quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
O BICHO DA ESCRITA, de Rui Zink
Todos os meus amigos escrevem. Excelente.
Todos os meus amigos gostam de escrever. Formidável. Eu próprio não desgosto de
escrever, embora já não o faça. Escrever é bom. Escrever as palavras. Escrever
as coisas. Escrever o mundo. O mundo dentro de nós. E o mundo fora de nós.
Todos os meus amigos escrevem. Todos os meus amigos são escritores. Todos os
meus amigos fazem livros.
E o pior é que não são só os meus amigos.
As outras pessoas também. Os meus vizinhos escrevem - poemas. O senhor que
entregava as cartas também escreve - livros de viagens, acho. A empregada do
café escreve romances policiais, o funcionário do banco escreve novelas de
amor, o dono da mercearia escreve - romances históricos. A minha mãe escreve
ficção científica, os meus irmãos escrevem banda desenhada, até os nossos
primos mais afastados escrevem - acho que best-sellers, mas não tenho a
certeza, podem ser apenas ensaios de hermenêutica neo-visigótica.
Só o meu pai não escreve, porque já morreu.
Se estivesse vivo escrevia de certeza, e até sei o quê - novelas picarescas. No
hospital, todos os doentes escrevem e os médicos que lhes prescrevem as
receitas também escrevem. Da literatura inclusa à literatura médica, nem mesmos
os enfermeiros, os maqueiros, os polícias de piquete ou os funcionários do
balcão de atendimento deixam de escrever.
Esta situação é preocupante. O governo já
anunciou que irá tomar medidas. Não é de excluir, admitiu o porta-voz do
governo, que seja declarado o estado de emergência. O porta-voz do governo já
não fala - ele próprio foi atingido pela doença. Eu por acaso li o que
escreveu, mas não sei se ele estava a falar a sério - a escrever a sério - ou
se era apenas mais um capítulo da sua nova (e interessantíssima) ficção
política. Aliás, devo ter sido o único que o leu ou, vá lá, um dos poucos.
Porque deve haver mais como eu, quero dizer, tenho de partir desse princípio,
não? Convém não confundir o facto de não conhecer mais ninguém como eu com a
assunção, quiçá precipitada, de não haver mais ninguém como eu.
A doença é altamente contagiante. Faz o
Ebola parecer um vírus de brinquedo, tal a velocidade a que se reproduz e
transmite. O período de incubação dura entre três a seis horas, findo o qual a
vítima, até então uma pessoa normal, se torna abruptamente num escritor. Os
hospitais estão a rebentar pelas costuras, a abarrotar de gente obcecada pela
sua dose de papel e caneta. E cada vez têm de escrever mais, de aumentar a
dose, porque cada vez têm mais e mais ideias, mais e mais amor à literatura, às
belas palavras, à poesia secreta que se esconde por trás das belas palavras -
mesmo das feias, dizem os casos terminais.
Os cientistas ainda não conseguiram isolar
o vírus, ou encontrar um antídoto, ou mesmo simplesmente identificar a origem
da doença, ou explicar-lhe a natureza, porque… pois, isso mesmo, estão todos
ocupados a escrever. Há pessoas que já definharam e se consumiram por inanição.
Nada de espantar, é até bastante lógico, embora escabroso: escrevem, não comem,
morrem.
Acidentes ocorrem em massa. Os despistes
são mais que muitos. Por toda a cidade se ouvem explosões. Os taxistas vão
muito bem a meter a terceira, lembram-se de uma frase, põem-se a escrever,
largam o volante e… É terrível.
Até as crianças se põem a escrever. As que
ainda não sabem o alfabeto inventam um, ou garatujam bonecos simbólicos, e
inventam histórias, histórias, histórias. Bebés de um ano, que digo?, de meses,
pegam numa caneta, num lápis, e mexem as mãozitas fechadas para a frente e para
trás, com uma habilidade inaudita. Claro que acabam por rasgar o papel e
rabiscar o chão todo para além das esparsas fronteiras da folha branca, mas não
se importam com isso, continuam sem parar a escrever os símbolos do mundo. E os
pais também não ligam, porque eles próprios estão ocupados a escrever, e o que
é um chão todo rabiscado em comparação com um brilhante conto infantil onde uma
princesa ajuda um cavaleiro a não se perder na floresta negra onde vai combater
um dragão maligno com a simples dádiva de um dos seus belos cabelos louros?
