixou Ifemelu mais assustada foi o adolescente de boné parado diante do muro de tijolos com o rosto abaixado, o corpo inclinado para a frente e as mãos entre as pernas. Ela se virou para olhar de novo. 

“Olhe aquele menino”, disse. “Não sabia que as pessoas faziam esse tipo de coisa nos Estados Unidos.” 

“Você não sabia que as pessoas faziam xixi nos Estados Unidos?”, disse tia Uju, mal olhando para o menino antes de virar a cabeça na direção do sinal. 

“Ahn-hã, tia! Quis dizer que não sabia que faziam isso na rua. Que nem ele.” 

“Não fazem. Não é que nem na Nigéria, onde todo mundo faz. Ele pode ser preso por isso, mas este bairro não é bom, de qualquer jeito”, disse tia Uju seca. Havia algo de diferente nela. Ifemelu notara no primeiro instante no aeroporto, o cabelo mal trançado, as orelhas sem brincos, o abraço rápido e casual, como se fizesse semanas, e não anos, desde que tinham se visto pela última vez. 

“Eu devia estar estudando agora”, disse tia Uju sem tirar os olhos da rua. “Você sabe que minha prova está chegando.” 

Ifemelu não sabia que ainda faltava uma prova; ela achou que tia Uju estava apenas esperando o resultado. Mas disse: “Sei, sim”. 

O silêncio delas parecia cheio de farpas. Ifemelu sentiu vontade de pedir desculpas, embora não soubesse pelo quê. Talvez tia Uju lamentasse sua presença agora que estava ali, em seu carro resfolegante. 

O celular de tia Uju tocou. “Sim, é Uju.” Ela pronunciou iu-ju, como os americanos faziam. 

“É assim que você pronuncia seu nome agora?”, perguntou Ifemelu depois. 

“É assim que eles dizem.” 

Ifemelu quis dizer “Bom, esse não é seu nome”, mas engoliu as palavras. Disse, em igbo: “Não sabia que ia estar tão quente aqui”. 

“Estamos numa onda de calor, a primeira do verão”, disse tia Uju, como se a expressão onda de calor fosse algo que Ifemelu devesse compreender. Ela nunca tinha sentido um calor tão quente. Era um calor envolvente, sem piedade. Quando chegaram ao apartamento de um quarto de tia Uju, a maçaneta estava morna. Dike ficou de pé num pulo no chão acarpetado da sala, repleto de carrinhos de brinquedo e super-heróis, e abraçou Ifemelu como quem se lembrava dela. “Alma, esta é minha prima”, disse para a babá, uma mulher de pele branca e expressão cansada com cabelos negros presos num rabo de cavalo oleoso. Se Ifemelu tivesse conhecido Alma em Lagos, a teria considerado branca, mas ali aprenderia que Alma era hispânica, uma categoria americana que, para confundir, era tanto etnia quanto raça, e ela se lembraria de Alma quando, anos depois, escreveu um post para o blog chamado; “Entendendo a América para o negro não americano: o que significa hispânico”. 

Hispânicos são frequentes companheiros dos negros americanos nos índices de pobreza, um pequeno passo acima deles na hierarquia racial do país. A raça inclui a mulher de pele chocolate do Peru; os povos indígenas do México; pessoas com cara de mestiças da República Dominicana; pessoas mais branquinhas de Porto Rico; e o cara louro de olhos azuis da Argentina. Você só precisa falar espanhol e não ser da Espanha e, voilà, pertence a uma raça chamada hispânica. 

Mas naquela tarde, Ifemelu mal notou Alma, ou a sala onde havia apenas um sofá e uma televisão, ou a bicicleta encostada num canto, porque ficou absorta diante de Dike. Na última vez em que o vira, no dia em que tia Uju saíra apressada de Lagos, ele era uma criança de um ano chorando sem parar no aeroporto, como se entendesse a reviravolta que havia acabado de acontecer em sua vida, e agora estava ali, no primeiro ano, com um sotaque americano perfeito uma hiperfelicidade; o tipo de menino que nunca parava quieto e nunca parecia triste. 

“Por que você está de casaco? Está quente demais para usar casaco”, disse ele, rindo, ainda enlaçando-a num longo abraço. Ifemelu riu. Ele era tão pequeno, tão inocente e, no entanto, havia uma precocidade nele, mas uma precocidade solar; não acalentava intenções sombrias em relação aos adultos de seu mundo. Naquela noite, depois que ele e tia Uju deitaram na cama e Ifemelu se ajeitou no cobertor no chão, Dike disse: “Por que ela tem de dormir no chão, mãe? Nós três cabemos aqui”, como se intuísse a maneira como a prima estava se sentindo. Não havia nada de errado naquilo – afinal, ela dormia sobre tapetes quando visitava sua avó na aldeia –, mas finalmente estava nos Estados Unidos, na gloriosa América, e não tinha esperado dormir no chão. 

