sábado, 26 de março de 2011
QUAL VAI SER O PROGRAMA, HEIN?, de Anthony Burgess
- Qual vai ser o programa, hein?
Tinha eu, quer dizer, Alex e meus três drugues(*), quer dizer, Pete, Georgie e o Tapado, o Tapado sendo realmente tapado, e nós estávamos sentados no Leite-bar Korova, rassudocando o que fazer da noite, num inverno agitado, preto e gelado, uma merda, se bem que seco. O Leite-bar Korova era um méssito de tomar leite-com, e vós, ó meus irmãos, já podem ter se esquecido como eram aqueles méssitos, com as coisas mudando tão escorre hoje em dia e todo mundo muito rápido pra esquecer, os jornais também não muito lidos.
Bom, o que vendiam lá era leite com alguma coisa. Não tinham licença pra vender bebida, mas também ainda não tinha nenhuma lei contra prodar algumas das novas véssiches que eles costumavam botar no moloco, de modo que a gente podia pitar ele com velocete, ou sintemesque, ou drencrom, ou uma ou duas outras véssiches que deixavam a gente uns bons e tranquilos quinze minutos horrorshow admirando Bog e Todos os Seus Bem Aventurados Anjos e Santos no sapato esquerdo, e com luzes pipocando dentro do mosgue. Ou se podia pitar leite com facas, como a gente costumava dizer, e isso deixava a gente afiado e pronto pra uma sujeira de vinte-contra-um, e era isso que a gente estava pitando naquela noite com que eu estou começando a história.
Nossos bolsos estavam cheios de dengue, portanto, não havia realmente necessidade, do ponto de vista de crastar mais tutu, de toltchocar um veque velho qualquer num beco e videar ele nadando no próprio sangue, enquanto a gente contava a féria e dividia por quatro, nem de fazer ultraviolência com alguma trêmula ptitsa estarre de cabelo branco numa loja e aí sair esmecando com o recheio da caixa. Mas, como diz o outro, o dinheiro não é tudo.
Nós quatro estávamos vestidos no rigor da moda que, naquele tempo, eram umas malhas pretas muito justas, com um acolchoado preso às virilhas por baixo da malha, sendo isso pra proteger e também uma espécie de desenho que ficasse visível, havendo uma certa luz, de modo que eu tinha um com formato de aranha, Pete tinha um rúquer (quer dizer, mão), Georgie tinha uma flor muito bacaninha e o coitado do Tapado, um cretino dum litso (rosto, quer dizer) de palhaço, porque o Tapado não tinha muita noção das coisas e era, sem sombra da menor dúvida, o mais tapado de nós quatro. Depois, a gente estava usando jaquetas cintadas sem lapelas, mas com aqueles enchimentos enormes nos ombros (a gente dizia pletchos) e que eram uma espécie de arremedo de quem tinha os ombros realmente assim. Depois, meus irmãos, a gente estava usando aqueles gravatões largos, feito lenços, esbranquiçados, que pareciam purê de cartófel, ou batata, com uma espécie de desenho marcado em cima do tecido com um garfo. A gente usava o cabelo não muito longo e calçava botas pesadas horrorshow pra chutar.
- Qual vai ser o programa, hein?
Tinha três devótchecas sentadas juntas no balcão, mas nós, os maltchiques éramos quatro e geralmente o negócio era um por todos e todos por um. As tais gurias também estavam no rigor da moda, de perucas roxas, verdes e cor-de-laranja nos respectivos gúlivers, cada peruca não custando menos do que três ou quatro semanas de trabalho de cada uma delas, pelos meus cálculos, e usavam pintura combinando (quer dizer, arcoíris em volta dos glazes e a rote muito pintada). Depois, elas estavam de vestidos longos pretos, muito lisos e, na altura dos grudes, tinham plaquetas de prata com diversos nomes de maltchiques escritos - Joe, Mike e outros mais. Era pra ter os nomes dos diversos maltchiques com quem elas tinham espatado antes dos catorze anos. Olhavam muito na nossa direção e eu estava com vontade de dizer que nós três (isso seria com o canto da boca, é claro) devíamos dar uma saída pra fazer um pouco de pol e deixar o coitado do Tapado pra trás, porque era só questão de cupetar pra ele um meio litro de branco, mas dessa vez com uma bombada de sintemesque dentro, mas isso não ia ser da regra do jogo. O Tapado era muito feio, que nem o nome dele, mas numa briga suja ele era muito horrorshow e muito bom de bota.
