sexta-feira, 26 de agosto de 2016
URUPÊS, de Monteiro Lobato
Esboroou-se o balsâmico
indianismo de Alencar ao advento dos Rondons que, ao invés de imaginarem índios
num gabinete, com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e a Iracema aberta
sobre os joelhos, metem-se a palmilhar sertões de Winchester em punho.
Morreu Peri, incomparável
idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas
perfeições humanas que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a
todos sobrelevava em beleza d’alma e corpo.
Contrapôs-lhe a cruel
etnologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso
e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como
incapaz, moralmente, de amar Ceci.
Por felicidade nossa – e de
D. Antonio de Mariz – não os viu Alencar; sonhou-os qual Rousseau. Do contrário
lá teríamos o filho de Arará a moquear a linda menina num bom braseiro de pau
brasil, em vez de acompanhá-la em adoração pelas selvas, como o Ariel benfazejo
do Paquequer.
A sedução do imaginoso
romancista criou forte corrente. Todo o clã plumitivo deu de forjar seu
indiozinho refegado de Peri e Atala. Em sonetos, contos e novelas, hoje
esquecidos, consumiram-se tabas inteiras de aimorés sanhudos, com virtudes
romanas por dentro e penas de tucano por fora.
Vindo o público a bocejar de
farto, já céptico ante o crescente desmantelo do ideal, cessou no mercado
literário a procura de bugres homéricos, inúbias, tacapes, borés, piagas e
virgens bronzeadas. Armas e heróis desandaram cabisbaixos, rumo ao porão onde
se guardam os móveis fora de uso, saudoso museu de extintas pilhas elétricas
que a seu tempo galvanizaram nervos. E lá acamam poeira cochichando
reminiscências com a barba de D. João de Castro, com os frankisks de Herculano,
com os frades de Garrett e que tais…
Não morreu, todavia.
Evoluiu.
O indianismo está de novo a
deitar copa, de nome mudado. Crismou-se de “caboclismo”. O cocar de penas de
arara passou a chapéu de palha rebatido à testa; a ocara virou rancho de sapé;
o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxadal, o
boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa
aberta ao peito.
Mas o substrato psíquico não
mudou: orgulho indomável, independência, fidalguia, coragem, virilidade heroica,
todo o recheio em suma, sem faltar uma azeitona, dos Peris e Ubirajaras.
Este setembrino rebrotar
duma arte morta inda se não desbagoou de todos os frutos. Terá o seu “I Juca
Pirama”, o seu “Canto do Piaga” e talvez dê ópera lírica.
Mas, completado o ciclo,
virão destroçar o inverno em flor da ilusão indianista os prosaicos demolidores
de ídolos – gente má e sem poesia. Irão os malvados esgaravatar o ícone com as
curetas da ciência. E que feias se hão de entrever as caipirinhas cor de jambo
de Fagundes Varela! E que chambões e sornas os Peris de calça, camisa e faca à
cinta!
Isso, para o futuro. Hoje ainda
há perigo em bulir no vespeiro: o caboclo é o “Ai Jesus!” nacional.
É de ver o orgulhoso entono
com que respeitáveis figurões batem no peito exclamando com altivez: sou raça
de caboclo!
Anos atrás o orgulho estava
numa ascendência de tanga, inçada de penas de tucano, com dramas íntimos e
flechaços de curare.
Dia virá em que os veremos,
murchos de prosápia, confessar o verdadeiro avô: – um dos quatrocentos de
Gedeão trazidos por Tomé de Souza num barco daqueles tempos, nosso mui nobre e
fecundo “Mayflower”.
Porque a verdade nua manda
dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e
metidas entre o estrangeiro recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma
existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso.
Feia e sorna, nada a põe de pé.
Quando Pedro I lança aos
ecos o seu grito histórico e o país desperta estrouvinhado à crise duma mudança
de dono, o caboclo ergue-se, espia e acocora-se de novo.
Pelo 13 de Maio, mal esvoaça
o florido decreto da Princesa e o negro exausto larga num uf! o cabo da enxada,
o caboclo olha, coça a cabeça, ‘magina e deixa que do velho mundo venha quem
nele pegue de novo.
A 15 de Novembro troca-se um
trono vitalício pela cadeira quadrienal. O país bestifica-se ante o inopinado
da mudança. O caboclo não dá pela coisa.
