terça-feira, 3 de março de 2015

O ANIMAL DOS MOTÉIS, de Márcia Denser




    





“Mas sempre acabo em seus braços / 

do jeito que você quer...” 


- Desabafo - Roberto Carlos



Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis, “por que me arrasto a seus pés?”. Porque sexo é isso mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos motéis. Ele diz: esse motel já foi bom, e eu olho o banheiro, caixa amplificadora de fibroplast, as toalhas embaladas em sacos plásticos, os lençóis castanhos com ramagens duvidosas entre encardido e vestígios de cor, os três espelhos redondos, montados em curvim (um em frente ao outro, no meio a cama, o terceiro no teto, sobre a cama), claro que para transformar-nos numa espécie de confuso coquetel de siris assados: pernas, braços, carnes vivas, canteiro de patas, antenas, pelos moventes, espiando de esguelha uma outra hidra em perspectiva no espelho da frente, de trás, de cima, de baixo, devassados, misturados, confundidos, a 850,00 a diária, porque (e então eu sei porque) todos os motéis é sempre o mesmo motel, o animal mitológico, a quimera que se arrasta interminavelmente na madrugada ao som de Roberto Carlos.

Apoiada nos cotovelos, a cabeça dela surge no horizonte do espelho. A brasa do cigarro, no ponto quase central da bola ensombrecida, como o primeiro sol de um universo, sopra a fumaça:

— Você já leu Hemingway?

— O que?

— Perguntei se você já leu...

— É importante? Ele soergue-se ligeiramente.

— Fatos. Parece que ele só se preocupa com os fatos, no princípio. Naquele conto do toureiro, não lembro o título. Começa que o sujeito bate na porta do patrão, quer voltar às corridas, o patrão não está interessado, diz: só nas noturnas, 300 pesos, discutem o salário. Muito seco, direto. De repente, o patrão olha bem na cara do toureiro e pensa: é assim que todos morrem. E pronto. Eis a cabeça do monstro, a cutilada no boca do estômago, Hemingway nos pega despre...

— E o cara? Morre? reprime um bocejo.

— A morte só o rodeia. Toda a tourada. Ele a persegue. Ela o arranha e o abandona. Mas ele volta a provocá-la. Como um cego. Ou um tolo. É inútil. Duas vezes entre os chifres do touro. Debaixo das patas dos cavalos. A espada se parte. Não acerta — o que é muito simples para um veterano — o local exato no dorso do animal, do diâmetro de uma moeda de prata. A morte apenas o maltrata, como se estivesse brincando, como se ele não a merecesse, como...

— Mas ele morre ou o quê?

—Não sei, o picador...

— Como não sabe? Então esse Hemingway é...

— Precisaria ler a estória...

— Certo. Você já me contou.

A brasa desaparece no espelho, se apaga. É como uma sina, ela pensa, contemplar esta cabeça com fria ternura ou recorrer mais para trás, para uma piedade distante detonada pelo álcool, pela solidão, aquele sanduíche cinzento de noites de leitura e insônia e cigarros,como uma única noite boreal, amanhecer e crepúsculo, luz intermediária e intermitência de néon, de café, de galeria, de esperar sem mais esperar, suplicar, implorar por aquilo que sequer tem nome. O toureiro não merecia a morte. É como uma sina. Rastejar com Roberto: “você é mais que um problema / é uma loucura qualquer”, porque ele sabe de uma porção de coisas sem saber, coisas que eu ignoro. Lembra a Maga, uma personagem de Cortázar que, por sinal, ignora Hemingway e este, claro, além de vocês e todos, todos nós, amantes e condenados e Roberto.

Um touro espreita no fundo dos olhos dele: duas faíscas cúmplices transmitem a ordem ao dedo áspero que vadiamente começa a percorrer a coxa, queimado cilindro macio de luz negra. O dedo vai subindo, pincelando as penugens invisíveis — há partículas fosforescentes na superfície da pele — o dedo, e então são os dedos, vão se abrindo, agarrando, numa fofa mordida, a região dos pelos, capturando os lábios, separando-os com delicadeza: o indicador resvala pela fresta úmida. Imobiliza-o um instante lá dentro e então o leva à boca. A cabeça está inclinada sobre seu ventre, mas ela sabe que ele sorri: um garoto mergulhando o pão na panela e experimentando o molho. Olha-a, a mão agora pousada no seio, o tato pegajoso, feito clara de ovo.

— Você complica tudo. As faíscas divertidas, perversas. Como se fosse possível o amor, como se fosse muito fácil, muito simples. Possível. Fácil. Simples. Do diâmetro de uma moeda de prata. Uma fresta úmida. O ponto exato. Amor.

— Nunca estive na Espanha, ou no México. Ela acende outro cigarro.

— Ou aqui. Está precisando de um homem.

— Já pensei nisso. Aliás, não faço outra coisa.

— Pergunto se você já fez algo a respeito.

— Sinceramente...

— Por você mesma. Imagina que eu sou um idiota. Sei o que está pensando. Essa estória de toureiros fodidos e do tal Hemingway. Muito complicado, não acha?

— Então, nada de romance?

— As mulheres não mudam...

