terça-feira, 17 de junho de 2014

VAGABUNDA, E LIVRE, AINDA HEI DE ANSIAR PELA SOMBRA DAS SUAS PAREDES, de Gabrielle S. Colette







Ao longe, um relógio bate meia-hora. O trem de Calais, que deve levar-me para Paris, só irá passar daqui a cinquenta minutos...

Regresso sozinha, de noite, sem prevenir ninguém. Despreocupados, Brague e o Antigo Troglodita devem estar dormindo, em Boulogne-sur-Mer. Matamos três quartos de hora entre contabilidade e palração, em projetos para uma tournée sul-americana. E de lá vim para aqui, à estação de Tintelleries, que de tão deserta,  a estas horas, dá a impressão de um lugar evacuado... Ninguém acendeu, só para mim, os globos elétricos do cais... Uma sineta rachada toca timidamente na sombra, como se estivesse presa ao pescoço de um cão transido.

A noite está fria, sem lua. Há por perto, num jardim invisível, lilases cheirosos que o vento agita. Ouço ao longe, o chamado das sirenas sobre o mar...

Quem poderia descobrir-me aqui, neste fim de cais, toda enrolada no meu casaco? E que bem camuflada! Nem mais escura, nem mais clara do que a sombra...

Pela manhãzinha, entrarei em casa, sem barulho, como uma ladra. Não creio que me esperem assim tão cedo. Acordarei Fossette, acordarei Blandine, e depois virá o momento mais difícil...

Intencionalmente ponho-me a imaginar os pormenores da minha chegada; evoco a lembrança do duplo perfume que já está entranhado nos cortinados: fumo inglês e jasmim um pouco doce demais; em pensamento aperto contra o peito a almofada de cetim onde ficou, como duas pálidas manchas, o traço de duas lágrimas, roladas dos meus olhos num minuto de intensa felicidade... Paira em meu lábio o pequeno "ah!",  a exclamação abafada do ferido que machuca seu ferimento. Faço-o de propósito. Doerá menos dentro em breve.

Daqui de longe, despeço-me de tudo o que me retinha lá, e daquele que nada mais terá de mim, exceto uma carta. Uma sensatez frouxa e lúcida afasta-me do intento de revê-lo: nada de "leais explicações" entre nós! Uma heroína como eu, feita de carne como sou, não tem o poder de triunfar sobre todos os demônios... Que me despreze, que me maldiga um pouco: isto lhe seria até benéfico - pobre querido, curar-se-á mais depressa! Não, não, nada de muita honestidade! E nada de muito fraseado, pois que é calando que eu o poupo...

Num passo sonolento, puxando um carrinho com uma mala, um homem atravessa as vias. E logo em seguida acendem-se os globos elétricos da estação. Meio entorpecida, levanto-me. Não me havia apercebido de que tinha frio: estou gelada... No fim do cais, uma lanterna saltita, dentro do breu, no balanço de um braço que não se vê. Um silvo longínquo responde à voz rouca das sirenas: é o trem. Já é o trem...

Adeus, meu querido. Sigo para uma cidadezinha não muito distante daqui; depois, com certeza, partirei para a América, com Brague. Isso quer dizer que não nos veremos mais, meu querido. Não creia tratar-se de uma brincadeira, uma cruel resposta ao que você me escreveu ontem: "Será, minha Renée, que já não me ama mais?"

Vou-me embora, Max, e é esse o menor mal que lhe posso causar. Não se trata de uma perfídia da minha parte, não. A verdade é que me sinto gasta, e como que incapaz de retomar o hábito do amor - apavora-me a ideia de ter ainda que sofrer por causa dele.

Não me julgava assim tão covarde, não é, meu querido? Que exíguo coração eu devo ter! Sei que outrora, entretanto, ele seria mui digno do seu, que se oferece tão simplesmente. Mas, agora... que poderei dar-lhe agora, meu querido? O melhor que possuo, dentro de alguns anos, seria convertido naquela maternidade malograda que uma mulher sem filhos costuma trasladar para o marido. Você não a aceitaria, e nem eu tampouco. É pena... Há dias, você sabe - eu, que me vejo envelhecer com um terror resignado -, em que vejo a velhice como recompensa...

Deixe que o tempo passe, meu querido, e compreenderá o que estou dizendo. Compreenderá que eu não devia mesmo, não poderia ter sido sua, nem de ninguém mais, e que, a despeito de um primeiro casamento e de um segundo amor, fiquei sendo uma espécie de solteirona... Solteirona, que, como algumas delas, é tão apaixonada pelo Amor que amor algum lhe pareceria suficientemente belo, e que recusa todos, sem qualquer explicação; são essas, que representam todas as ligações sentimentais imperfeitas e voltam a sentar-se à janela, debruçadas sobre a agulha, num eterno colóquio com a sua incomparável quimera... Como essas, eu quis tudo; e um erro lamentável puniu-me.

Não ouso mais, aí está, meu querido, não ouso mais. Não se revolte pelo fato de eu lhe ter escondido por tanto tempo os esforços que fiz para ressuscitar em mim o entusiasmo, o fatalismo aventureiro, a esperança cega, toda a alegre escolta do amor... Não houve outro delírio, fora o dos meus sentidos. Mas, também, não houve outro cujas trevas fossem mais lúcidas! E você, Max, havia de consumir-me em vão, você que, com o seu olhar, com os seus lábios, com suas pacientes carícias e seu comovente silêncio, logrou curar-me, ainda que por pouco tempo, de uma derrocada cuja culpa não lhe cabe...

