quinta-feira, 11 de agosto de 2016

PAISAGEM COM POEMA EM SEGUNDO PLANO, de Heliodoro Baptista






I



«Tantos nomes que não há

para dizer o silêncio».

Através das palavras, as que sobraram

dos outros e se encurvam à luz

edificámos a casa, flores alucinantes

e a canganhiça do fogo eterno

que há no amor.

Com esta não invoco um nome

e o meu país, acocorado, volta-se de perfil

com suas mulheres magras e sombrias e trágicas

pegando fogo aos sexos extenuados.

As quizumbas deixam de ladrar

quando o medo cessa e da paisagem em movimento

(os rios inúteis? o crepúsculo das vontades?

os cascos do remorso? as crianças sublevadas?)

nomeia-se, se embebe tipograficamente

a humildade dos vultos em fila

ante o impossível milagre dos pães.

Como no circo

há quem não bata palmas.

«Tantos nomes que não há

para dizer o silêncio»

mas lembro, soletro devagar:

nocturno e geralmente inacessível

um homem percorre todos os lugares

e volta-se escuramente

para dentro de si

- que é a única prisão disponível

para o tamanho da sua luz.

As estrelas baixam ao nível do chão

e guardam-no para a eternidade

que há em cada sono.



II



Tudo veio de muito longe

(murmuram-no as mulheres expostas

acariciando o púbis chamuscado)

para todo este território

onde as formas rápidas e convulsas

explicam as cabeças submergidas

na vertigem fabulosa

das parábolas.

Da infância à adolescência

os meninos souberam-no pelo Índico

na concha cheia de suas mãos puras e arrebatadas:

a dimensão do real é sempre discutível

como o adivinharam há muito

as aves canoras inundando

a inteligência da terra.

Fluo e refluo no tempo e na sua sombra

e dissimulo-me no capim, nos corais, no jardim urbano,

nas orelhas apreensivas, na crispação de alguns cristais

e sobretudo nos músculos das palavras ausentes

a crescer no formidável espaço do poema

- o amor inundará tudo

até ao sabugo das unhas.

Das letras, em algumas noites,

são esses os sinais que recebemos.



III



É isso: morre-se ou vive-se na ambiguidade

mas o amor empolga como nunca

antes em qualquer nervo desta galáxia.

Então pensamos:

por cima de toda a folha

há a luz, este surpreendimento

a suor de animais insaciados que se veste de nós

e de nós se assombra (ou inquieta, subverte?)

a urbana convivência

tecida em silogismos

e recamada de ódios.

As coisas, ah as outras coisas

surgem pela própria ausência.

E assim

há gente que ama a fome

pois sempre aprendeu dos novos fabulários:

a burla nasce quando a dúvida

acontece o simples e delicado povoado

onde o coração emite

as seculares ondas de repulsas.

As palavras amadurecem, transcendem-nos.

Como os dias. Este trajecto imemorial.

Os vãos escuros das escadas. Os estádios ao sol.

As vazias mesas. Uma criança estremunhada na noite.

O império dos sentidos. Uma braçada de folhas de mandioca.

Das mulheres feridas, a teimosia. Na pele, os mil olhos.

E insuspeita, delicadamente

a sombra reflexiva

(há séculos? desde ontem?)

de um escriba na audição

do poema que não fará.

Porque, hoje como nunca,

«tantos nomes que não há

para dizer o silêncio».





(As Palavras Amadurecem – 1988, Moçambique)




(Ilustração: Emil Nolde - Masks II - 1920)



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