quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CHUVA, CHUVA, CHUVA, de Campos de Carvalho






É a primeira chuva a que assisto da minha janela de hóspede — neste verão que bem pode ser a primavera, pois não tenho noção do tempo nem disponho de bússola para me guiar entre as horas do dia e da noite. Ontem o deputado que se senta ao meu lado na mesa garantiu-me que estávamos em agosto, e até fez o sinal da cruz sobre o peito para demonstrar que não estava mentindo; mas eu tenho minhas dúvidas a respeito e continuo acreditando que não estamos sequer em janeiro ou em março, pois o que ouço a distância continua a caminhar para a direita e só com a chegada da primavera é que ele se volta para a esquerda e se torna realmente belo.

Presumo que aqui me encontro aproximadamente há uns vinte anos, ou uns cinco pelo menos, pois já me habituei com a cama, as cadeiras e a mesinha de cabeceira, e não sou de me habituar muito depressa com as coisas. Eu poderia, bem sei, perguntar ao criado ou à criada que me servem todos os dias, ou mesmo ao próprio gerente do hotel, ou ainda à sua jovem esposa tão louçã e já tão vesga, o tempo exato em que aqui me encontro e o mês e o ano em que porventura estamos vivendo nesta fria noite de chuva; mas tenho receio de que eles me tomem por um maníaco que está sempre a querer saber as coisas, eu que tenho fama de tão discreto e de tão educado, e prefiro morrer sem saber o dia da minha morte a ter que causar-lhes tamanha decepção.

De resto, a noite não é tão triste assim, e eu bem posso, querendo, sentar-me à beira da cama, colocar as duas mãos na fronte como o faria qualquer sujeito de bom senso, e distrair-me assim com o espetáculo da parede sempre branca e sempre imóvel, a dois palmos do meu nariz. Livros eu não tenho para ler no momento, nem eles dão coisa que preste e que me faça mais sábio do que sou, pelas amostras que já tive nestes últimos tempos. (A Bíblia que me deram a ler era exatamente igual a todas as Bíblias que eu já conhecia antes de vir para cá, e o romance policial que de certa feita me emprestou a empregada trazia uma história ingênua e fácil de ser desvendada, como pude verificar logo pelas últimas páginas.) Violão também não tenho, nem piano, nem saxofone, de maneira que a chuva ainda é a melhor coisa que me poderia acontecer nesta noite sem mês e sem ano, já que as paredes brancas e iguais já não me oferecem segredo nenhum, à força de eu me postar diante delas como diante de um espelho.

Exatamente: a noite foi feita para os galos dormirem e os insones roerem a sua insônia. Roerem — não disse bem?

Assombra-me (sempre me assombrou) ver a facilidade com que certas criaturas se recostam num travesseiro e caem logo num sono profundo, como se se houvessem suicidado inteiramente, sem problema nenhum a resolver no dia seguinte. (Parecem bonecos de corda a que de repente faltasse a corda, e a sua consciência é também uma simples questão de corda a mais ou a menos, como é também a sua voz, em tudo igual à de um boneco que fala mamãe.) Em mim, o superlúcido, o sono foi sempre uma conquista muito difícil, e sua escalada através dos anos sempre me pareceu mais penosa e meritória do que a do Himalaia ou mesmo a do monte Everest.

Agora a chuva baila em torno da minha cabeça, e no hotel todos dormem ou fingem que dormem pelo menos, num silêncio que marca com exatidão o barulho da chuva sobre o telhado. Se eu gritasse é possível que a chuva continuasse caindo, mas o silêncio pelo menos deixaria de existir dentro do meu quarto e dentro dos quartos vizinhos, e a chuva já não teria a marcá-la o compasso unânime do sono de todos os imbecis da terra. Vou gritar, espera!... — Não, é melhor eu deixar para gritar amanhã, ou num domingo, que é dia de júbilo universal e é quando todos gritam sem motivo ou pelos motivos mais tolos. Agora vou pentear o cabelo com a água da chuva, olhar um pouco mais o céu indevassável através das grades da janela (por causa dos ladrões) e depois recolher-me ao leito, como uma criança de dois anos. Nos meus bons tempos esta era a hora exatamente de eu sair à rua, de guarda-chuva aberto e a alma escancarada, até que encontrasse um bar simpático que me acolhesse e ao guarda-chuva e nos deixasse ficar a sós até alta madrugada. (Neste hotel, não sei por quê, o regime é mais severo do que nos outros, e o hóspede não tem direito de pôr o pé na rua sem falar com o gerente ou com o subgerente, que geralmente lhe negam autorização. Coisas da nova democracia, parece-me.)

Outra coisa que a chuva me faz lembrar sempre são os mortos. Tive um amigo que de certa feita escreveu esta frase lapidar: A chuva dá de beber aos mortos, e talvez por isso eu não possa sentir a chuva sem sentir a presença dos mortos ao meu lado, e até mesmo dentro de mim.

Por outro lado, não é verdade que os mortos hão de sentir-se apavorados dentro da terra encharcada e gotejante, sobretudo os mortos recentes e que ainda não estão acostumados com a sua solidão? Eu, depois de morto, tanto se me dá que chova ou que deixe de chover, mas aquela frase do meu amigo não deixa de ser bela e profundamente inspiradora. Não acredito que a sede seja o que mais importune os mortos no seu silêncio, mas a poesia é sempre necessária e é bom que os poetas estejam lembrando-se dos mortos nos dias de chuva, como uma mãe dos seus filhos.

Agora que já olhei a chuva mais uma vez, e que o silêncio persiste dentro deste hotel mal assombrado (mudar-me-ei amanhã) — o que me resta a fazer é não fazer nada, como sempre, e esperar que as horas escoem lentamente e que o meu corpo durma antes de mim, ao peso do cansaço e da mais absoluta monotonia. Deitar-me-ei como um faquir sobre os espinhos do meu leito — bela imagem, sem dúvida — apagarei a luz, rezarei um padre-nosso (eu que não creio em Deus nem creio que ele possa crer em mim) e fingirei de morto por algum tempo, só respirando e deixando que me bata o coração, por via das dúvidas. No escuro a noite é completamente escura como o podem atestar todos os insones da terra, e o jeito que resta é a gente esperar que, mesmo com chuva, a alvorada volte a raiar no vidro da janela, e com ela de novo as esperanças e as ideias felizes, que sao sempre as mesmas sempre, apesar de todas as decepções ou talvez por isso mesmo.


(A Lua Vem da Ásia)


(Ilustração: Natalja Picugina - sound of rain)


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