Hum?
Nunca se viu nada assim. A situação é
grave, toma proporções calamitosas e não há sinais de se vir a atenuar.
Gostaria de o dizer de outra maneira, mas não há outra maneira de o dizer: o
mundo corre o risco de sucumbir ao peso de tantos romances, contos, ensaios,
novelas, poemas. Os poemas, esses então, são mais que as mães. Odes, elegias,
éclogas, adágios, quadras, redondilhas, dísticos, ditirambos, alexandrinos,
pastorais, quintanilhas, décimas, duodécimas, litotes, sonetos, sonetinos,
sonatinas.
Não estou a ser alarmista. A Terra já saiu
ligeiramente da órbita. E o número de escritores e poetas não pára de aumentar
de dia para dia. E o número de palavras escritas. E de frases inovadoras:
curtas, longas, frases de uma só palavra ("Ele. Disse. Para. Ela."),
frases sem vírgulas durante duzentas páginas ("Não vale a pena dar aqui um
exemplo teria de ocupar duzentas páginas mas esta pequena amostra talvez já
sirva para dar uma ideia ou então o melhor ainda é pelo menos gastar mais meia
linha com esta frase idiota de modo a que a ideia que estava a tentar ser dada
seja mais clara e convincente e acho que agora já chega o exemplo já está dado
acho"), torniquetes e arrebiotes de sintaxe que uma pessoa não julgaria
possíveis ou razoáveis.
Uma pessoa pergunta-se sempre: "Que
mais irão eles inventar?". Ou "Será que ainda há algo para
inventar?" Pelo menos era o que me perguntava antes - antes da epidemia.
Pois se há coisa que a doença veio provar é que as possibilidades de invenção -
e as capacidades humanas de inventar - são inesgotáveis. É triste, mas é a dura
realidade: a imaginação humana está em contínua expansão, como o universo. A
imaginação humana é como um buraco negro, tudo consome, tudo devora. E a
humanidade corre o risco de se extinguir por causa disso. Por excesso de
imaginação, por excesso de talento, por excesso de criatividade.
Com franqueza, há um limite para tanta
produção artística e cultural. Ou devia haver, porque, pelos vistos, não há.
Ainda por cima de qualidade. Sim, porque,
quem sou eu para o negar?, as pessoas não só escrevem como ainda por cima o que
escrevem é bom, é interessante, é válido, merece ser lido, tem estilo pessoal,
vem ocupar um espaço no espaço da literatura que estava por ocupar porque não
sabia, antes de ser ocupado, que esse espaço existia e era ocupável. Cada
pessoa cria o seu nicho com a mesma avidez e a mesma precisão milimétrica com
que a andorinha constrói o seu ninho. E, se é certo que uma andorinha não faz a
primavera nem um escritor chega para fazer a literatura, muitas andorinhas
juntas, milhares, milhões, biliões de andorinhas juntas chegam e sobram para
fazer à vontade uma caterva inteira de primaveras: sobretudo daquelas que
trazem como brinde gratuito uma senhora porção de verões, outonos e, claro,
invernos. Esse é que é o busílis.
E esse é também o génio do vírus. Põe as
pessoas a escrever - e a escrever bem. Se lhes desse a vontade, mas não o
talento, ainda era como o outro. Um médico que descobre, ao fim de centenas de
páginas, que se limitou a parodiar Fernando Namora, pode ainda voltar a exercer
medicina, a fazer aquilo para que tem realmente jeito. Uma advogada que se dê
conta de que nem todas podemos ser Agatha Christie ainda pode ser útil aos seus
clientes. Mas que fazer com um obstetra que faz páginas belíssimas? E com uma
causídica que nos faz ficar na dúvida sobre quem é o criminoso até ao
derradeiro parágrafo? Hum? É triste. É trágico. É insuportável. Histórias bem
arquitectadas, com indiscutível mestria, personagens credíveis, textos que
compreendem a essência da coisa literária: que não é nas palavras, mas para
além das palavras, que se encontra a beleza do texto.
