domingo, 29 de junho de 2014
UMA TENDA DE LUZ E SERES VIVOS, EM QUE SE FABRICA PAPEL, de Elfriede Jelinek
Do supermercado brotam as mercadorias que aprisionam as pessoas. Sábado o homem deveria ser companheiro e ajudar a apanhá-las das redes; e os pescadores cantam. Esse modo de agir simplesmente maldoso o homem aprendeu neste ínterim. Calado, ele passa um tempo entre as mulheres que contam suas moedinhas e lutam contra a fome.Como é que duas pessoas vão criar essa união, se nem mesmo se conseguem fechar correntes de pessoas pela paz? A mulher é acompanhada, os pacotes e sacolas são carregados, sem que se precise vociferar ou estrilamentar. Assim o diretor se esparrama diante das pessoas, toma-lhes o lugar e monitora o que é comprado, embora isso seja tarefa de sua governanta. Ele, um deus, passa voando entre suas criaturas, que são menos do que filhos e despencam em meio a tentações, mais ilimitadas que o mar. Ele também olha dentro das outras cestas de compras e de outros decotes, em que ladram insistentes resfriados e são mantidos cobertos por renitentes desejos de echarpes. As casas frequentemente são frias e úmidas, tão rentes que estão do rio. Quando ele observa sua mulher, cuja mão desajeitadamente mexe em coisa morta envolvida na mais translúcida embalagem dentro do freezer, quando observa o baixo rendimento daquela carne, sua bela roupa, assalta-o uma terrível impaciência de ceder a ela seu peso em carne; fazer inflar - até que ganhe um brilho maduro de sol - o seu badalo, para o qual tudo ali está tão disponível, um tesão incrível, tão bom de comprar quanto tiras de papel em meio aos dedos inertes dela. Sob suas garras levemente esmaltadas ele quer ver despertar seu animalzinho e de novo descansar na mulher. Ela deve finalmente se esforçar em sua camisola de seda! Que ele não tenha de sempre se dar ao trabalho de lhe empinar os seios para fora e pegá-los na concha da mão. De uma vez por todas, que venha ela servir-se a ele, tenha a bondade de oferecer-se boa, sem que ele tenha que primeiro, por meia hora, a muito custo pinçar com os dedos os frutos do caule. É gratuito, esse esforço. Ele fica meio recuado diante do caixa e abraça o vazio absoluto de sua propriedade, um vazio diante do qual as mercadorias ficam obediente: sit! Dançam ao seu redor vários empregados do supermercado, dos quais ele tomou os filhos, uns para a fábrica, os outros porque eles agora precisam ir embora ou se render à bebida. Para esse senhor, o tempo nunca fica grande demais!
As sacolinhas de compras, que satisfizeram as suas exigências, farfalham através do hall de entrada, empurrada para a frente pelos chutes do diretor. Às vezes, em acessos de fúria ele tropeça de um tal modo na comida que a faz estender-se até o céu. Então atira a mulher em meio àquele depósito de mercadoria e completa o quadro com ela, que pode respirar o seu ar, lamber-lhe o pênis e o ânus. Com muita prática, ele mais do que depressa agarra-lhe as tetas, puxa-as para fora do vestido e, pela base, amarra-as com barbantes, aquela tetas que já estão murchando, para formar balões bem cheios e firmes. Pega a mulher por aquele seu tailleur que tão bem esconde a nuca e se inclina sobre ela como se quisesse suspendê-la e colocá-la no bolso, mostrando superioridade acachapante. Os móveis passam como numa visita-relâmpago. Em pouco tempo, as roupas estão espalhadas e os dois se atocham um no outro como se fossem se pendurar um no outro. Esse trecho já está apascentado há anos. Pulsante, o diretor extrai seu produto, e não é papel. É artigo mais rijo, dos que se necessita em tempos de maior rigor. As mais recônditas de todas as coisas as pessoas gostam de mostrar umas para as outras, como sinal de que não têm nada a esconder e que é tudo verdade o que têm a dizer a seus inesgotavelmente caudalosos parceiros. Despacham seus membros, os únicos mensageiros que sempre retornam. Do dinheiro não se pode dizer o mesmo, embora ele bem que seja mais amado que a mais amada entre os cascos e cornos do amante, onde os cães já vêm roer. Pulsando e gritando, os produtos são lançados, as minúsculas fábricas de corpos moem e rangem, e a propriedade modesta, sobrecarregada apenas com a felicidade que cambaleia vindo do televisor que fala sozinho, derrama-se, um regato, num lago sozinho feito de sono, no qual se pode sonhar com mercadorias maiores e produtos mais caros. E o ser humano floresce na margem.