Vem Floriano, estouram as
granadas de Custódio, Gumercindo bate às portas de Roma, Incitatus derranca o
país. O caboclo continua de cócoras, a modorrar…
Nada o esperta. Nenhuma
ferrotoada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida,
Jeca, antes de agir, acocora-se.
Jeca Tatu é um piraquara do
Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características
da espécie.
Hei-lo que vem falar ao
patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após prender entre os lábios a
palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d’esguicho, é
sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só então destrava a língua e a
inteligência.
– “Não vê que…
De pé ou sentado as idéias
se lhe entramam, a língua emperra e não há de dizer coisa com coisa.
De noite, na choça de palha,
acocora-se em frente ao fogo para “aquentá-lo”, imitado da mulher e da prole.
Para comer, negociar uma
barganha, ingerir um café, tostar um cabo de foice, fazê-lo noutra posição será
desastre infalível. Há de ser de cócoras.
Nos mercados, para onde leva
a quitanda domingueira, é de cócoras, como um faquir do Bramaputra, que vigia
os cachinhos de brejaúva ou o feixe de três palmitos.
Pobre Jeca Tatu! Como és
bonito no romance e feio na realidade!
Jeca mercador, Jeca
lavrador, Jeca fisólofo…
Quando comparece às feiras,
todo mundo logo advinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama
pelo mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher – cocos de
tucum ou jissara, guabirobas, bacuparis, maracujás, jataís, pinhões, orquídeas
ou artefatos de taquara-poca – peneiras, cestinhas, samburás, tipitis, pios de
caçador ou utensílios de madeira mole – gamelas, pilõesinhos, colheres de pau.
Nada mais.
Seu grande cuidado é
espremer todas as consequências da lei do menor esforço – e nisto vai longo.
Começa na morada. Sua casa
de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram em toca e gargalhar ao
joão-de-barro. Pura biboca de bosquimano. Mobília, nenhuma. A cama é uma
espipada esteira de peri posta sobre o chão batido.
Às vezes se dá ao luxo de um
banquinho de três pernas – para hospedes. Três pernas permitem equilíbrio
inútil, portanto, meter a quarta, o que ainda o obrigaria a nivelar o chão.
Para que assentos, se a natureza os dotou de sólidos, rachados calcanhares
sobre os quais se sentam?
Nenhum talher. Não é a
munheca um talher completo – colher, garfo e faca a um tempo?
No mais, umas cuias,
gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.
Nada de armários ou baús. A
roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos: um que traz no uso e outro na
lavagem.
Os mantimentos apaiola nos
cantos da casa.
Inventou um cipó preso à
cumieira, de gancho na ponta e um disco de lata no alto, ali pendura o
toucinho, a salvo dos gatos e ratos.
Da parede pende a espingarda
picapau, o polvarinho de chifre, o S. Benedito defumado, o rabo de tatu e as
palmas bentas de queimar durante as fortes trovoadas. Servem de gaveta os
buracos da parede.
Seus remotos avós não
gozaram maiores comodidades. Seus netos não meterão quarta perna ao banco. Para
que? Vive-se bem sem isso.
Se pelotas de barro caem,
abrindo seteiras na parede, Jeca não se move a repô-las. Ficam pelo resto da
vida os buracos abertos, a entremostrarem nesgas de céu.
Quando a palha do teto,
apodrecida, greta em fendas por onde pinga a chuva, Jeca, em vez de remendar a
tortura, limita-se, cada vez que chove, a aparar numa gamelinha a água
gotejante…
Remendo… Para quê? Se uma
casa dura dez anos e faltam “apenas ” nove para que ele abandone aquela? Esta
filosofia economiza reparos.
Na mansão de Jeca a parede
dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes,
cortados pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame. Afim de neutralizar
o desaprumo e prevenir suas consequências, ele grudou na parede uma Nossa
Senhora enquadrada em moldurinha amarela – santo de mascate.
– “Por que não remenda essa
parede, homem de Deus?"
– “Ela não tem coragem de
cair. Não vê a escora?"
Não obstante, “por via das
dúvidas” , quando ronca a trovoada Jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco
dum velho embirussu do quintal – para se saborear de longe com a eficácia da
escora santa.
Um pedaço de pau dispensaria
o milagre! mas entre pendurar o santo e tomar da foice, subir ao morro, cortar
a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote da Grande Lei do
Menor Esforço não vacila. É coerente.