- Qual vai ser o programa, hein?
O tcheloveque sentado ao meu lado, sendo o assento de pelúcia comprido e dando a volta a três paredes, estava muito noutra, com os glazinhos esgazeados e meio engrolando eslovos como "Aristóteles obra peleosso no campo ciclame fica forficulada aguda". Estava mesmo viajando, longe, em órbita, e eu sabia como era o negócio, que eu já tinha experimentado como todo mundo, mas naquela ocasião eu já estava achando que era uma véssiche muito covarde, ó meus irmãos. A gente ficava lá depois de beber o moloco e ai vinha o méssel de que tudo em volta estava como que no passado. A gente videava tudo, sim, tudo muito claro - as mesas, o estéreo, as luzes, as gurias e os maltchiques - mas era assim uma véssiche qualquer que tinha estado lá, mas já não estava mais. E a gente ficava meio hipnotizado pela bota, ou pelo sapato, ou por uma unha, e ao mesmo tempo era agarrado por três da gola e sacudido como se fosse um gato. Sacudido e sacudido até não ficar nada. Perdia o nome, o corpo, a personalidade, e nem ligava, ficava esperando que a bota ou a unha ficasse amarela, e cada vez mais amarela. Aí, as luzes começavam a estourar como se fossem atônicas e a bota, ou a unha, ou, podia ser, um sujinho nos fundilhos virava um méssito grande, grande, grande, maior do que o mundo todo e a gente ia ser apresentado ao velho Bog, ou Deus, quando tudo tivesse acabado. Depois a gente voltava à terra, aí meio choramingando com a rote toda se preparando prum buaaaaaaa'. Bem, tudo isso é muito agradável mas é muito covarde. A gente foi posto nesse mundo só pra entrar em contato com Deus. Esse tipo de coisa é capaz de esgotar toda a força e toda a bondade de um tcheloveque.
- Qual vai ser o programa, hein?
O estéreo estava ligado e a gente tinha a impressão do que a golosse do cantor estava se mexendo de um lado pro outro do bar, voando pro teto e depois mergulhando de novo e zunindo de parede a parede. Era Berti Laski, rouquejando um sucesso já muito estarre chamado Você Empola a minha tinta. Uma das três ptitsas no balcão, a de peruca verde, estava mexendo com a barriga pra dentro e pra fora, ao ritmo daquilo que chamavam de música. Eu sentia as facas do moloco começar a espetar e já estar pronto pra um pouco de vintecontra-um. Por isso, berrei: "Fora fora fora fora!" e aí rachei o tal veque que estava sentado ao meu lado e joguei ele longe, estalando-lhe uma tapona no uco, ou ouvido, mas ele não sentiu e continuou com o seu "Ferragens telefônicas e quando o longicúlulo ficar ratatatatá". Ele ia sentir direitinho quando ficasse bom, devolta da viagem.
- Fora pra onde? - disse Georgie.
- Ah, só pra andar um pouco - disse eu - e videar o que é que pinta no horizonte, ó meus irmãozinhos.
Então a gente se mandou pela grande nótchi de inverno e caminhou descendo o Marghanita Boulevard, depois virou na Boothby Avenue e lá a gente encontrou bem o que estava procurando, um passatempozinho malenque pra começar a noitada. Tinha um veque estarre, trêmulo, com pinta de professor, de óculos, a rote aberta pro ar frio da nótchi. Tinha livros debaixo do braço e um guarda-chuva sebento e estava dobrando a esquina da Bíblio Pública que muito poucas líudes frequentavam naquele tempo. Na verdade, nunca se via muita pinta de burguês velho nas ruas, naquele tempo, depois do cair da noite, assim com a escassez de policia e nós os jovens maltchiquezinhos à solta, e aquele velho com pinta de professor era o único andando na rua inteira. Então nós gulhamos em direção a ele, muito corteses, e eu falei:
- Com licença, irmão.
Ele pareceu um malenque pugle quando videou nós quatro saindo assim tão silenciosos e corteses e sorrindo, mas falou: - Sim? o que é? - com uma golosse alta, de professor, como se estivesse tentando nos mostrar que não estava pugle. Ai, eu falei:
- Vejo que o senhor está com livros debaixo do braço, irmão: é realmente um raro prazer, nos dias que correm, cruzar com alguém que ainda lê, irmão.
- Ah - disse ele todo trêmulo. - É mesmo? Ah, sei. - E continuava olhando de um para o outro de nós quatro, se sentindo agora como que no meio de um quadrado, todo assim muito sorridente e cortês.
- É - disse eu. - Me interessaria muitíssimo, irmão, se tivesse a bondade de me deixar ver que livros são esses que o senhor tem debaixo do braço. Não há nada de que eu goste mais neste mundo do que de um bom livro sadio, irmão.
- Sadio - disse ele. - Sadio, hein? –
E aí Pete esquivatou os três livros dele e distribuiu bem escorre. Sendo três, cada um de nós tinha um livro pra videar, com exceção do Tapado. O que estava comigo se chamava Cristalografia Elementar, então eu abri e falei:
- Excelente, realmente de primeira classe - sempre virando as páginas. Aí, eu disse, com uma golosse muito chocada: - Mas, o que é isso aqui? Que eslovo sujo é esse? Eu fico ruborizado só de ver essa palavra. Você me decepciona, irmão, realmente me decepciona.
- Mas... - tentou ele - mas, mas...
- Veja - disse Georgie -, isto aqui é o que eu chamo de coisa imunda. Tem uma palavra que começa com um "f" outra que começa com um "c" . - Ele estava com um livro chamado o Milagre do Floco de Neve.
- Ih - disse o coitado do Tapado, esmotando por cima do ombro de Pete e engrossando demais, como sempre -, aqui conta o que ele fez com ela e tem fotografia e tudo! Puxa - disse ele - você não passa de um velho lelé da cuca, que só pensa em sujeira.
- Um velho da sua idade, irmão - disse eu, e comecei a rasgar o livro que estava comigo e os outros fizeram o mesmo com os que tinham nas mãos, o Tapado e Pete fazendo cabo-de-guerra com O Sistema Romboédrico.
O estarre com pinta de professor começou a critchar:
- Mas não são meus, pertencem a municipalidade, isto é deboche e vandalismo! - e uns eslovos assim. E ele mesmo tentou arrancar os livros da gente, o que foi assim patético.
–Você está precisando de uma lição, irmão - disse eu -, lá isso está.
O tal livro de cristais que estava comigo tinha uma encadernação muito sólida e era duro de rasrezar em pedaços, porque era muito estarre e feito no tempo em que as coisas eram feitas assim pra durar, mas eu consegui arrancar as páginas e atirar aos punhados como se fossem flocos de neve, só que grandes, em cima do velho que critchava, e os outros fizeram a mesma coisa com os deles, o Tapado só dançando em volta, que nem o palhaço que era.
– Pronto - disse Pete -, taí a carne do cozido pra você, seu porco, leitor de sujeira e indecência.
- Ah, seu velho safado - disse eu, e aí a gente começou a toltchocar ele. Pete segurou-lhe os ruqueres e Georgie escancarou-lhe a rote, e aí o Tapado arrancou de lá de dentro os zubes postiços, os de cima e os de baixo. Jogou tudo na calçada e eu comecei a moê-los a botinadas, se bem que fossem duros paca, feitos que eram assim de algum novo troço de plástico horrorshow. O veque velho começou a fazer uns chumes resmungando - uuf, uaf, uof - por isso Georgie largou os gúberes dele e mandou-lhe um murro na rote desdentada com seu mãozão cheio de anéis, e isso fez o veque velho começar a gemer à beça, aí é que começou a sair o sangue, meus irmãos, uma beleza. Aí, a gente só fez foi arrancar as pletes externas dele, deixando ele de colete e ceroulas (muito estarres; o Tapado quase estourou de tanto esmecar). Pete deu-lhe um lindo chute na pança e então nós largamos ele. Ficamos meio cambaleando, que realmente não tinha sido um toltchoque tão pesado assim, fazendo ah ah ah, sem saber o que era aquilo tudo, ainda gozamos ele um bocado e depois revistamos os bolsos dele, enquanto o Tapado dançava em volta com o guarda-chuva sebento, mas não tinha grande coisa nos bolsos. Tinha umas cartas estarres, algumas datando lá de 1960, com "Meu muito querido" escrito em cima e aquela tchipuca toda, e um chaveiro e uma caneta estarre vazando. O Tapado parou com a dança da sombrinha e, é claro, tinha que começar a ler uma das cartas em voz alta, assim pra mostrar pra rua vazia que sabia ler.
"Meu bem-ama-do", recitava ele com a sua golossezinha mais aguda. "Vou ficar pensando em você enquanto você estiver ausente e espero que você se lembre de se agasalhar bem quentinho quando sair a noite." Aí, soltou um esmeque muito chumento - ah ah ah -, fingindo limpar o iama com a carta.
- Tá bom - disse eu -, vamos embora, ó meus irmãos. Nas caças do tal veque estarre tinha só um malenquezinho de cortador (dinheiro, quer dizer) - não mais do que três golhes - por isso a gente jogou a titica das moedinhas dele pro alto, já que era mixaria perto da quantidade de tutu que a gente já tinha. Então, quebramos o guarda-chuva dele, rasrezamos as suas pletes e jogamos tudo aos ventos que sopravam, meus irmãos, e aí, pra nós estava encerrada a nossa história com o veque estarre com pinta de professor. Sei que a gente não tinha feito grande coisa, mais era assim só o começo da noite e não peço desculpas a vós e vós outros por isso. As facas do leite-com estavam picando gostoso e horrorshow, agora.
(*) As gírias são invenções do autor – neologismos criados a partir da língua russa, principalmente. Aqui estão o significados das que estão no texto:
Bog – Deus
cartófel – batata
chume - barulho, ruído
critchar - gritar, berrar
cupetar - comprar, pagar
dengue – dinheiro
devótcheca - moça, garota
drencrom - droga, tóxico
drugue - amigo, "faixa", "chapa"
escorre - rápido, depressa
eslovo - palavra, termo
esmecar – rir
esmotar – olhar
espatar – dormir
estarre - velho, antigo
glaze – olho
golhe - a unidade monetária
golosse – voz
grude - seio, peito
gúber - lábio, beiço
horrorshow - bom, bem , gostoso, legal
iama - buraco (ânus, no caso)
litso – rosto
líudes - pessoas, gente
malenque – pequeno
maltchique - rapaz, garoto
méssel – pensamento
méssito - lugar, local
moloco – leite
mosque – cerébro
pletes – roupas
pol – sexo
prodar - produzir, fabricar
ptisa - guria, garota
rasrezar – rasgar
rassudocar - pensar, imaginar
rúquer, ruque - braço, mão
sintemesque - droga, tóxico
tcheloveque - pessoa, homem
tchipuca – absurdo
toltchocar - bater, dar panacada
uco - orelha, ouvido
velocete - droga, tóxico
veque - (v. tcheloveque)
véssiche – coisa
videar - ver, olhar
zubes – dentes
(Laranja Mecânica – tradução de Nelson Dantas)
(Ilustração: Jean-Marie Poumeyrol – L’abattoir)
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