A mulher fica deitada muito aberta, para o mundo aberta, sobre o chão, produtos alimentícios escorregadios espalhados sobre si, e é incrementada para render um efeito a mais e produzir muitos e muitos efeitos comerciais. Só o marido negocia, tem ações com ela e age inteiramente só. E ele já se solta de si, para entrar no vazio mobiliado do quarto. Só o próprio corpo o satisfaz mais ou menos e é capaz de, no esporte, se fazer troar e ouvir ecoar. Como uma rã, a mulher tem que dobrar as pernas de lado, para que o homem possa olhar dentro dela até o mais longe possível, até o Tribunal Estadual para Assuntos Criminais, e examiná-la. Ela está toda encharcada e toda cagada dele, precisa se levantar, deixar cair no chão as últimas cascas e ir buscar a mofada esponja caseira, para limpar o homem, esse inimigo inconciliável do sexo dela, de si mesmo e do muco que ela produziu. Ele lhe enfia o indicador direito bem fundo no cu, e com as tetas balançando ela se ajoelha sobre ele e esfrega, cabelos nos olhos e na boca, suor na testa, saliva alheia na fossa jugular, a pálida baleia assassina ali diante dela, por tanto tempo, até que a luz amigável cai, a noite chega e esse animal mais uma vez pode recomeçar a fustigar com sua cauda, com seu pau.
Sempre que voltam do supermercado, eles costumam manter a boca bem fechada. Alguns passam correndo por eles, testando sua força de tantos cavalos, e são inconciliavelmente guardados na memória. Os latões de leite à beira do caminho, revolvidos pelo indômito vento num átimo de átomo, estão ali prontos para ser apanhados. As corporações profissionais agrícolas se perseguem umas às outras na região por motivos de concorrência, até para não ficarem expostas por tempo demais à vista dos pequeníssimos agricultores, que não dão muito leite a quem não se pode nem mesmo sangrar por inteiro. A mulher se embrulha na escuridão de seu silêncio. E então, mais uma vez, para humilhar seu homem, não consegue de modo algum rir o suficiente sobre os pedantes fumos de patriarca dele, nos quais o cérebro vibra, quando ele fixa o olho na mulher do caixa, desconfiado dos movimentos de seus dedos. E, do mesmo modo que muitas mulheres de desempregados, ela que nem pense em cometer um erro. O diretor chega em surdina a seu lado, e ela tem que digitar tudo de novo, para que nenhum item seja lançado a mais e não precisem fazer uma seleção de emprego a mais. É quase como em sua fábrica, apenas com a diferença de que as pessoas são menores e usam roupas de mulher, das quais espiam, porque para elas, por sua vez, as roupas da estrutura familiar ficam apertadas demais. Elas ganham asas, e de seus ventres saem os filhos, em cujos olhos recém-abertos os homens seus pais atiram seus raios. Os rebanhos confusos de clientes se espremem, em sua insânia por comprar, passando ao largo dos encantados pelas mercadorias, para logo poder sumir de novo em suas covas. Presenteados eles não são; têm, isso sim, reduzida uma parte do que mereceram e ganharam na fábrica de papel. Tomados de horror, eles se veem diante de seu superior, que não esperavam encontrar ali, sim, era alguém em quem nem sequer estavam pensando. Muitas vezes nos surpreendem às portas pessoas com quem não estávamos contando, e nós somos responsabilizados por sua alimentação. Pequenos palitinhos salgados e peixes de massa e raspas de batata são tudo o que temos para colocá-los sob nossas pobres sombras.
Cânions de prateleiras se lançam em direção ao horizonte longínquo. A penca de gente se divide, já deslizam para baixo os últimos desejos dos clientes, como os que trazem camisetas regata empapadas de suor, ombros cansados da manhã. Irmãs, mães, filhas. E o sagrado casal diretor volta a correr, em eterna repetição, para o presídio de seu sexo, onde pode chorar tanto quanto se queira pela absolvição. Porém, das abas e buracos jorra somente uma comida horrorosa, morna, para dentro da cela e sobre suas mãos esticadas. O sexo, exatamente como a natureza, não anda em sua comitiva, sua pequena coletividade de adeptos de produtos e produções para desfrutar. Ela é simpaticamente coroada de artigos top de linha das indústrias têxtil e de cosméticos. Sim, e talvez o sexo seja a natureza do ser humano; quero dizer, a natureza do homem consiste em correr atrás do sexo, até que ele, visto no todo e em seus limites, se torne tão importante quanto aquele. Uma comparação que você certamente deve fazer: o homem é aquilo que come. Até o trabalho juntá-lo para formar um monte sujo, um boneco de neve derretido. Até não restar para ele, avergoado por sua origem, nem sequer o último buraco para se meter dentro. Sim, as pessoas, até finalmente serem inquiridas e ficarem sabendo a verdade sobre si... Pois enquanto isso ouça com atenção: esses indignos são importantes e hospitaleiros apenas por um dia, quando se casam. Mas um ano mais tarde eles já detêm a responsabilidade pela mobília e decoração de suas casas e por seus veículos. E detém-se todo o grupo - estão corrompidos pelo sangue comum - quando não conseguem mais pagar as prestações. Eles dividem ainda, em parcelas que são uma ninharia, as camas onde irão rolar! Sorriem para os rostos de desconhecidos que conduzem às suas manjedouras. Para que eles possam deixar voar algumas palhinhas de feno na respiração de seu sono, antes de seguirem adiante. Nós, contudo, temos que nos levantar todos os dias no momento mais inoportuno, somos forasteiros e de longe só vemos o traçado de nossa pequena rua, onde nossos graciosos parceiros sexuais nesse meio-tempo são cobiçados e usados por outros. E nas mulheres deve arder um fogo. Só que são apenas focos de incêndio extintos, sobre os quais a sombra da tarde cai logo cedo, quando elas, saídas das goelas de suas camas no sótão, rastejam direto para o estômago da fábrica. Pois você pode bem ir para casa, se estiver cansada disso! Não será invejada, e sua beleza já há muito tempo que não desarma ninguém mais; ele a abandonará, isso sim, com passos leves, dará partida em seu carro ali onde o orvalho pousa e brilha sob os primeiros raios, bem ao contrário de seus cabelos opacos!