Um terreirinho descalvado
rodeia a casa. O mato o beira. Nem árvores frutíferas, nem horta, nem flores –
nada revelador de permanência.
Há mil razões para isso;
porque não é sua a terra; porque se o “tocarem” não ficará nada que a outrem
aproveite; porque para frutas há o mato; porque a “criação” come; porque…
– “Mas, criatura, com um
vedozinho por ali… A madeira está à mão, o cipó é tanto…”
Jeca, interpelado, olha para
o morro coberto de moirões, olha para o terreiro nu, coça a cabeça e cuspilha.
– “Não paga a pena”.
Todo o inconsciente
filosofar do caboclo grulha nessa palavra atravessada de fatalismo e modorra.
Nada paga a pena. Nem culturas, nem comodidades. De qualquer jeito se vive.
Da terra só quer a mandioca,
o milho e a cana. A primeira, por ser um pão já amassado pela natureza. Basta
arrancar uma raiz e deitá-la nas brasas. Não impõe colheita, nem exige celeiro.
O plantio se faz com um palmo de rama fincada em qualquer chão. Não pede
cuidados. Não a ataca a formiga. A mandioca é sem vergonha.
Bem ponderado, a causa
principal da lombeira do caboclo reside nas benemerências sem conta da
mandioca. Talvez que sem ela se pusesse de pé e andasse. Mas enquanto dispuser
de um pão cujo preparo se resume no plantar, colher e lançar sobre brasas, Jeca
não mudará de vida. O vigor das raças humanas está na razão direta da hostilidade
ambiente. Se a poder de estacas e diques o holandês extraiu de um brejo salgado
a Holanda, essa joia do esforço, é que ali nada o favorecia. Se a Inglaterra
brotou das ilhas nevoentas da Caledônia, é que lá não medrava a mandioca.
Medrasse, e talvez os víssemos hoje, os ingleses, tolhiços, de pé no chão,
amarelentos, mariscando de peneira no Tâmisa. Há bens que vêm para males. A
mandioca ilustra este avesso de provérbio.
Outro precioso auxiliar da
calaçaria é a cana. Dá rapadura, e para Jeca, simplificador da vida, dá garapa.
Como não possui moenda, torce a pulso sobre a cuia de café um rolete, depois de
bem macetados os nós; açucara assim a beberagem, fugindo aos trâmites
condutores do caldo de cana à rapadura.
Todavia, est modus in rebus.
E assim como ao lado do restolho cresce o bom pé de milho, contrasta com a
cristianíssima simplicidade do Jeca a opulência de um seu vizinho e compadre
que “está muito bem.” A terra onde mora é sua. Possui ainda uma égua, monjolo e
espingarda de dois canos. Pesa nos destinos políticos do país com o seu voto e
nos econômicos com o polvilho azedo de que é fabricante, tendo amealhado com
ambos, voto e polvilho, para mais de quinhentos mil réis no fundo da arca.
Vive num corrupio de
barganhas nas quais exercita uma astúcia nativa muito irmã da de Bertoldo. A
esperteza última foi a barganha de um cavalo cego por uma égua de passo picado.
Verdade é que a égua mancava das mãos, mas ainda assim valia dez mil réis mais
do que o rossinante zanaga.
Esta e outras celebrizaram-lhe
os engrimanços potreiros num raio de mil braças, grangeando-lhe a incondicional
e babosa admiração do Jeca, para quem, fino como o compadre, “home” … nem mesmo
o vigário de Itaoca!.
Aos domingos vai à vila
bifurcado na magreza ventruda da Serena; leva apenso à garupa um filho e atrás
o potrinho no trote, mais a mulher, com a criança nova enrolada no chale. Fecha
o cortejo o indefectível Brinquinho, a resfolgar com um palmo de língua de
fora.
O fato mais importante de
sua vida é sem dúvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do
casamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras, entala os pés
num alentado sapatão de bezerro; ata ao pescoço um colarinho de bico e, sem
gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma de eleitor às mãos do chefe
Coisada, que lho retém para maior garantia da fidelidade partidária.
Vota. Não sabe em quem, mas
vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a
que chama “sua graça”.
