quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

VAMOS SER VISITADOS POR SERES SAÍDOS DO CÉU, de Lídia Jorge







Macário fazia agradecimento, deixando a vizinhança entoar sozinha. E virava o alto da cabeça nos joelhos. Os cabelos soltos como erva escura por segar. Quando Jesuína Palha disse. O que vejo, meu deus? Vem aí um carro. Um carro celestial. Celestial. Olhem todos. Traz os anjos e os arcanjos. Oh gente. E São Vicente por piloto. Disse Jesuína Palha que voltava da ceifa, ainda com o avental e o lenço repletos de praganas. Todos olharam. Na verdade surgia na curva da estrada, pelo lado poente, qualquer coisa de tão extravagante que todos os que conseguiam enxergar a mancha de cores, virando as cabeças julgaram ir cair de borco sobre o chão da rua. Embora a mancha já volumosa, avançasse lentamente. Ocupando no espaço as três dimensões duma coisa visível, sólida e palpável. Mas os homens, pondo a mão, e fazendo muito esforço para verem claro o que avançava com tanta majestade, disseram. Menos rápidos e mais lúcidos. Vamos. Vamos ser visitados por seres saídos do céu, e vindos de outras esferas. Onde os séculos têm outra idade. Afastem-se, vizinhos, que esta visão costuma fulminar. As crianças correram estrada fora, comandadas pela coragem. Sentiam que o mar ia chegar atrás dum barco de velas alvadias e soltas, desfraldadas à levíssima brisa da tarde. E também começaram a esbracejar, esboçando gestos de natação. Mas Macário. Tendo sido o último a enxergar, teve a visão exacta. No momento da surpresa ainda tinha os olhos fechados de repetir pela última vez. À espera de ocasião. À espera de ocasião.

- Isto é um carro de combate. Oh vizinhos.

Na verdade, a pleno meio da estrada avançava um carro singular, porque vinha pejado de soldados garbosos e épicos, penetrando já pelo centro de Vilamaninhos com bandeiras e flores. E cantavam por um altifalante como se viessem munidos de uma poderosa orquestra. Agora já o espectáculo era tão real e tão bonito que todos. Esquecidos desses primeiros segundos de pasmo e confusão. Sentiram estar suspenso o toque, o canto e a audição desde há pouco. Para só ouvirem - e verem aquilo que chegava em cima do carro aberto e blindado. Todos tinham a certeza que desde tempo dos reis nunca mais se vira de igual. Ah maravilha. Então o carro parou em frente do grupo, e fez-se um momento de silêncio tão solene que as pessoas pensaram ir morrer. Mas um soldado. Particularmente bem feito, tendo sem dúvida nascido numa terra muito diferente. Começou a falar de cima do carro, agora parado no largo. Dizia coisas. Que tinha feito uma re vo lu ção, e que era preciso animar os espíritos. Porque tudo. Tudo. E abria uns braços de salvador. Tudo iria ser modificado. Falava tão bem, que todos se encontravam encantados no timbre daquela voz. E nas maneiras másculas, sendo contudo delicadas, como se não sentisse o soldado o peso do corpo. Na farda, no cabelo levemente encaracolado. E ninguém era capaz de dizer fosse o que fosse, presos, todos da surpresa e da maravilha. Nem Macário. Nem Manuel Gertrudes. Os outros soldados sentindo sem dúvida a perturbação que invadia os naturais de Vilamaninhos, levantaram então os braços e disseram o que os ouvintes porventura queriam dizer. Mas falaram os soldados em conjunto. Tão alto e tão vibrante. Que os vilamaninhenses só compreenderam que uma grande coisa eles haviam dito, e maiores ainda teriam a dizer no futuro. Quando acabaram o largo estava cheio de gente que escutava. Nem se sentia o vazio dos ausentes. E Macário, receando que os habitantes de Vilamaninhos estivessem a desempenhar o papel de bêbados na perfeição, e animado, porque antes da chegada, acabara de ouvir da boca do seu vizinho, que o seu lugar não deveria, ser ali. Sentindo-se patrício desses forasteiros. Disse.

- Nós aqui soubemos logo, dois dias depois, que vocês tinham feito a re vo lu ção. Mas nunca pensámos que chegássemos a ver os heróis.

O soldado que havia falado agradeceu com a mão. Todos os outros tinham um ar solene e marcial, não duvidando ninguém que tais homens venceriam as maiores batalhas. Disse também o soldado formosíssimo, com flores a desfolharem-se nas abotoadeiras. Que era preciso que aquela terra se capacitasse que o tempo da li ber da de tinha chegado. As mulheres menos ociosas, e as moças, que haviam sido as últimas a descer, mas que mais próximas se encontravam agora do carro de guerra, começaram a sentir que não poderiam reprimir por mais tempo os sentimentos espontâneos, e porque o espectáculo era o mais arrebatador das suas vidas puseram-se a gritar todas as palavras de entusiasmo que souberam. Disseram vivas. Amigos, amores, irmãos. Seres divinos. Libertadores da fome e da inveja. Disseram anjos, coisas formosas, filhos do ventre e visitantes. E havia quem chorasse e cruzasse os braços sobre os seios como se abraçasse os soldados que permaneciam heroicos e fardados sobre o carro verde, da cor do rinchão. Singularmente aberto e blindado.


(O dia dos prodígios)


(Ilustração: Jacek Yerka)


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