Adeus, meu querido. É longe de mim que você deve procurar a juventude, a fresca beleza intata, a fé no futuro e em você mesmo, e o amor, enfim, tal como você o merece, tal como outrora eu poderia ter-lhe dado. Não me procure. As únicas forças que me restam, poupe-mas, preciso delas para fugir-lhe. Se você entrasse aqui, e eu o tivesse à minha frente, agora, enquanto lhe escrevo... não, mas você não entrará!

Adeus, meu querido. Você é o único ser sobre a terra a quem chamo de "meu querido" - fora você, não tenho outra pessoa a quem possa chamar assim. Envolva-me, pela última vez, como quando eu tinha frio, abrace-me bem apertado, bem apertado, bem apertado...

Renée

Escrevi lentamente, mui lentamente; antes de assinar, reli a carta, aperfeiçoei os traços da caligrafia, acrescentei pontos, acentos e pus a data: 15 de maio, 7 horas da manhã...

Mas, ainda que assinada, datada e finalmente fechada, não deixou de ser uma carta incompleta... Tornarei a abri-la?... Eis-me subitamente tiritante, como se, ao fechar este envelope, houvesse vedado uma janela luminosa da qual me viesse ainda algum calor...

É uma manhã sem sol, e o frio do inverno parece haver-se refugiado neste pequeno salão atrás destas persianas trancadas há quarenta dias...

Sentada a meus pés, minha cachorra, muito quieta, fita a porta: espera. Espera alguém que não mais virá... Ouço Blandine mexer com panelas, sinto o cheiro de café moído: a fome contrai-me desagradavelmente o estômago. Um pano gasto cobre o divã, uma umidade azulada embaça o espelho... Não me esperavam tão cedo. Tudo está coberto pelas velhas capas, pelo bolor, pela poeira, tudo conserva ainda a aparência um tanto fúnebre da partida e da ausência. Atravesso furtivamente o "meu lar", sem mesmo tocar nas capas dos móveis, sem rabiscar, no veludo da poeira, um nome que seja, sem deixar outro traço da minha passagem além desta carta inacabada.

Inacabada... Caro intruso que eu quis amar, poupo-o. Deixo-lhe a única oportunidade de crescer a meus olhos: afasto-me. A minha carta lhe causará tristeza, tristeza, nada mais. Não saberá a que humilhante confrontação escapa, nem de que debate você foi a recompensa, recompensa que desdenho...

Sim, pois que o rejeito, e escolho... escolho tudo que não seja você. Eu já o conhecia, e reconheço-o agora. Não será por acaso aquele que, acreditando dar, monopoliza? Você veio para compartilhar da minha vida... Compartilhar, sim: desfrutar do seu quinhão! Estar mais ou menos a par dos meus atos, introduzir-se a toda hora no pagode secreto dos meus pensamentos, não é isso? Por que você e não outro? Eu o fechei a todos.

Você é bom, com a melhor boa-fé do mundo pretendia trazer-me felicidade, pois que me viu despojada e solitária. Mas, na verdade, você não contou com o meu orgulho de pobre: os mais mais belos lugares da terra, recuso-me a contemplá-los, tão pequenos me parecem no espelho amoroso do seu olhar...

A felicidade? Você está certo de que doravante a felicidade me bastará?... Não é só a felicidade que dá valor à vida. Você queria iluminar-me com esta aurora banal, pois lamentava a minha obscuridade. Obscura, se quiser: como um quarto visto de fora. Não: sou sombria, não obscura. Sombria, e preparada pelos zelos de uma vigilante tristeza, crepuscular e prateada como a coruja, como o sedoso camundongo, como a asa da traça. Sombria, como o vermelho reflexo de uma pungente lembrança... Mas você é aquele diante do qual eu não teria mais o direito de ser triste...

Fujo, mas ainda não me libertei de si, sei bem. Vagabunda, e livre, ainda hei de ansiar pela sombra de suas paredes... Por quantas vezes ainda, caro apoio que me repousa e me fere, quantas vezes ainda hei de procurá-lo? Quanto tempo levarei evocando o que você poderia ter-me dado, a longa volúpia, interrompida, atiçada, renovada... e a queda dulcíssima, e a vertigem em que as forças ressuscitam da própria morte... e o odor de sândalo queimado e de erva pisada... Ah! você será, por muito tempo, uma das sedes da minha estrada!

Desejá-lo-ei, ora como o fruto suspenso, ora como a água longínqua, ora como a casinha tranquila e venturosa em que roço... Deixo, em cada lugar dos meus errantes desejos, milhares e milhares de sombras à minha imagem e semelhança. Esta, aqui, sobre a pedra quente e azul dos despenhadeiros da minha terra; aquela, lá, na cova úmida de um vale sem sol; esta outra vai seguindo o pássaro, a vela, o vento e a vaga. Você conserva a mais tenaz: uma sombra nua, ondulante, que o prazer agita como uma erva num ribeiro... Mas nem ela escapará ao tempo: será dissolvida como as outras e você nada mais saberá a meu respeito, até o dia em que cessem os meus passos, e em que, da sua Renée, se desprenda a última e a menor das sombras...



(A Vagabunda; tradução de Juracy Daisy Marchese)




(Ilustração: Andrew Wyeth - day-dream)



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