O contraste contínuo e as formas simbólicas com as quais tudo se imprimia na alma conferiam à vida cotidiana uma excitação e um poder de sugestão que se manifestavam nos ânimos instáveis de emotividade tosca, crueldade extrema e ternura íntima entre os quais se movia a vida urbana medieval.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
A VEEMÊNCIA DA VIDA, de Johan Huizinga
Quando o mundo era cinco séculos mais jovem, tudo o que acontecia na vida era dotado de contornos bem mais nítidos que os de hoje. Entre a dor e a alegria, o infortúnio e a felicidade, a distância parecia maior do que para nós; tudo que o homem vivia ainda possuía aquele teor imediato e absoluto que no mundo de hoje só se observa nos arroubos infantis de felicidade e dor. Cada momento da vida, cada feito era cercado de formas enfáticas e expressivas, realçado pela solenidade de um estilo de vida rígido e perene. Os grandes fatos da vida – o nascimento, o matrimônio, a morte – eram envoltos, por obra dos sacramentos, no esplendor do mistério divino. Mas também os menores – uma viagem, uma tarefa, uma visita – eram acompanhados de mil bênçãos, cerimônias, ditos e convenções.
Contra as calamidades e as privações, havia menos lenitivos do que agora; e elas eram mais opressivas e cruéis. O contraste entre a doença e a saúde era maior; o frio severo e a escuridão medonha do inverno eram males mais pungentes. Honra e riqueza eram desfrutadas com mais intensidade, mais avidez, pois destacavam-se da pobreza e da degradação circundantes com maior veemência do que hoje. Um manto de pele, um fogo brilhante na lareira, bebidas, pilhéria e uma cama macia ainda conservavam aquele alto apreço pelos prazeres da vida, que o romance inglês soube perpetuar vividamente. E todos os elementos da vida mostravam-se abertamente, com alarde e crueldade. Os leprosos chacoalhavam suas matracas e saíam em procissão, os mendigos lamuriavam-se nas igrejas e expunham suas deformidades. Cada estamento, cada ordem, cada ofício podia ser reconhecido por seus trajes. Os grandes senhores, venerados e invejados, jamais se deslocavam sem um aparato pomposo de armas e librés. Julgamentos, transações comerciais, casamentos e enterros, tudo se anunciava sonoramente com procissões, gritos, lamentos e música. O amante levava o símbolo de sua dama; os membros de uma irmandade, seu emblema; um vassalo, as cores e brasões de seu senhor.
Também entre a cidade e o campo imperava um nítido contraste. A cidade não se estendia, à maneira das nossas, em subúrbios desmazelados de fábricas enfadonhas e casas humildes. Ao contrário, fechava-se em seus muros, era compacta e eriçada com numerosas torres. E por mais altas ou maciças que fossem as casas de pedra dos nobres ou dos comerciantes, o vulto altaneiro das igrejas dominava a silhueta da cidade.
Assim como o contraste entre o verão e o inverno era mais severo do que para nós, também o era o contraste entre a luz e a escuridão, o silêncio e o ruído. A cidade moderna praticamente desconhece a escuridão e o silêncio profundos, assim como o efeito de um lume solitário ou de uma voz distante.
O contraste contínuo e as formas simbólicas com as quais tudo se imprimia na alma conferiam à vida cotidiana uma excitação e um poder de sugestão que se manifestavam nos ânimos instáveis de emotividade tosca, crueldade extrema e ternura íntima entre os quais se movia a vida urbana medieval.
(O Outono da Idade Média, tradução de Francis Petra Janssen)
(Ilustração: une rue au moyen âge)
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Johan Huizinga - A veemência da vida
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
AVÓ MARIANA, de Alda do Espírito Santo (Alda Graça)
Avó Mariana, lavadeira
dos brancos lá da Fazenda
chegou um dia de terras distantes
com seu pedaço de pano na cintura
e ficou.
Ficou a Avó Mariana
lavando, lavando, lá na roça
pitando seu jessu (*)
à porta da sanzala
lembrando a viagem dos seus campos de sisal.
Num dia sinistro
p'ra ilha distante
onde a faina de trabalho
apagou a lembrança
dos bois, nos óbitos
lá no Cubal distante.
Avó Mariana chegou
e sentou-se à porta da sanzala
e pitou seu jessu
lavando, lavando
numa barreira de silêncio.
Os anos escoaram
lá na terra calcinante.
- "Avó Mariana, Avó Mariana
é a hora de partir.
Vai rever teus campos extensos
de plantações sem fim".
- "Onde é terra di gente?
Velha vem, não volta mais...
Cheguei de muito longe,
anos e mais anos aqui no terreiro...
Velha tonta, já não tem terra
Vou ficar aqui, minino tonto".
Avó Mariana, pitando seu jessu
na soleira do seu beco escuro,
conta Avó Velhinha
teu fado inglório.
Viver, vegetar
à sombra dum terreiro
tu mesmo Avó minha
não contarás a tua história.
Avó Mariana, velhinha minha,
pitando seu jessu
na soleira da senzala
nada dirás do teu destino...
Porque cruzaste mares, avó velhinha,
e te quedaste sozinha
pitando teu jessu?