A fábrica. Oh, como ela manipula e faz de joguetes os não qualificados, que afluem para dentro dela vindos de tubulões inesgotáveis. Como abafa os aparelhos de som com seu barulho inesgotável! Essa casa de gente, ou seja, a cada do diretor sobre sua parcela, a cela de casal, que infalivelmente deixa para nós algum refrigério quando operamos as máquinas automáticas de Coca-Cola! Uma tenda de luz e seres vivos, em que se fabrica papel. Com dureza, a concorrência põe a fábrica desse local em ação e desbasta os empregados para deixá-los como tábuas finas as mais iguais possíveis. O conglomerado proprietário da fábrica no Estado vizinho é mais poderoso e fica numa artéria de trânsito mais rentável, onde eles podem ir sangrar e gastar suas seivas. A madeira é triturada até ficar irreconhecível e entra na fábrica de celulose, e então entra a celulose na fábrica de papel, onde seres irreconhecivelmente triturados trabalham, pelo menos foi o que ouvi dizer e fico satisfeita de que eu, que sou livre, possa no forte calor do meio-dia vomitar meu eco na calada floresta. O exércitos dos, como eu, sem responsabilidades, que leem jornal nas latrinas, levam embora da floresta as árvores para poderem eles mesmos se sentar no lugar delas e desembrulhar a comida do papel. À noite, as pessoas bebem, então, e ficam preocupadas. Erguida a zanga, lança-se a corja, inflada e cega, na noite abissal.
A fábrica veio para a floresta, mas já há muito anseia por outra terra, onde possa produzir mais barato. Os divinos cartazes nas rotas de saída apressam as pessoas, e elas já partem nas pistas de seu trem de brinquedo. Os maleáveis são contratados - caminho pavimentado -, e mesmo o senhor diretor está nas mãos da Instância Superior, enquanto devora dinheiro público. Incontrolável é a política dos proprietários que ninguém conhece. Às cinco horas da manhã, as pessoas nos semáforos caem num cochilo, quando percorrem os cem quilômetros para chegar à fábrica e, ainda no último cruzamento, sucumbem à santa luz vermelha que brinca com eles, e são mortos, porque não tiraram o pé do acelerador e sonhando não arredaram pé da diversão do sábado à noite. Os movimentos carinhosos na tela, da qual eles rascando e raspando por anos a fio receberam sua ração, agora nunca mais voltarão a vê-los.
Por isso eles fazem todas as suas mulheres ecoarem mais uma vez, para não precisar mais ouvir a trombeta do juízo pelo menos até o próximo dia primeiro. Os mexericos e meritíssimos nesse lugar não se calam nunca, e os abandonados pelos bancos gorjeiam nos sulcos e consomem as últimas migalhas. E atrás deles há uma mulher que queria ter o dinheiro da casa, do restaurante e novos livros e cadernos para os filhos. Eles são todos dependentes do diretor, essa criança grande de humor ameno, um humor que no entanto pode virar, estrepitoso, como uma vela de embarcação, e então todos nós estamos no mesmo barco e depressa ficamos de fora naquele lado, o lado grande, selvagem, para o qual nos atiramos no último instante por não sabermos como empregar melhor nosso berro de sirene, nosso canto de mil vozes de sereia. Mesmo em fúria somos esquecidos, apenas a úlcera cresce em nós, e nos espalhamos como erva daninha.
(Desejo; tradução de Marcelo Rondinelli)
(Ilustração: Gerben Mulder - dutch girl)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário