terça-feira, 9 de setembro de 2025
OPERAÇÃO HOOCHIE, de Irvine Welsh
Alexander é sensacional na cama. Quando a gente transa, ele parece querer que eu também aproveite, não como se eu só estivesse ali pra ser usada por ele, como uns caras que conheço. Mas me incomoda quando ele começa a dizer que eu sou linda e que ele quer me ver mais. Ele é meu chefe, a gente se vê todo dia.
Falo isso pra ele. Não é disso que estou falando, ele responde.
Linda. Papai vivia dizendo: na primeira vez que vi sua mãe no Alhambra, não o pub, mas o salão de baile, ele sempre explicava, eu nunca tinha visto uma coisa tão linda.
Sei que não sou feia e que consigo me produzir muito bem, mas quando um cara diz que você é linda, o que ele quer dizer com isso? É uma coisa que incomoda, pra dizer o mínimo.
Quero explicar pra ele que é tudo uma distração passageira, nada mais. O problema é que ele é meu chefe. Juro por Deus, eu capricho em dificultar as coisas pra mim. Ele passou um fim de semana na minha casa. Não foi uma boa ideia. Deixou uma sacola no banheiro, com o material de barbear; navalha, espuma e pincel. Fico pensando em levar de volta pra ele, mas por algum motivo eu não consigo. Talvez porque seria meio cafona levar aquilo pro escritório. Mas, enfim, não é por causa dele! É, ele é apenas uma distração.
Enfim, depois da sessão desta noite eu vou pro Hoochie pra me encontrar com o Hamish. Ele é louco por poesia e gosta das minhas coisas. Sei que parece pretensioso, mas a gente se encontra, toma café, se chapa um pouco e fica lendo o que o outro escreveu. Hamish e eu nunca fodemos; não sei se ele é bicha, se é tímido com as garotas ou se só me vê como amiga, porque ele é um cara estranho, difícil de entender, mas gosto dele. “Odeio quando amigos brigam, e odeio quando amigos fodem”, disse ele uma vez, mas meio que parecia um discurso ensaiado. Antes eu perguntava se ele era gay, mas ele afirmava que não tinha interesse nenhum em sexo com outros homens. Hamish não é muito meu tipo, mas eu provavelmente daria pra ele; tem um certo carisma, e isso é um negócio importante. Uns anos atrás a gente viajou pra Reading pro festival e depois passamos uns dias em Paris. Foi esquisito dormir com um cara na mesma cama e não transar, mesmo que uma vez eu tenha acordado com a mão dele no meu peito.
Isso me faz pensar na minha mãe, sentada em casa, sem peitos, ambos removidos pelo bisturi do cirurgião. Andrógina e esquelética; juro por Deus que ela parece o Bowie na capa de David Live. Eu devia estar passando algum tempo com ela, mas não consigo nem olhar. Agora sei que faço qualquer coisa: caralho, drogas, poemas, filmes ou apenas trabalho, só pra não ter que pensar nela. Em Paris em Paris em Paris...
... Conheci um francês numa discoteca e fiquei com muito tesão, o que pareceu deixar o Hamish irritado, mas não o suficiente pra ele tentar me comer. Ele é um carinha magricelinha (como Simon descreveu uma vez), com olhos pequenos e femininos que se enchem de lágrimas quando ele lê seus poemas, e ele fica inteiro meio rosado como se estivesse tendo um orgasmo. É o tipo de cara que faria bastante sucesso na prisão, pra dizer o mínimo.
Fiquei puta da cara quando Mark Renton e Keith Yule entraram na banda do Hamish, porque eles começaram a frequentar o Hoochie e eu meio que encarava aquele lugar como minha área, não queria um bando de toscos do Leith zanzando por lá e baixando o nível. (Exceto o Simon, claro!) O pessoal do Leith despreza todas as outras partes de Edimburgo; acham que se você não nasceu no Leith não vale nada. Posso ter sido criada no Leith, mas na verdade nasci em Marchmont, o que me faz totalmente edimburguesa. Outra coisa é que eu meio que saí por um tempo com o Billy, irmão do Mark, mas eu ainda estava na escola. Mas juro por Deus que nunca deixei ele me comer, ainda que todo mundo pense que eu tenha deixado, ou imagine que tenha acontecido. Mas os caras e, suponho, as minas do Leith são assim mesmo.
Enfim, chego no Hoochie, aquele espaço apertado em cima do Clouds onde você sempre ouve os melhores sons e encontra gente interessante, e os primeiros rostos que enxergo são Mark (buu!), com aquele jeito meio malandro, e Simon (nham!) com o cabelo preso, conversando no balcão com aquela vagabunda da
Esther, uma vaca arrogante que pensa cagar rosas.
Por favor não esteja comendo ela, por favor não esteja comendo ela...
Juro por Deus que nunca fico com muito ciúme das minas que o Simon fode, porque a gente vive nossas vidas sem fazer cobranças, mesmo que desde o Leith eu fosse a fim dele. Bem, talvez às vezes eu fique, porque tem umas vadias que não dá pra aguentar e essa Esther faz parte da categoria. Vejo que o Hamish está com o Mark, conversando com duas minas que só conheço de vista. Acho que uma delas é aquela que chupou o Colin Dugan, mas posso estar enganada. Mas tanto faz, essas vacas não têm a menor chance de durar muito tempo naquela companhia!