Se há tumulto, chuchurrea de
pé firme, com heroísmo, as porretadas oposicionistas, e ao cabo segue para a
casa do chefe, de galo cívico na testa e colarinho sungado para trás, a fim de
novamente lhe depor nas mãos o “diploma”.
Grato e sorridente, o
morubixaba galardoa-lhe o heroísmo, flagrantemente documentado pelo latejar do
couro cabeludo, com um aperto de munheca e a promessa, para logo, duma
inspetoria de quarteirão.
Representa este freguês o
tipo clássico do sitiante já com um pé fora da classe. Exceção, díscolo que é,
não vem ao caso. Aqui tratamos da regra e a regra é Jeca Tatu.
O mobiliário cerebral de
Jeca, à parte o suculento recheio de superstições, vale o do casebre. O
banquinho de três pés, as cuias, o gancho de toucinho, as gamelas, tudo se
reedita dentro de seus miolos sob a forma de ideias: são as noções práticas da
vida, que recebeu do pai e sem mudança transmitirá aos filhos.
O sentimento de pátria lhe é
desconhecido. Não tem sequer a noção do país em que vive. Sabe que o mundo é
grande, que há sempre terras para diante, que muito longe está a Corte com os
graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos.
Perguntem ao Jeca quem é o
presidente da República.
– “O homem que manda em nós
tudo?"
– “Sim."
– “Pois de certo que há de
ser o imperador."
Em matéria de civismo não
sobe de ponto.
– “Guerra? T’esconjuro! Meu
pai viveu afundado no mato p’ra mais de cinco anos por causa da guerra grande. Eu, para escapar do “reculutamento”, sou inté capaz de cortar um dedo, como
o meu tio Lourenço…
Guerra, defesa nacional,
ação administrativa, tudo quanto cheira a governo resume-se para o caboclo numa
palavra apavorante – “reculutamento”.
Quando em princípios da
Presidência Hermes andou na balha um recenseamento esquecido a Offenbach, o
caboclo tremeu e entrou a casar em massa. Aquilo “havera de ser reculutamento”,
e os casados, na voz corrente, escapavam à redada.
A sua medicina corre
parelhas com o civismo e a mobília – em qualidade. Quantitativamente, assombra.
Da noite cerebral pirilampejam-lhe apozemas, cerotos, arrobes e eletuários
escapos à sagacidade cômica de Mark Twain. Compendia-os um Chernoviz não
escrito, monumento de galhofa onde não há rir, lúgubre como é o epílogo. A rede
na qual dois homens levam à cova as vítimas de semelhante farmacopeia é o
espetáculo mais triste da roça.
Quem aplica as mezinhas é o
“curador”, um Eusébio Macário de pé no chão e cérebro trancado como moita de
taquaruçu. O veículo usual das drogas é sempre a pinga – meio honesto de render
homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou
heréticos.
Doenças hajam que remédios
não faltam.
Para bronquite, é um porrete
cuspir o doente na boca de um peixe vivo e soltá-lo: o mal se vai com o peixe
água abaixo…
Para “quebranto de ossos”,
já não é tão simples a medicação. Tomam-se três contas de rosário, três galhos
de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos de
arruda, três ovos de pata preta (com casca; sem casca desanda) e um saquinho de
picumã! mete-se tudo numa gamela d’água e banha-se naquilo o doente, fazendo-o
tragar três goles da zurrapa. É infalível.
O específico da brotoeja
consiste em cozimento de beiço de pote para lavagens. Ainda há aqui um pormenor
de monta; é preciso que antes do banho a mãe do doente molhe na água a ponta de
sua trança. As brotoejas saram como por encanto.
Para dor de peito que
“responde na cacunda”, cataplasma de “jasmim de cachorro” é um porrete.
Além desta alopatia, para a
qual contribui tudo quanto de mais repugnante e inócuo existe na natureza, há a
medicação simpática, baseada na influição misteriosa de objetos, palavras e
atos sobre o corpo humano.
O ritual bizantino dentro de
cujas maranhas os filhos do Jeca vêm ao mundo, e do qual não há fugir sob pena
de gravíssimas consequências futuras, daria um in-fólio d’alto fôlego ao Sílvio
Romero bastante operoso que se propusesse a compendiá-lo.
Num parto difícil nada tão
eficaz como engolir três caroços de feijão mouro, de passo que a parturiente
veste pelo avesso a camisa do marido e põe na cabeça, também pelo avesso, o seu
chapéu. Falhando esta simpatia, há um derradeiro recurso: colar no ventre
encruado a imagem de S. Benedito.