*
A princípio até houve uma euforia
colectiva, os jornais falavam de um "novo nascimento", os críticos de
um "momento ímpar" da nossa literatura, os poderes públicos da
pujança de uma "nova geração de criadores". Só depois começaram os
pequenos indícios de que poderia haver algo de errado neste surto de talento,
mas ninguém conseguiu - ou quis - ver o que estava a acontecer. E, verdade seja
dita, por essa altura também já muita gente estava contaminada e começara a
escrever, primeiro com alguma hesitação e sentido de responsabilidade, depois
cada vez mais furiosamente - até ao romance final.
Agora?Agora o mundo é um lugar lúgubre, são
tempos enegrecidos, estes. E o pior é quando chegar o inverno. No verão ninguém
dá por falta das formigas, apenas das cigarras. Mas quando chega o inverno… Os
mercados estão vazios, a distribuição de pão e outros alimentos básicos não é
feita, o próprio pão não é feito. As lojas estão vazias, abertas, escancaradas
para a rua, mas vazias. Sem ninguém a guardá-las, sem ninguém nas caixas, sem
ninguém para acender ou apagar as luzes. Nos hipermercados, uma pessoa pode
levar para casa tudo o que quiser nos carrinhos metálicos. Mas, se não tiver
uma moeda, não pode levar nem um carrinho porque não há onde trocar a moeda.
Há, claro, coisa boas. As televisões
deixaram de funcionar. Acabaram-se as telenovelas, as "novelas da vida
real", e a ironia é que se acabaram precisamente na altura em que se
multiplicou por mil o número de autores de telenovelas. Só que já não há
ninguém para as filmar: actores, operadores de câmara, maquilhadoras, realizadores,
produtoras, assistentes de realização, equipas de luminotecnia, guarda-roupa,
pós-produção e montagem, estão todos cada um para seu lado a escrever o livro
das suas vidas. Também, seria preciso dizê-lo?, já não há boletim
meteorológico. Receio que aconteça o pior se os barcos forem para o mar sem
saber que mau tempo os espera. Mas imediatamente me dou conta da parvoíce que
acabo de dizer. Já não há niguém para se fazer ao mar, os pescadores
abandonaram as redes, os arpões, os convés, os iscos, e estão todos de papel e
caneta a descrever relatos de naufrágios, aventuras com peixes de nome
impronunciáveis, palimpsestos de Moby Dick, versões melhoradas e adaptadas aos
tempos modernos da noveleta de Hemingway, O Velho e o Mar.
Há bocado disse que eu devia ser o único a
ter lido o último comunicado do governo. Depois corrigi e disse que não, talvez
não seja o único. Talvez não seja, de facto, mas até agora não sei onde estarão
os outros, esses outros que ainda não foram atingidos por esta loucura
colectiva, nem se serão como eu ou se terão eles mesmos sofrido alguma mutação.
Não sei por que motivo fiquei imune ao vírus. Terá a ver com o meu AND, o meu
código genético, com o meu tipo de sangue, com a insuficiência (ou o excesso)
de melanina nos meus poros? Faltam-me os conhecimentos científicos para o poder
dizer sem correr o risco, impróprio sobretudo nesta ocasião, de cair na ficção
científica ou no delirio fantasista disfarçado de saber objectivado.
Se não sou a única pessoa no mundo que,
neste momento, neste talvez derradeiro momento da humanidade, lê o que os
outros escrevem, onde estão os meus camaradas de armas? Será possível
reunirmo-nos e criar um bastião de resistência, uma organização underground que
lute contra a epidemia e, através do estudo, da leitura, da experimentação
teórico-prática, encontre uma solução para devolver a saúde aos homens e pôr de
novo o mundo a funcionar? Não sei. Confesso que não tenho muita esperança.
Eu sou um leitor. Sei o que sou: leio o que
outros escrevem. Faço-o até compulsivamente. De manhã, ao pequeno-almoço, mesmo
que não tenha um jornal pela frente, as páginas com a tinta ainda fresca
aflorando a chávena de café, os meus olhos percorrem instintivamente a mesa, à
procura de palavras, letras, frases para ler: "Corn Flakes", "rico
em vitaminas e minerais", "Loja 18 - Rua Camilo Castelo Branco,
15-A", "Planta - margarina vegetal, 250 gramas"… Depois, à
medida que o dia avança, vou lendo tudo: todos os jornais, todos os anúncios,
todos os números de todas as portas, todos os nomes de todos os médicos na
placa da policlínica que fica na rua pela qual perpasso todos os dias. Leio
todos os romances que me passam pela frente, leio todos os ensaios que consigo
ler, todos os poemas que me passam para a mão quando, à hora do almoço, vou comer
um mini-prato ao balcão da pastelaria do bairro onde fica o meu emprego, no
qual tenho por função ler todos os documentos que colocam em cima da minha
secretária para esse mesmo devido efeito, que é eu lê-los.