“Eu estou bem, Dike”, disse Ifemelu. 

Ele se levantou e deu seu travesseiro para ela. “Tome. É tão macio e gostoso.” 

“Dike, venha deitar. Deixe sua tia dormir”, disse tia Uju. 

Ifemelu não conseguiu dormir, sua mente estava alerta demais à novidade de tudo, e esperou até ouvir o ronco de tia Uju para sair do quarto e acender a luz da cozinha. Uma barata gorda estava na parede ao lado dos armários, movendo-se um pouco para cima e um pouco para baixo, como quem respira fundo. Se estivesse em sua cozinha em Lagos, Ifemelu teria procurado uma vassoura para matá-la, mas deixou a barata americana em paz e foi postar-se diante da janela da sala. Tia Uju tinha dito que aquela parte do Brooklyn chamava Flatlands. A rua lá embaixo era mal iluminada, ladeada não por árvores frondosas, mas por carros estacionados bem próximos uns dos outros, muito diferente da rua bonita do Cosby Show. Ifemelu ficou ali por bastante tempo, com o corpo inseguro, tomada por uma sensação de novidade. Mas também sentiu um frisson de expectativa, uma vontade de descobrir os Estados Unidos. 



(Americanah; tradução de Ligia Azevedo) 



(Ilustração: Archibald Motley - American Harlem Renaissance painter, 1891-1981: Bronzeville at Night, 1949)






quarta-feira, 12 de setembro de 2018

ARTE POÉTICA, José Luís Peixoto





o poema não tem mais que o som do seu sentido, 

a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 

o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, 

poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva 

fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil 

árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura 

de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes 

e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não 

se escrevem, lê-se país e mar e céu esquecido e 

memória, lê-se silêncio, sim, tantas vezes, poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu 

olhar de doce menina, silêncio ao domingo entre as conversas, silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, 

a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 

o poema é quando eu podia dormir até tarde nas férias 

do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu 

fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a 

letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do 

quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel 

e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas 

e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças 

e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre e tudo. 

o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo 

o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, 

é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre 

os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema 

porque a palavra poema é uma palavra, o poema é a 

carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre 

os telhados na hora em que todos dormem, é a ultima 

lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angustia, esperança. o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se 

com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, 

a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo 

para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por 

mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares 

onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever a palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido. 





(Ilustração: Leszek Sokol) 

domingo, 9 de setembro de 2018

NAPOLEÕES SEM TRONO, de Mário Viana







Toda cidade pequena tinha o seu louco de estimação. Era o Zuca, a Zezé ou o Tonho — louco nunca tinha nome de verdade. Circulava pelas ruas arrastando cacarecos, pedindo coisas a quem passava e sempre sendo sacaneado pela molecada. Alguns disparavam palavrões, e ninguém se ofendia. 

O louco da cidade tinha endereço conhecido, a família já vivia por ali fazia muito tempo; em geral, de maneira muito simples. Eram pobres. Os parentes do louco local nunca eram ricos. 

São Paulo está longe de ser uma cidade pequena. Há condomínios aqui em que o número de moradores ultrapassa bastante a população de alguns municípios do Brasil. É inevitável que a quantidade de loucos se multiplique ao infinito. Pelo que se nota andando pelas ruas, a presença de pessoas com problemas mentais — os maluquinhos mesmo — aumentou de maneira impressionante. 

Isso tudo, contou-me a amiga Ruth Helena, tem a ver com o fechamento de várias clínicas onde esses doentes antigamente viviam internados. Li que há correntes que defendem a volta dos manicômios como solução. Tema polêmico. Outra amiga da área da saúde pública disse que, do jeito que estavam, essas clínicas não passavam de depósitos de doentes. Uma espécie de abandono intramuros. 

É uma sinuca de bico. Soltar por soltar não resolve nada. Prender por prender, muito menos. Existem postos públicos de saúde mental onde os doentes passam o dia, entre conversas, atividades lúdicas e interações sociais. Mas esses locais não dão conta de tanta demanda. Para a maioria dos loucos, viver fora da casinha é um castigo, e não uma gíria. 

Se antigamente o louco de estimação era até divertido, os de hoje são figuras solitárias, que não têm sequer a malícia de batalhar um cantinho protegido para dormir. Pernoitam ao relento, quase no asfalto. Não há a menor graça em ver gente doente abandonada. 