Nesses momentos angustiosos
outra mulher não penetre no recinto sem primeiro defumar-se ao fogo, nem traga
na mão caça ou peixe. A criança morreria pagã. A omissão de qualquer destes
preceitos fará chover mil desgraças na cabeça do chorincas recém-nascido.
A posse de certos objetos
confere dotes sobrenaturais. A invulnerabilidade às facadas ou cargas de chumbo
é obtida graças à flor da samambaia.
Esta planta, conta Jeca, só
floresce uma vez por ano, e só produz em cada samambaial uma flor. Isto à meia
noite, no dia de S. Bartolomeu. É preciso ser muito esperto para colhê-la,
porque também o diabo anda à cata. Quem consegue pegar uma, ouve logo um
estouro e tonteia ao cheiro de enxofre – mas livra-se de faca e chumbo pelo
resto da vida.
Todos os volumes do Larousse
não bastariam para catalogar-lhes as crendices, e como não há linhas divisórias
entre estas e a religião, confundem-se ambas em maranhada teia, não havendo
distinguir onde para uma e começa outra.
A ideia de Deus e dos santos
torna-se jeco-cêntrica. São os santos os graúdos lá de cima, os coroneis
celestes, debruçados no azul para espreitar-lhes a vidinha e intervir nela
ajudando-os ou castigando-os, como os metediços deuses de Homero. Uma torcedura
de pé, um estrepe, o feijão entornado, o pote que rachou, o bicho que arruinou
– tudo diabruras da corte celeste, para castigo de más intenções ou atos.
Daí o fatalismo. Se tudo
movem cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus quis. A maior catástrofe
é recebida com esta exclamação, muito parenta do “Allah Kébir” do beduíno.
E na arte?
Nada.
A arte rústica do campônio
europeu é opulenta a ponto de constituir preciosa fonte de sugestões para os
artistas de escol. Em nenhum país o povo vive sem a ela recorrer para um
ingênuo embelezamento da vida. Já não se fala no camponês italiano ou
teutônico, filho de alfobres mimosos, propícios a todas as florações estéticas.
Mas o russo, o hirsuto mujique a meio atolado em barbarie crassa. Os vestuários
nacionais da Ucrânia nos quais a cor viva e o sarapantado da ornamentação
indicam a ingenuidade do primitivo, os isbas da Lituânia, sua cerâmica, os
bordados, os móveis, os utensílios de cozinha, tudo revela no mais rude dos
campônios o sentimento da arte.
No samoieda, no
pele-vermelha, no abexim, no Papua, un arabesco ingênuo costuma ornar-lhes as
armas – como lhes ornam a vida canções repassadas de ritmos sugestivos.
Que nada é isso, sabido como
já o homem pré-histórico, companheiro do urso das cavernas, entalhava perfis de
mamutes em chifres de rena.
Egresso à regra, não
denuncia o nosso caboclo o mais remoto traço de um sentimento nascido com o
troglodita.
Esmerilhemos o seu casebre:
que é que ali denota a existência do mais vago senso estético? Uma chumbada no
cabo do relho e uns ziguezagues a canivete ou fogo pelo roliço do porretinho de
guatambu. É tudo.
Às vezes surge numa família
um gênio musical cuja fama esvoaça pelas redondezas. Ei-lo na viola, concentra-se, tosse, cuspilha o pigarro, fere as cordas e “tempera” . E fica
nisso, no tempero.
Dirão: e a modinha?
A modinha, como as demais
manifestações de arte popular existentes no país, é obra do mulato, em cujas
veias o sangue recente do europeu, rico de atavismos estéticos, borbulha
d’envolta com o sangue selvagem, alegre e são do negro.
O caboclo é soturno.
Não canta senão rezas
lúgubres.
Não dança senão o cateretê
aladainhado.
Não esculpe o cabo da faca,
como o cabila.
Não compõe sua canção, como
o felá do Egito.
No meio da natureza
brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços
no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro,
abre a dança dos tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras,
sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachoo permanente, o caboclo é
o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.
Só ele não fala, não canta,
não ri, não ama.
Só ele, no meio da tanta
vida, não vive…
(Últimos contos)
(Ilustração: Tarsila do
Amaral - antropofagia)
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