(É nosso o solo sagrado da terra)
(*) jessu – cachimbo de barro
(Ilustração: Andrade Lima - lavadeira)
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Alda do Espírito Santo (Alda Graça)
domingo, 26 de dezembro de 2010
LIBERDADE EM SEGURANÇA, de Mário Henrique Leiria
Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou:
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os réus? - insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstancias atenuantes e outras, declaro os três réus inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida. Desestabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita. E saíram. Pela porta da direita.
Saíram os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Saíram todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.
(Ilustração: Pierre-Paul Prud'hon -Justice and Divine Vengeance Pursuing Crime)
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Mário Henrique Leiria - Liberdade em segurança
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
POUR HÉLÈNE / SONETO A HELENA, de Pierre de Ronsard
Quand vous serez bien vieille, au soir à la chandelle,
Assise auprès du feu, devidant e filant,
Direz chantant mês vers, em vous esmerveillant:
"Ronsard me celebroit du temps que j'estois belle."
Lors vous n'auray servant oyant telle nouvelle,
Desja sous le labeur à demy sommeillant,
Qui au bruit de mon nom ne s'aille resveillant,
Benissant vostre nom de louange immortelle.
Je seray sous la terre, et fantôme sans os
Par lês ombres myrteux je prendray mon repôs;
Vous serez au foyer une vielle accroupie,
Regrettant mon amour et vostre fier desdain,
Vivez, si m'en croyez, n'attendez à demain:
Cueillez dês aujourdhuy lês roses de la vie.
Tradução de Guilherme de Almeida:
Quando fores bem velha, à noite, á luz da vela
Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.
E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.
Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso:
E em tua casa irás, velhinha combalida,
Chorando o meu amor e o teu cruel desdém.
Vive sem esperar pelo dia que vem;
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida.
Tradução José Lino Grünewald:
Quando fores bem velha, à noite junto à vela,
Sentada ao pé do fogo, enovelando e fiando,
Dirás, cantando os versos meus e te enlevando:
“Ronsard me celebrava ao tempo em que era bela”.
Então nem haverá, ouvindo o recital,
Serva, ao fim do trabalho e semi-sonolenta,
Que, com som do meu nome, não desperte atenta
A saudar o teu nome em louvor imortal.
Estarei sob a terra e, fantasma sem osso,
Pelas sombras dos mirtos terei meu repouso;
Tu serás à lareira uma anciã encolhida
Chorando o meu amor e o teu fero desdém.
Se me crês, não espere o amanhã também:
Vive, colhe desde hoje as rosas desta vida.
Tradução de Heitor P. Froes:
Quando já bem velhinha, à noite, à luz da vela,
Sentada ante a lareira estiveres fiando,
Dirás, ao recordar-me, o coração pulsando:
Ronsard cantou-me em verso, ao tempo em que fui bela'
Já não terás, então, como serva a donzela
Que, ao peso do cansaço às vezes ressonando,
Ouvindo-me invocar despertava, abençoando
O teu nome imortal que meu verso revela.
O corpo sepultado, a alma livre e sem pouso,
À sombra dos mirtais encontrarei repouso;
Tu — do tempo curvada à fatal inclemência —
Chorarás meu amor e teu frio desdém...
Não fiques a esperar pelo dia que vem:
Colhe enquanto inda é tempo as rosas da existência!
(Nota: texto em francês com ortografia original)
(Ilustração: Javier Arizabalo)
Quando fores bem velha, à noite junto à vela,
Sentada ao pé do fogo, enovelando e fiando,
Dirás, cantando os versos meus e te enlevando:
“Ronsard me celebrava ao tempo em que era bela”.
Então nem haverá, ouvindo o recital,
Serva, ao fim do trabalho e semi-sonolenta,
Que, com som do meu nome, não desperte atenta
A saudar o teu nome em louvor imortal.
Estarei sob a terra e, fantasma sem osso,
Pelas sombras dos mirtos terei meu repouso;
Tu serás à lareira uma anciã encolhida
Chorando o meu amor e o teu fero desdém.
Se me crês, não espere o amanhã também:
Vive, colhe desde hoje as rosas desta vida.
Tradução de Heitor P. Froes:
Quando já bem velhinha, à noite, à luz da vela,
Sentada ante a lareira estiveres fiando,
Dirás, ao recordar-me, o coração pulsando:
Ronsard cantou-me em verso, ao tempo em que fui bela'
Já não terás, então, como serva a donzela
Que, ao peso do cansaço às vezes ressonando,
Ouvindo-me invocar despertava, abençoando
O teu nome imortal que meu verso revela.
O corpo sepultado, a alma livre e sem pouso,
À sombra dos mirtais encontrarei repouso;
Tu — do tempo curvada à fatal inclemência —
Chorarás meu amor e teu frio desdém...
Não fiques a esperar pelo dia que vem:
Colhe enquanto inda é tempo as rosas da existência!
(Nota: texto em francês com ortografia original)
(Ilustração: Javier Arizabalo)
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
A CASA DE BONECA, de Katherine Mansfield
Quando a querida Sra. Hay voltou à cidade, depois de ter passado uns dias com os Burnells, mandou para as crianças uma casa de boneca. Era tão grande, que o carroceiro e Pat carregaram-na para o quintal, e ali ficou, em cima de dois caixotes de madeira, junto da porta da despensa. Não havia perigo de se estragar – era verão. Além disso, o cheiro de tinta talvez tivesse passado, no momento de levá-la para dentro. Porque, é verdade, o cheiro de tinta que vinha daquela casa de boneca ("Muita gentileza de parte da velha Sra. Hay, muita gentileza e generosidade"), o cheiro de tinta era bem capaz de fazer alguém ficar seriamente doente, achava a tia Beryl. Até mesmo após ser desembalada. E ao ser...
