sábado, 18 de agosto de 2012

CASO DE RECENSEAMENTO, de Carlos Drummond de Andrade






O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio longínquo, aonde nunca chegam as notícias.

- Não quero comprar nada.

-Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo da população e lhe peço o favor de me ajudar.

- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém. Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?

E fecha-lhe a porta.

Ele bate de novo.

- O senhor, outra vez? Não lhe disse que não adianta pedir auxílio?

- A senhora não me entendeu bem, desculpe. Desejo que me auxilie mas é a encher este papel. Não vai pagar nada, não vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.

- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito ocupada, até logo!

A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta restabelecer o diálogo.

-Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa antes que eu chame meu marido!

- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele.

(Só Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma ideia na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário, é preciso preencher o questionário).

- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e sem camisa, puxado pela mulher.

- É esse camelô aí que não quer deixar a gente sossegada!

- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...

- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira qualquer, depois empurram a mercadoria! A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!

O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo com calma, convence-o de que não é camelô nem policial nem cobrador de impostos nem enviado de Tenório. A ideia de recenseamento, pouco a pouco, se vai instalando naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa atender ao rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há despesa nem ameaça de despesa de qualquer ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de se objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do governo.

- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?

- Tenho três, sim senhor.

- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de cada um?

- Pois não. Tenho o Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.

- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a Pipoca, como é mesmo o nome dela?

- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.

- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...

- Isso eu não sei, não me lembro.

E voltando-se para cozinha:

- Mulher, sabes o nome da Pipoca?

A mulher aparece, confusa.

- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.

Reviram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.

- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?

- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado, minha senhora, disponham!




(Cadeira de Balanço)



(Ilustração: Bernadeth Rocha - vila italiana)



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