— Nem os homens. É bobagem. Penso: sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até à loucura, me penetrando até à loucura. Certo, o prazer também é meu, mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão distraidamente, tão alheiamente como um violino que se tocasse a si próprio num dormitório de quartel, tarefa da qual só poderia, só deveria, nascer amor e música, no entanto...

— Roberto Carlos, aponta o alto-falante.

— Não estou falando de fundo musical, e depois isso é outra estória (“por que me arrasto?”).

— Está querendo dizer que eu só me masturbo?

— Que nós.

— Isso. Que nós.

— Também não sente assim?

— Sei lá. Às vezes...

— É isso.

— O que quer? É bom pra mim, bom pra você...

— Exato. Bom-mim, bom-você, um em Guadalupe, outro no Japão, se fodendo por controle remoto.

— Garota engraçada, você. Vamos beber? Fisgou o cardápio na mesinha.

A brasa inflamou-se novamente no espelho: uma erupção solar. Mas este já é um outro capitulo: agora beber, começar a beber e ladeira abaixo.

— Vodca. Quero vodca.

— Pura? O telefone suspenso na pergunta, a expressão surpresa.

— Não. Com gelo.

Pousa o fone no gancho. Fita-a intrigado, ajustando o travesseiro.

O corpo enorme, em potente repouso, não faz parte do rosto. Coça os cabelinhos do peito. Ela está enrodilhada ao pé da cama (como se camas redondas tivessem alguma referência. São como o universo, não há direção, norte, sul, direita, esquerda, em cima, embaixo, esses caras são mesmo diabólicos, Deus é diabólico, ou seremos nós que...)

Ele se inclina, acariciando-lhe as ancas dobradas, avaliando-as no espelho às suas costas, as nádegas projetando aquele invisível biquíni de sol. Afaga-lhe o rosto, os cabelos, hesitando, ganhando tempo, subornando, com medo de falar:

— Bebe sempre vodca pura?

— As bandejas passeiam no pátio repletas de coquetéis de frutas, martínis doces...

— O que há de errado?

— Para as garotas boazinhas.

— E você? Não é? O dedo contorna os lábios: vai me calar, me silenciar com esse beijo, entupir-me com essa língua, porque esses encontros são acidentes vertiginosos cujo resultado é o titã de mil olhos, mil bocas famintas que murmuram te amo, te amo, e que respondem te amo, te amo, zumbindo num cercado de mentiras ciciantes de sons no espelho, dimensão da penumbra da vida, caixa de música abafando um só tema a repetir te amo, te amo, perseguindo o elo de uma cadeia prisioneira que nos abandona assim que sai da nossa boca, e a sua repetição implica na perseguição eterna daquilo que já esteve atrás da boca, do travesseiro. Ao formularmos com os lábios o rolo doce da língua e da saliva, saltamos à frente do tempo e imediatamente já nos sentimos abandonados por esse pássaro fugidio, que se debate te amo, te amo, ato irrefletido de cuspir, separar as coxas e tomar a primeira estocada, recuar, avançar, senti-lo rígido como um cilindro de aço vivo e então capturá-lo, mas, de leve, uns cinco centímetros, não mais, de repente, sugá-lo todo para dentro, frente a frente, de cócoras, como crianças agachadas brincando com bolinhas de gude, hipnotizadas pelo movimento das bolinhas que rolam, evoluem, param, prosseguem — o entrechoque das bolinhas líquidas — nova fisgada, novo recuo de quadris; as bocas navegando nas bocas, no rio das bocas, no mar das bocas, nas cavernas dos dentes e da língua, na correnteza das bocas, gargantas, ventres molhados e, lá embaixo, o borbulhar estourando as margens que recuam, cedem, enquanto ele bombeia, macho e terno, e bate e bate, martela o limite viscoso, implorando para nascer de novo, e combate e se estimula e a maltrata porque ela uiva, sussurra obscenidades — as primeiras palavras que um homem escuta, e as últimas — evoluindo, insuportável, maldita, insuportável, adorável, não é mais prazer, não é mais dor e é o milagre, a vertiginosa erupção, um terremoto visto ao longe e o centro de um furacão, assistir uma catástrofe atômica e, ao mesmo tempo, estar no centro dela, como Deus, como Deus, como Deus.

Depois do violento crepitar frio, o movimento cessa e então voltar a ouvir o vento se lastimando nas marquises dos edifícios, nas estruturas de aço da cidade industrial mais próxima e, não fosse o vento, poder ouvir até a nós mesmos (que é a última coisa que gostaríamos de ouvir na frequência dos motéis), por isso, nosso ego logrado retorna, monstro rugidor e oceânico, às cavernas interiores, lá se aferrolhando.

Lá em cima, no espelho, duas, quatro, seis, oito larvas rotas, libertas do emaranhado.

Termina a cerveja e dá-lhe uma palmada na coxa:

— Vamos (“pensando bem, amanhã eu nem vou trabalhar / e além do mais...”)

— Ainda tem vodca. Ela aponta um dedo preguiçoso para o copo dois terços vazio.

— Fica pra outra vez, já veste a camisa.




(Animal dos Motéis)




(Ilustração: Jack Vettriano)


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