Lá estava a casa de boneca, de um verde escuro, oleosa, espinafre, realçado com amarelo claro. Suas duas chaminezinhas, coladas no teto, eram pintadas de vermelho e branco, e a porta, brilhando com o seu verniz amarelo, parecia um caramelo. Quatro janelas, janelas de verdade, eram divididas em caixilhos envidraçados por uma larga lista verde. Havia, também, um pequeno pórtico pintado de amarelo, com grandes protuberâncias de tinta solidificada pendendo ao longo da sua beirada. Mas que casinha perfeita! Quem é que poderia incomodar-se com o cheiro? Fazia parte da alegria, da novidade.
– Alguém abra logo!
O trinco, de um lado, estava fortemente fechado. Pat forçou-o com seu canivete, toda a fachada da casa girou para a frente e... Pronto! Todos olharam juntos, ao mesmo tempo, para a sala de visitas e a sala de jantar, a cozinha e os dois quartos. Aquilo sim que era maneira de se abrir uma casa! Por que todas não se abriam daquele jeito? Era muito mais emocionante do que espiar pela fresta de uma porta e ver um pequeno hall com uma chapeleira e dois guarda-chuvas! Era aquilo – não era? – que você gostaria de saber sobre uma casa ao levar a mão à maçaneta. Talvez fosse assim que, ao dar uma volta silenciosa com um anjo, Deus abrisse as casas, tarde da noite...
– Oooh!
A exclamação das filhas dos Burnells soou como se elas estivessem desesperadas. A casa era tão maravilhosa! Demais para elas! Nunca tinham visto nada igual na vida. Todos os cômodos, forrados com papel de parede! Havia quadros nas paredes, pintados no papel, com molduras douradas e tudo. Um carpete vermelho cobria o assoalho inteiro, salvo o da cozinha. Cadeiras de feltro vermelho na sala de visitas, verde na sala de jantar. Mesas, camas com lençóis e colchas de verdade, um berço, um fogão, um aparador com pratinhos e um jarro grande. O que mais agradou a Kezia, porém, o que ela adorou, foi o lampião, no centro da mesa da sala de jantar. Um lindo lampiãozinho, cor de âmbar, com um globo branco. Já estava até cheio, prontinho, embora, é claro, não pudesse ser aceso. Mas havia dentro dele algo que parecia querosene e que, sedido, se mexia.
Papai e mamãe bonecos estavam encarrapachados, imóveis, como se houvessem desmaiado, na sala de jantar, e seus dois filhos, que dormiam no andar de cima, eram grandes demais para a casa de boneca. Pareciam não pertencer a ela. Mas o lampião era perfeito. Sorria para Kezia, dizendo "eu moro aqui". O lampião era de verdade.
Na manhã seguinte, indo para a escola, as filhas dos Burnells não conseguiam andar tão depressa quanto gostariam. Elas estavam loucas de vontade de contar para todo o mundo, de descrever, de... em suma, de gabar-se da casa de boneca delas antes que a campainha tocasse.
– Sou eu que vou contar – disse Isabel, – porque eu sou a mais velha. E vocês duas podem completar depois. Mas eu conto primeiro. Não havia o que contestar. Isabel era uma mandona, sempre tinha razão, e Lottie e Kezia conheciam muito bem os poderes que detinha por ser a mais velha. Elas passaram céleres no meio dos ranúnculos da beira da estrada e não disseram nada.
– E sou eu que vou escolher quem a vê primeiro. Mamãe disse que posso.
Tinha sido combinado que, enquanto a casa de boneca permanecesse no quintal, podiam convidar as meninas da escola, duas de cada vez, para virem vê-la. Não podiam ficar para o chá, é claro, nem perambular dentro de casa. Só ficar quietinhas, no quintal, enquanto Isabel mostrava as maravilhas dela, e Lottie e Kezia permaneciam olhando, deleitadas...
No entanto, embora se apressassem o mais que podiam, ao chegarem à cerca coberta de pixe do pátio dos meninos, o sinal tocou. Tiveram tempo apenas de tirar rapidamente os chapéus e entrar na fila antes do início da chamada. Azar. Isabel tentou compensar assumindo uns ares importantes e misteriosos, cochichando, com a mão escondendo a boca, para as meninas que estavam perto dela:
– Preciso contar uma coisa para vocês na hora do recreio.
Chegou a hora do recreio, e cercaram Isabel. As meninas da turma quase brigaram para passar os braços em torno dela, puxá-la à parte, sorrir bajuladoramente, ser a sua amiga especial. Ela concedeu uma verdadeira audiência debaixo dos gigantescos pinheiros, num canto do pátio. Acotovelando-se, dando risadinhas, as meninas comprimiam-se. As duas únicas que se mantinham fora do círculo eram as que sempre ficavam de fora, as Kelveys. Elas não fariam a besteira de chegar perto das Burnells.
