sábado, 7 de maio de 2011

EU SOU UMA LINDA MULHER OU O DIA EM QUE FUI JÚLIA ROBERTS, de Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva






Em comum com a linda mulher na tela do cinema só a lingerie preta. Dentro de uma das taças do sutiã rendado um seio flácido, estriado e murcho. Dentro da outra taça, um seio novo, bem torneado e empinado, prótese insensível de espuma de borracha que escondia as cicatrizes que o câncer deixara. As dobras flácidas do abdome cobriam parte da renda preta da calcinha. Não havia a menor importância. Afinal, ninguém estava mesmo enxergando as roupas íntimas. Era a primeira vez que usava aquelas peças, mas as guardava há 14 anos. Desde o casamento. Incluíra no enxoval aquelas roupas sensuais com a esperança de manter o fogo do parceiro sempre aceso. Mas ele dissera que aquilo era roupa de puta e que mulher honesta não usava calcinha preta. As gordurinhas trazidas pelos anos sedentos de prazer diminuíram o tamanho das peças negras.


Hoje, antes de sair pro cinema, eu morri de medo que ele desconfiasse que eu tava usando as roupas de puta. A mulher na tela tá fazendo papel de puta, mas ela não é muito puta, só no comecinho do filme. Depois ela deixa de ser puta. Ai, aquele homem lindo, rico, estudado, maravilhoso, envolvente... Acho que ele seria capaz de me amar... Ele não tem preconceitos. Ele amou a linda mulher mesmo sabendo que ela era puta. Ele ia me aceitar mesmo sabendo que eu tô usando calcinha e sutiã preto e que o meu seio mais bonito é o de borracha. O filme devia ter mostrado o casamento, a casa que deve ser linda... Ela em casa, esperando ele pro jantar. Acho que ele não almoça em casa. Milionário não almoça em casa. À noite, ele serve champanhe com morango, como no primeiro dia, e a beija na boca como no final do filme. Há quanto tempo não beijo na boca! E faz amor porque ela continua usando a lingerie preta. Aquele dia, durante a lua de mel, escondi a lingerie preta envergonhada e só fui usá-la depois da cirurgia. Mas ele nem viu... O câncer me levou um seio e acho que agora ele não vai mais me chamar de puta. Acho que não existe puta com um seio só. O filme acabou, sinto que algo em mim tá mudado. Vou ao banheiro. Dentro do soutien, estão os seios da Júlia Roberts. Meu cabelo, que a radioterapia tinha deixado curtinho, cresceu. Minhas pernas estão lindas e durinhas. A barriga desapareceu e as duas pedrinhas de strass, na cintura da calcinha brilham como dois mini faróis. A luz acende assim que saio do banheiro. As pessoas na platéia me olham maravilhados. Faço cara de envergonhada, tento esconder minha beleza e saio do cinema. Meu marido, que espera por mim dentro do carro, me olha com olhos de cobiça. Não me reconhece. Resolvo não entrar no carro. Atravesso a rua e sinto que sou Júlia Roberts, eu sou uma linda mulher usando lingerie preta escondida debaixo da roupa discreta. Passo por entre as mesas na calçada e todos os homens me olham estupefatos com minha beleza sem maquiagem. Entro num táxi. Eu já ia pedir pro táxi me levar para Hollywood quando uma buzina doeu no meu ouvido como toque de recolher.



Olhou para trás assustada e viu o marido acenando. "Aonde você vai?", ele gritou. "Você se esqueceu que eu vinha te buscar?" Desceu do táxi, entrou no carro e ele perguntou se precisava passar na padaria para levar pão e leite para o lanche, disse que o moço da televisão pegou o aparelho estragado e ficou de devolver no final da semana e que as crianças ligaram da praia dizendo que os tios insistiam para elas ficarem até o final do mês.



(Ilustração: Adam Miller - anticipation)


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