É verdade, não sei por que milagre fiquei
imune ao vírus. E o engraçado é que nem sempre fui assim. Em jovem, eu próprio
tentei escrever. Pode-se lá viver sem ter tentado escrever! Embora nessa
altura, devo dizê-lo, houvesse muito menos gente a escrever. Eram outros
tempos, havia muito analfabetismo, era uma vida de trabalho. Depois, descobri
que preferia ler. Mas antes, confesso, eu próprio tinha a mania de escrever.
Nada especial, acho: uns poemetos, um ou outro conto, dois ou três esboços de
diálogos para teatro. Mas não vale a pena escondê-lo, eu tinha a mania de que
sabia escrever.
Talvez por isso eu tenha ficado imune, se
calhar o meu pecadilho de juventude - queria ser escritor! - funcionou como
vacina. Isso protegeu-me, até à data, admito, mas não sei até que ponto isto é
uma bênção ou uma maldição. Sou um leitor num mundo de escritores, e isso
faz-me sentir muito sozinho. Porque todos escrevem - mas ninguém lê o que os
outros escrevem. Ninguém senão eu. Não têm tempo. Estão tão absortos a contar a
sua história, a conceber o seu monumento de imaginação e arte, que não têm
tempo para ler. Nem é uma questão de ter tempo, é que, simplesmente, já não
conseguem. Não conseguem ler. E, qualquer dia, já não sabem ler. As línguas
assim vão acabar, ainda antes mesmo do mundo, porque cada um vai cada vez mais
e mais escrever na sua própria língua, no seu código muito pessoal,
esquecendo-se de que a comunicação tem dois sentidos e que, para se ser
compreendido, é preciso partilhar os elementos para essa compreensão. Não lêem.
Só escrevem. Morrem. Tal é a potência, a perversão demente do vírus.
*
E você? Não sei se existe, caro/a colega de
sobrevivência neste mundo em colapso. Se ler isto, é porque ainda existe, e
então fica a saber que, algures no planeta, talvez mesmo na sua cidade, há
alguém que partilha os seus medos, angústias, mas também as suas esperanças. E
talvez possamos encontrar-nos, era mesmo bom que trocássemos umas ideias sobre
o assunto, para unir esforços, e procurar outros como nós: leitores imunes ao
bicho da escrita. Bem sei que a sua primeira reacção talvez seja pensar:
"Este tipo está a tentar enrolar-me. Ele próprio é um escritor, não um
leitor de verdade. Ele próprio foi contaminado e está a tentar fazer-me crer
que não, provavelmente com algum fim pouco honesto."
Está no seu inteiro direito de pensar isso,
eu também o pensaria se me aparecesse pela frente uma história assim. Nós não
somos desconfiados por natureza, mas por cultura - e nunca ninguém perdeu em
desconfiar do vizinho. Razão tinha Kissinger, quando dizia que até os
paranóicos têm inimigos. Peço-lhe apenas o benefício da dúvida. Peço-lhe?
Imploro-lhe. Aqui onde me vê, estou de joelhos, implorando-lhe que acredite em
mim. Isto não é uma história, isto não é ficção. Estou apenas, genuinamente, a
tentar estabelecer contacto com alguém que exista do outro lado da página.
Estou a estender-lhe a mão. Por favor,
considere a possibilidade de me estender a sua.
Só mais uma palavra. Não escreva a
responder. Bem sei que se calhar está imune, mas nunca se sabe. Apareça,
apenas. Eu saberei reconhecê-lo/a, e você também me reconhecerá com facilidade.
Seremos os únicos - na praça, no jardim, na rua, no café, onde quer que nos
encontremos - sentados pacatamente, com um sorriso nos lábios e um livro,
aberto, na mão.
(Ilustração: Robert Delaunay - nude woman reading)
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