O caso era que a escola em que as Burnells estavam não era absolutamente aquela que os pais teriam escolhido, se houvesse possibilidade de escolha. Mas não havia. Era a única escola num raio de várias milhas. Em consequência, as meninas do lugar – as filhas do juiz, do doutor, do dono do armazém, do leiteiro – eram obrigadas a misturar-se. Para não falar de igual número de meninos grosseiros, broncos. Mas a linha divisória tinha de ser traçada em algum ponto. Este ponto eram as Kelveys. Muitas crianças, inclusive as Burnells, estavam proibidas de falar com elas. Passavam pelas Kelveys de cabeça empinada, e, como elas davam o tom geral de comportamento, todo mundo evitava as Kelveys. Inclusive a professora tinha uma voz particular para elas e um sorriso significativo para as outras meninas, quando Lil Kelvey vinha até a sua mesa com um buquê de flores horrivelmente vulgares.
Eram filhas de uma lavadeirazinha despachada e trabalhadora, que batia de porta em porta todos os dias. Uma coisa horrível mesmo. E onde andava o Sr. Kelvey? Ninguém sabia, ao certo. Dizia-se que estava preso. De modo que elas eram filhas de uma lavadeira e de um presidiário. Otima companhia para as filhas dos outros! E tinham mesmo jeito disso! Era difícil entender por que a Sra. Kelvey fazia com que elas dessem tanto na vista assim. Na verdade, vestia-as com "pedaços" que lhe foram dados pelas pessoas para quem trabalhava. Lil, por exemplo, que era uma menina decidida, desembaraçada, sardenta, ia para a escola com um vestido feito de uma avental de sarja verde dos Burnells, com mangas de feltro vermelho feitas com as cortinas dos Logans. O chapéu dela, empoleirado no topo da sua testa alta, era um chapéu de mulher adulta, que pertenceu outrora a Miss Lecky, a gerente dos Correios. Era virado para cima na parte de trás e enfeitado com uma grande pena escarlate. Lil parecia um espantalho! Era impossível não rir dela. E a sua irmãzinha, nossa Else, usava um vestido branco comprido, uma espécie de camisola, e um par de botinas de menino. Mas, vestisse o que quisesse, nossa Else continuaria tendo um aspecto esquisito. Era uma menina magricela, de cabelos curtos e olhos enormes e solenes – uma corujinha branca. Ninguém nunca a tinha visto sorrir. Quase não falava. Vivia agarrada à irmã, sempre grudada num pedaço da saia de Lil. Onde a outra ia, nossa Else ia atrás. No pátio, na estrada a caminho da escola ou voltando para casa, lá vinha Lil na frente e nossa Else agarrada a ela atrás. Somente quando queria alguma coisa, ou estava cansada, nossa Else dava um puxão em Lil, e ela parava e virava para trás. As Kelveys sempre se entendiam.
Agora elas rondavam por perto: ninguém poderia impedi-las de escutar. As meninas viraram-se e sorriram zombeteiramente para elas. Lil, como de costume, dava o seu sorriso abobalhado e envergonhado, e nossa Else limitava-se a ficar olhando.
A voz de Isabel, toda prosa, continuava contando. O carpete fez grande sensação, assim como as camas com lençóis e colchas de verdade, e o fogão, com a portinha do forno.
Quando terminou, Kezia interveio.
– Você se esqueceu do lampião, Isabel.
– Ah é! – disse Isabel. – Tem um lampiãozinho, todo de vidro amarelo com um globo branco, em cima da mesa da sala de jantar. Até parece de verdade.
– O lampião é o melhor de tudo! – exclamou Kezia.
Ela achava que Isabel não estava dando bastante importância ao lampiãozinho. Mas ninguém prestou atenção: Isabel escolhia as duas que iriam voltar para casa com elas, à tarde, para ver a casinha de boneca.
Escolheu Emmie Cole e Lena Logan. Sabendo que teriam a sua vez, as outras se desmancharam em gentilezas para com Isabel. Uma a uma, punham o braço em volta da cintura dela e a puxavam à parte. Tinham uma coisa para contar, um segredo.
– Isabel é minha amiga.
Só as pequenas Kelveys se afastaram, esquecidas, sem mais nada para ouvir.
Passaram-se os dias, e quanto mais crianças viam a casa de boneca, mais se propagava a sua fama. Tornou-se o único tema, a coqueluche. A única pergunta que se ouvia era:
– Viu a casa de boneca das Burnells? Não é uma graça?
– Você não viu? Ah, eu vi!
Até mesmo a hora do lanche era consagrada a se falar dela. As meninas sentavam-se debaixo dos pinheiros comendo seus grossos sanduíches de carneiro e enormes pedaços de bolo de fubá besuntados com manteiga. Como sempre, as Kelveys ficavam sentadas o mais perto que podiam, nossa Else agarrada a Lil, ouvindo também, enquanto mastigavam seus sanduíches de presunto, embrulhados num jornal empapado de vermelhas manchas de gordura.
– Mamãe – perguntou Kezia um dia, – posso convidar as Kelveys uma vez?
– Claro que não!
– Mas por quê?
– Não amole, Kezia. Você sabe muito bem por quê.
Finalmente, todas as meninas tinham visto, menos elas. Naquele dia, o tema esmoreceu. Hora do lanche. As meninas estavam juntas debaixo dos pinheiros e, de repente, ao olharem para as Kelveys comendo no jornal delas, sempre sozinhas, sempre ouvindo, sentiram vontade de serem malvadas. Emmie Cole deu início à implicância.
– Lil Kelvey vai ser empregada doméstica quando crescer.
– Oooh, que horror! – fez Isabel Burnell, lançando um olhar cúmplice para Emmie.
Emmie engoliu o seu lanche com um ar cheio de subentendidos e balançou a cabeça para Isabel, como tinha visto sua mãe fazer naquelas ocasiões.
– E verdade... é verdade... é verdade – disse.
Os olhos de Lena Logan chamejaram.
– Vou perguntar a ela – sibilou.
– Melhor não – disse Jessie May.
– Ah, não tenho medo! – exclamou Lena.
De repente, ela soltou um gritinho agudo e pôs-se a dançar diante das coleguinhas.
– Olhem! Olhem para mim! Olhem só para mim! disse.
E esgueirando-se, deslizando, arrastando o pé, ocultando o riso com a mão, Lena foi para cima das Kelveys. Lil ergueu os olhos do seu lanche. Embrulhou rapidamente o resto dele. Nossa Else parou de mastigar. O que ia acontecer?
– É verdade que você vai ser empregada doméstica quando crescer, Lil Kelvey?
– perguntou Lena com uma voz estridente.
Silêncio profundo. Em vez de responder, Lil apenas deu um sorriso abobalhado, envergonhado. Ela fingia não ter ouvido a pergunta. Que decepção para Lena! As outras meninas caíram na gargalhada.
Lena não podia aguentar aquela caçoada. Pôs as mãos nas cadeiras e exclamou arrogante, dando despeitadamente de ombros:
– Ahn, também o pai de vocês está na prisão.
Era tão formidável ter dito aquilo, que todas as meninas saíram correndo juntas, profunda, profundamente contentes, numa alegria selvagem. Uma delas encontrou uma corda comprida, e elas começaram a pular. Nunca pularam tão alto, entraram e saíram da corda tão depressa, nem fizeram coisas tão arrojadas como naquela manhã. À tarde, Pat veio buscar as Burnells com a charrete, e foram para casa. Tinham visitas, Isabel e Lottie, que adoravam visitas, subiram para trocar os aventais. Mas Kezia escapuliu para os fundos. Não havia ninguém por perto. Ela começou a balançar-se no portão branco do quintal. Pouco depois, olhando para a estrada, viu dois pequenos pontos. Eles foram crescendo, vinham em direção a ela. Agora podia ver que um estava na frente e o outro logo atrás. Agora podia ver que eram as Kelveys. Kezia parou de balançar. Pulou do portão e quase saiu correndo. E, então, hesitou. As Kelveys se aproximavam e, ao lado delas, caminhavam as suas sombras, compridíssimas, estendendo-se através da estrada, as cabeças nos ranúnculos.
Kezia tornou a trepar no portão. Tomou uma decisão. Balançou para fora.
– Oi! – fez para as Kelveys que passavam.
Elas ficaram tão atônitas, que até pararam. Lil deu o seu sorriso ababalhado. Nossa Elsa ficou olhando.
– Podem vir ver a nossa casa de boneca, se quiserem – disse Kezia, esfregando o dedo do pé no chão.
Lil corou e sacudiu vivamente a cabeça.
– Por que não? – perguntou Kezia.
Lil respirou fundo, nervosamente.
- Sua mãe disse pra minha que era pra você não falar com a gente.
– Ahh – fez Kezia, sem saber o que replicar. – Não tem importância. Podem espiar, assim mesmo, a nossa casa de boneca. Venham. Não tem ninguém olhando.
Lil sacudiu a cabeça com maior veemência ainda.
– Vocês não querem? – perguntou Kezia.
De repente, deram um puxão na saia de Lil. Ela virou-se para trás. Nossa Else implorava com os olhos enormes, fazia cara feia – queria ver. Por um momento, Lil fitou a irmã com uma expressão de dúvida. Mas nossa Else puxou de novo a saia dela. Lil deu um passo adiante.
Kezia foi na frente. Feito dois gatos de rua, as duas a seguiram pelo quintal até onde estava a casa de boneca.
– Olhem! – mostrou Kezia.
Houve uma pausa. Lil respirava profundamente, quase bufando. Nossa Else estava silenciosa como uma pedra.
– Vou abrir pra vocês – disse Kezia gentilmente.
Abriu o trinco, e as meninas viram o interior da casa.
– Tem uma sala de visitas e uma sala de jantar. E isto é o...
– Kezia!
Ah, que pulo elas deram!
– Kezia!
Era a voz da tia Beryl. Elas se viraram. Da porta dos fundos, tia Beryl olhava como se não pudesse acreditar no que estava vendo.
– Você ousou convidar as Kelveys para virem até o quintal?! – exclamou a voz fria e furiosa. – Você sabe, tão bem quanto eu, que está proibida de falar com elas! Vão embora, meninas, vão já embora! E não voltem mais!
Tia Beryl foi até o quintal e enxotou-as, como se enxotasse galinhas.
– Fora, fora, imediatamente! – gritou, fria e arrogante.
Não foi preciso dizer-lhes aquilo duas vezes.
Ardendo de vergonha, apertando-se uma à outra, Lil arrastava a irmã, nossa aturdida Else, como se fosse sua mãe, atravessaram sem saber de que jeito o grande quintal e passaram comprimidas pelo portão branco.
– Menina travessa, desobediente! – tia Beryl disse a Kezia, azeda, e bateu violentamente a porta da casa de boneca.