Cada vez mais parecidos com os drogados que vagam por todo canto, os maluquinhos não têm crianças no encalço — nem adultos. Vivem soltos, monologando nas calçadas, fazendo com que as outras pessoas se desviem deles, temerosas de algum ataque de fúria. 

Na Avenida Paulista, circulam duas mendigas drag queens, vestidas como bonecas de pano esquecidas no fundo do baú. Abordam as moças — evitam os homens, talvez por medo — e lhes pedem dinheiro. Se não são atendidas, passam a seguir as mocinhas aos gritos. É vexame garantido. 

Também causam medo os que andam carregando pedaços de pau, lâmpadas e outros objetos. O que podem fazer em momentos de fúria? Até nessa hora funciona o velho preconceito econômico. 

Temos medo quando eles têm aspecto miserável e relaxamos a guarda quando aparecem bem-vestidos, às vezes até de terno. Foi um desses que atacou um estudante com um taco de beisebol numa livraria da Paulista há alguns anos. 

Quem anda com fones de ouvido pode nem perceber o desfile de gente falando sozinha ao seu lado. Nem todos são loucos. Alguns apenas conversam pelo celular, o fio discreto pendurado na orelha. Os doentes falam com mais veemência. Quem se liga no papo diz que não é tão sem noção assim. Falam de Deus, de política e do pouso próximo de uma nave alienígena, com mais sentido do que certas conversas telefônicas. 




(Ilustração: Hieronymus Bosh - ship of fools)







quinta-feira, 6 de setembro de 2018

PARA MI CORAZÓN BASTA TU PECHO / PARA MEU CORAÇÃO BASTA TEU PEITO, de Pablo Neruda





Para mi corazón basta tu pecho,

para tu libertad bastan mis alas.

Desde mi boca llegará hasta el cielo

lo que estaba dormido sobre tu alma.



Es en ti la ilusión de cada día.

Llegas como el rocío a las corolas.

Socavas el horizonte con tu ausencia.

Eternamente en fuga como la ola.



He dicho que cantabas en el viento

como los pinos y como los mástiles.

Como ellos eres alta y taciturna.

Y entristeces de pronto, como un viaje.



Acogedora como un viejo camino.

Te pueblan ecos y voces nostálgicas.

Yo desperté y a veces emigran y huyen

pájaros que dormían en tu alma.



Tradução de Fernando Assis Pacheco:



Para meu coração basta teu peito,

para tua liberdade as minhas asas.

Da minha boca chegará até ao céu

o que dormia sobre a tua alma.



És em ti a ilusão de cada dia.

Como o orvalho tu chegas às corolas.

Minas o horizonte com a tua ausência.

Eternamente em fuga como a onda.



Eu disse que no vento ias cantando

como os pinheiros e como os mastros.

Como eles tu és alta e taciturna.

E ficas logo triste, como uma viagem.



Acolhedora como um velho caminho.

Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.

Eu acordei e às vezes emigram e fogem

pássaros que dormiam na tua alma.



(Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada)

(Ilustração: Leonid Afremov)









segunda-feira, 3 de setembro de 2018

CARTA DE PARIS, de Ana Cristina Cesar









Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas, chuvas outonais apenas esboçando a majestade de um choro de viúva, águas mentirosas fecundando campos de melancolia, 

tudo isso de repente iluminou minha memória quando cruzei a ponte sobre o Sena. A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido, e é apenas em delírio que vejo 

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em delírio vejo 

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e pensa na Força de trabalho que desperta, 

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó, poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada, 

talvez bichos que falam, ou exilados com sede que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra amada, onde há tempestades, e olham de viés 

o céu gelado, e passam sem reproches, ainda sem poderem dizer que voltar é impreciso, desejo inacabado, ficar, deixar, cruzar a ponte sobre o rio. 



II 



Paris muda! mas minha melancolia não se move. Beaubourg, Forum des Halles, metrô profundo, ponte impossível sobre o rio, tudo vira alegoria: minha paixão pesa como pedra. 

Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles, com seus gestos loucos e nos profissionais do não retorno, que desejam Paris sublime para sempre, sem trégua, e penso em você, 

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti, bagagem do disk jockey que te acorda no meio da manhã, e não paga adiantado, e desperta teus sonhos de noiva protegida, e penso em você, 

amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris, atravessando pontes, espalhando o medo de voltar para as luzes trêmulas dos trópicos, o fim dos sonhos deste exílio, as aves que aqui gorjeiam, e penso enfim, do nevoeiro, 

em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida nesta ilha, neste parque 

onde me perco e me exilo na memória; e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados… e em outros mais ainda! 


(Poética)



(Ilustração: Camille Pissarro -  Avenue de lOpera Morning Sunshine)