A tarde havia sido terrível. Recebera uma carta de Willie Brent, uma carta tremenda, ameaçadora, dizendo que se ela não viesse encontrá-la naquela noite em Pulman’s Bush, ele viria até o portão e perguntaria por quê! Mas agora, que ela assustara aqueles ratinhos das Kelveys e dera uma boa bronca em Kezia, seu coração estava mais leve. Aquela pressão horrível cessara.
Retornou à casa cantarolando.
Quando as Kelveys ficaram bem longe da vista dos Burnells, sentaram-se para descansar um pouco numa grande manilha vermelha à beira da estrada. As bochechas de Lil ainda estavam ardendo. Ela tirou o chapéu com a pena e colocou-o sobre os joelhos. As duas olharam sonhadoras, por cima do campo de feno, além do remanso do ribeirão, para a cerca de madeira do curral, onde as vacas dos Logans esperavam para serem ordenhadas. Em que as Kelveys estariam pensando?
Agora, nossa Else apertou-se mais à irmã. Já tinha se esquecido daquela mulher furiosa. Estendeu um dedinho, afagou a pena do chapéu e sorriu o seu sorriso raro.
- Eu vi o lampiãozinho – disse ela mansamente.
Daí, ambas tornaram a ficar em silêncio.
(Tradução de Edla Van Steen e Eduardo Brandão)
(Ilustração: Judy Westergaard – in the doll’s house)
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Katherine Mansfield - A casa de boneca
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
VIOLÕES QUE CHORAM..., de Cruz e Sousa
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.
Sutis palpitações a luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos Nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
E sons soturnos, suspiradas magoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho
Almas que se abismaram no mistério.
Sons perdidos, nostálgicos, secretos,
Finas, diluídas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar a flor de espumas.
Oh! languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ânsia esquisita
E de gritos felinos de ciúmes!
Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lágrimas sonoras!
Quando uma voz, em trêmolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta
Soturna e singular da lua cheia.
Quando as estrelas mágicas florescem,
E no silêncio astral da Imensidade
Por lagos encantados adormecem
As pálidas ninféias da Saudade!
Como me embala toda essa pungência,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem asas brancas de clemência
As harmonias dos Violões que falam!
Que graça ideal, amargamente triste,
Nos lânguidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas visões melodiosas dessa graça.
Que céu, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses ritmos trêmulos e indecisos...
Que anelos sexuais de monjas belas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recôndito das celas,
Por entre as ânsias dilaceradoras...
Quanta plebéia castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpétuos turbilhões de chama.
Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas.
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias aspérrimas e agudas.
Véus neblinosos, longos véus de viúvas
Enclausuradas nos ferais desterros
Errando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,
Sob abóbadas lúgubres de enterros;
Velhinhas quedas e velhinhos quedos
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos
Sepulcros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sozinhos;
E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lívidos defuntos...
E como que há histéricos espasmos
na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de Sonambulismos e letargos.
Fantasmas de galés de anos profundos
Na prisão celular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos
Da lembrança fiel de áureos passados;
Meigos perfis de tísicos dolentes
Que eu vi dentre os vilões errar gemendo,
Prostituídos de outrora, nas serpentes
Dos vícios infernais desfalecendo;
Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo níveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando alivio;
Corpos frágeis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues
Na degenerescência dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;
Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporais o temporal supremo;
Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, cândidos, felizes.
Ébrios antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miséria humana,
Têm nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Bíblia fatal da dor insana.
Enxovalhados, tábidos palhaços
De carapuças, máscaras e gestos
Lentos e lassos, lúbricos, devassos,
Lembrando a florescência dos incestos;
Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridículo das vidas,
Caricaturas tétricas e errantes
Dos malditos, dos réus, dos suicidas;
Toda essa labiríntica nevrose
Das virgens nos românticos enleios;
Os ocasos do Amor, toda a clorose
Que ocultamente lhes lacera os seios;
Toda a mórbida música plebeia
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, mole e morna melopéia
Das valsas alanceadas, convulsivas;
Tudo isso, num grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias noites!
(Ilustração: Manet – le dejeuneur sur l’herbe)
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Cruz e Souza - Violões que choram
sábado, 18 de dezembro de 2010
MEMÓRIAS DE GUERRA, de Germano Almeida
Ocorreu-me há tempos investigar como a Segunda Guerra Mundial tinha sido vivida na ilha da Boa Vista. A ideia não parecia despropositada, tendo em conta que, assim ao correr das estórias, embora sem nunca as ter aprofundado, conhecia três ou quatro episódios que atestavam que, de alguma forma, tínhamos participado no esforço daquele sangrento conflito. Sem ir mais longe, havia por exemplo uma morna muito bonita mas muito crítica, feita por anónimos autores da ilha, que não só falava dos malefícios da guerra como inclusivamente responsabilizava quase pessoalmente os alemães pelo começo e terminava tomando posição clara sobre o assunto "Hitler ca ta ganhâ guerra!"
Mas não era só isso. Tínhamos também o nosso próprio Hitler, um indivíduo de baptismo Balísio, nascido num dia do aniversário do "Führer" e que conquistou essa alcunha devido à extrema maldade que o caracterizou desde pequenino ainda criança de peito, mordia cruelmente as mamas da mãe quando se sentia saciado, e depois de mais crescido divertia-se a regar os ratos com gasolina e jogar-lhes fogo, ou então a abrir o peito de corvos vivos para lhes ver os corações palpitando. Depois da tropa entrou para a polícia, onde ganhou o ódio de uma cidade inteira, pela facilidade com que puxava do cacete.
Conheci o "Hitler" já nós rapazotes, embora ele fosse alguns anos mais velho do que eu, magro que nem um cação, mas com uma característica apreciável: comia alarvemente, não havia alimento capaz de lhe dar abasto. Certa vez que lhe apeteceu ovos cozidos, apostou com a malta em como era capaz de comer 50 seguidos se os comesse pagaríamos nós, de contrário pagaria ele.
Comeu-os até ao último ovo. A princípio, rapidamente, depois mais devagar, mas até acabar tudo, tudo. Cometeu foi a imprudência de beber a seguir dois litros de água.
Vomitou desalmadamente durante três dias, num mafor de ovos podres que não permitia a ninguém se aproximar dele.
Ora a existência não só de uma morna a respeito como até de um Hitler ilheno devia querer dizer, se não que a guerra ali tinha chegado, pelo menos que ela fora vivida com emoção, tanto mais que, de tempos a tempos, vasos alemães fundeavam na baía de Sal-Rei, onde ficavam por muitos dias, sem no entanto permitir qualquer aproximação por parte das gentes da terra, antes rechaçando com brutalidade as tentativas no sentido de os visitar, embora eles se arrogassem o direito de desembarcar.
Por exemplo, contava-se a estória do Bento, que vendo uma manhã uma canhoneira alemã fundeada ao largo decidiu entrar em comércio com os de bordo. Assim foi ao recife mais próximo e juntou um saco de larau de lapas e, de seguida, meteu-se num bote rumo à canhoneira. Viram-no de longe e começaram a fazer-lhe vigorosos sinais para não se aproximar, mas Bento tinha nobres propósitos, qual fosse dar aos alemães a conhecer a nossa famosa lapa, fresquinha, que tanto podia ser comida crua, apenas temperada com vinagre, ou então fervida, ou então grelhada, uma maravilha! Sem já falar no delicioso arroz de lapa, que era quando ela atingia o seu supremo esplendor... De modo que insistiu, indiferente aos gritos, e conseguiu acostar-se. Vinda de cima, Bento continuava ouvindo aquela feroz algaraviada, mas com as duas mãos cheias de lapa mostrava-lhes os seus honestos propósitos, explicando com gestos preciosos como tirar a lapa da concha com a própria unha e fazendo sinal para lhe baixarem a escada de quebra-costa, para uma demonstração mais eficaz a bordo. E já desesperado por não estar a fazer-se entender com gestos tão claros, Bento resolveu imitar a algaraviada que tinha estado a ouvir dos alemães e pondo as mãos em concha na boca começou a gritar, repetindo dezenas de vezes "Alamata, comprata lapita, se não quer comprata trocata pa bolachita! Alamata, comprata lapita..."
Os alemães ripostaram no seu grasnar, Bento continuou naquilo que achava ser a língua deles, concitando-os ao negócio. Por fim, já desesperados daquela teimosia, os alemães atacaram-no com batata podre e tomate estragado e toda a casta de lixo que tiveram à mão e Bento chegou ao cais não só ofendido como também muito confundido.
Esse perverso procedimento viria, aliás, a estar na origem de uma feroz batalha de praia entre boavistenses e os alemães que de tempos a tempos iam a terra para espairecer, desentorpecer as pernas e comprar ovos e galinhas. Naquele tempo, a rapaziada da vila treinava-se muito na arte de pegar queda, que era uma espécie de luta de capoeira, e então resolveu vingar as afrontas por que Bento tinha passado. Certo dia esperaram os botes de borracha amarrados no cais e de seguida desafiaram-nos para a luta. Não houve como recusar, mas quando os alemães começaram a ver-se esparramados na areia da praia, vítimas dos ganchos por dentro de que não sabiam livrar-se, fugiram em debandada e a nado para o navio.
Foi a partir desses episódios que comecei sonhando com material suficiente para um desenvolvido livro histórico, mas acabei chegando à conclusão que a eles se resumiam as nossas memórias da guerra.
(Ilustração: Clotilde Fava – peixeiras)
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
PANGI AMI (IRMÃ), de Estevão Maya Maya
Ê Satu Maya,
canta mais uma cantiga
que eu quero aprender.
Moro em terras de brancos
e quero cantar numa língua
que eles não possam entender.
Canta uma toada antiga
ou mesmo um vissungo.
Se andas um pouco esquecido
pergunta pro meu pai
como é aquela toada bonita
que fala do sereno da madrugada...
Tu eras bom Cantadô!
Agora, sei que estás melhor ainda...
tu mesmo sempre dizias:
coco velho é que dá bom azeite.
Eu aqui na cidade
não sou Cantadô: sou cantor...
O dia em que eu chegar à casa
vamos cantar
boi, tambô e bambaí.
Eu também sou Cantadô de primeira
É o que eu vou te mostrar.
(Cantiga Pra gente de Casa, Chegada em Cima da Hora)
(Ilustração: Portinari – banda de música)
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terça-feira, 14 de dezembro de 2010
ISAURA PARA SEMPRE DENTRO DE MIM, de Mia Couto
Isaura entrou pelo bar como se entrasse pela última porta e nós fôssemos os deuses que a aguardássemos do outro lado. Fora ficava esse céu todo azulzinado, os zunzuns da gente no bazar.
A aparição da mulher fez estancar meu coração, suspenso na rédea do espanto. Escutei íntimos desacordes, sangue para um lado, veias para outro. É que eu não via a Isaurinha há mais de vinte anos, mais de metade do tempo que eu amealhava existências. De repente, me chegaram lembranças como se em meu peito desembarcassem imagens e sons, atropelando-se em desordem.
Foi no tempo colonial. Eu e a Isaurinha éramos empregados domésticos na mesma casa. Ela empregada de dentro, eu de fora. Ambos, miúdos, em idade mais de brincar. Aos fins da tarde, quando ela despegava me vinha contar as novidades, segredos da vida dos brancos. Era hora de eu passear a cãozoada. Ela me acompanhava, rodávamos pelos quarteirões enquanto ela me fazia rir, com as suas revelações. Que o patrão a empurrava nos cantos sombrios e a apertava de encontro às paredes. Não havia parede em que ele, de pé, não tivesse deitado.
Tudo aquilo lhe dava nojeira, reviragem nas vísceras. Queixar a quem? A Deus? Eu sonhava que me subiam coragens e enfrentava o patrão. Mas adormecia sem ousadia sequer de terminar o sonho.
E agora Isaura interrompia o meu tempo de existir, rompante adentro da cervejaria. Estava quase na mesma, o tempo não a redesenhara. Magra, como sempre fora. Olhos acesos como réstias de brasa. Em seus dedos um cigarro me sacudiu lembranças. Como se o centro de minha memória fosse um fumo. Sim, o fumo de cigarro que ela, vinte anos antes, trazia de dentro da casa dos patrões para as traseiras onde eu a esperava. Fazia o seguinte pegava a beata distraída num cinzeiro de salão e chupava umas boas passas. Enchia as bochechas de fumo vinha ter comigo ao pátio. Ganhava um ar apalhaçado, com dupla cara como a coruja. Chegava-se a mim e vizinhávamo-nos, cara com cara. Depois, boca com boca, os lábios meus em concha recebiam os dela. Isaura soprava para dentro de mim esse fumo. Sentia aquecer-me meus interiores, a saliva quase fervendo. Depois, não era só a boca, todo o meu corpo se ia esquentando. Era assim que fumávamos, a meio hálito, boca de um cruzamento e peito do outro.
Praticávamos o quê? Fumigação boca-a-boca? Uma coisa era de certeza meu endereço era o céu, nesses instantes. Isaura me exaltava eternidades, lábios vaporosos me roçando o coração. Tudo ali na cubata das traseiras.
Simples procedimento aquele, Isaura aparava as unhas dos cigarrinhos, beatas ainda moribundas. Não parecia que Isaura deitasse valor naquele trocar de lábios. Ela gostava mesmo era de tabaco, pouco a pouco se adentrando no vício das fumagens. Eu e a descarga suja em meus pulmões eram simples acidentes sem percurso.
Até que, certa vez, o patrão nos surpreendeu naquelas disposições. Choveram insultos, imediatas pancadas. E logo eu, desculpando Isaura, assumi as inteiras culpas. Construí a versão que eu a tinha assaltado, obrigado contra as suas vontades. Nesse mesmo dia, fui expulso, despedido. Nem me despedi de Isaurinha. Levei meus pertences, por baixo de uma lua tristonha. E nunca mais Isaura, nunca mais notícias dela.
Vinte anos depois, Isaura desarrumava a tarde, interrompendo o bar. Para mais, ela trazia entre os dedos um cigarro, fumejante.
Ela se sentou em minha mesa e, sem me olhar, desatou as falas. Tanta lembrança boa. Mas a favorita é você, Raimundano. Lhe digo esse fumo todo que lhe deitei sabe o que eu queria, só mais nada? Era um beijo.
Estremeci. Aquilo era a justa navalha, me lacerando? Mas ela seguia, no avanço de seus ditos. Sim, que ela em tempos, me amara. Nunca mostrara aquele querer dela, por motivo de decências. É que era tão magra que era má educação se exibir. Que ela escolhia para mim suas melhores belezas, como quem tem prendas mas não sabe nem a quem dar.
- Porquê, Isaura? Porque nunca me procurou?
- Porque lhe deixei de amar. Foi aquele sua mentira para me proteger. Isso me fez muito mal.
Desde o momento que eu a defendera, o sentimento tombara, sobra de sombra.
Ofensa de quê? Nunca saberei. Isaura, ali sentada, não me explicaria nada. Como se tivesse passado não o tempo, mas a vida inteira. Levantou-se, arrastou a cadeira como se arrumar os móveis fosse mais importante neste mundo. E se dirigiu para a saída, a angústia me resumindo como se, pela segunda vez, minha vida se ecoasse por aquela porta. Minha voz, nem a reconheci.
- Sopre-me outra vez um fumo, Isaura. Um fuminho, só.
Ela me olhou, os olhos tão longe que parecia nem ter focagem. Aspirou fundo o cigarro, refreou umas tosses e veio em minha renteza. Quando ela colou seus lábios em mim, se fabulou o seguinte, a mulher se converteu em fumo e se desvaneceu. Primeiro no ar e, depois, lento, na aspiração de meu peito. Nessa tarde, eu fumei Isaurinha.
(Ilustração: Di Cavalcanti - Vênus)
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Mia Couto - Isaura para sempre dentro de mim
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