Quando chego mais perto deles, escuto Hamish mentindo deslavadamente. – Wendy, Lynsey, este é meu grande amigo Mark. Um baixista muito talentoso.
Muito talentoso o caralho: Hamish expulsou Mark de duas bandas por causa da incompetência dele com o instrumento!
Mark, todo afetado e presunçoso, pergunta: – Como anda sua música, H?
– Parei, Mark. – Hamish sacode a cabeça, todo pomposo, enquanto uma das minas, a loira de cabelo curto com olhos muito bem maquiados, parece arrasada com a triste notícia. – Agora só escrevo poemas. Música é uma forma grosseira, vulgar e comercial de arte. Espiritualmente falida.
A loira (Lyndsey, se não me engano) pisca os olhos incrédula, enquanto
Wendy, a possível especialista em boquete, permanece neutra. Hamish me enxerga ao seu lado e me dá um beijo no rosto. – Oi... Alison. Tudo bem?
– Tudo certo. – Sorrio.
Mark está jogando conversa em cima das minas, as merdas de sempre. – Eu e uns amigos de Londres estamos com um projeto de art rock industrial – mente e me dá uma piscadinha. – É meio que uma mistura de Einstürzende Neubauten com o início da carreira dos Meteors, mais “In Heaven” que “Wreckin Crew”, mas com uma batida disco quatro por quatro e muita influência de ska, com uma vocalista bem Marianne Faithfull. Pensem num Kraftwerk que transou muito na adolescência e frequentou pubs de cerveja artesanal na Escócia e em Newcastle ouvindo Labi Siffre e Ken Boothe na jukebox, sonhando com um emprego bem pago na fábrica da Volkswagen em Hanôver.
– Parece legal! – diz a loira que talvez se chame Lynsey. – Qual é o nome da banda?
– Fortification.
É a deixa pra um Hamish meio desajeitado fazer o assunto voltar aos seus poemas “influenciados por Baudelaire, Rimbaud e Verlaine”, e pra uma das minas falar alguma coisa sobre Marquee Moon. E pra eu dar uma cotovelada de leve no Mark pra chamar a atenção dele. – Que safado, baixando o nível!
Mark me olha de cima a baixo. Mesmo visivelmente chapado, me encara de um jeito que eu nunca tinha visto antes. – Uau, Ali. Cê tá bonita demais.
Não é o tipo de elogio que espero dele, mas é o suficiente pro Hamish virar a cabeça na nossa direção. – E você está... Mark demais.
Ele ri disso e faz um gesto pra eu me afastar um pouco com ele, enquanto Hamish tagarela pras minas sobre uma vez em que ele e Mark tocaram no Triangle Club, em Pilton. – E aí?
– Tudo bem. E você?
– Joia. Mas os seguranças não deixaram o Spud entrar porque ele tá com uma tipoia no braço.
– Coitado do Danny!
– É, teve que voltar pra casa. Mas vi a Kelly aqui mais cedo. Com Des.
– Certo.
Ele baixa o tom da voz e chega mais perto de mim. Mark é um cara mais alto do que parece à primeira vista. – Tá rolando alguma coisa?
– Você está querendo dizer o que eu imagino que esteja?
– Sim, acho que tô.
– Não, liguei mais cedo pro Johnny, mas ele não estava em casa ou não atendeu.
– É, eu também – diz ele. Depois de um silêncio, pergunta: – E como anda a sua mãe?
– Uma situação de merda, pra dizer o mínimo – respondo, sem vontade nenhuma de tocar no assunto, mas acho legal ele ter perguntado.
– Certo... que pena. Hã. Se cê ouvir alguma coisa do Johnny, do Matty ou algo assim, me dá um toque – pede.
– Valeu, claro, aviso – digo.
Hamish abandona Wendy e Lynsey e me entrega um livrinho de poemas. – Mudou minha vida – declara, enfático, enquanto Mark revira os olhos.
– Certo... valeu... – digo, mas minha atenção está toda no Simon, que continua conversando com aquela Esther horrorosa no balcão. Lynsey pergunta a Hamish sobre o livro, e ele começa a falar sobre a obra de Charles Simic. – Dá pra acreditar que uma época ele não falava nem uma palavra de inglês?
Eu me viro pro Mark. – Uma época nenhum de nós falava nem uma palavra de inglês. – E ele devolve o sorriso enquanto indico Esther com a cabeça. – Você acha ela bonita? Aquela loira platinada com quem o Simon está conversando?
Mark dá uma olhada, quase babando.
– Marianne? Sim, ela é torta de gostosa.
– Não é Marianne, é Esther.
– Ah, é? Elas são iguais.
– Pode acreditar: totalmente intercambiáveis. Vamos dar oi – sugiro, enfiando o livrinho dos poemas do Hamish na bolsa. Assim que os olhos do Simon encontram os meus, ele vem ao meu encontro e nos abraçamos e ele enterra a cabeça no meu pescoço. – Oi, linda – sussurra ele. – Não diz nada, deixa só eu te abraçar.
Eu deixo, mas não consigo resistir a dar um sorriso por sobre o ombro dele pra Esther, pra quem sobrou o feioso do Mark! Rá! Juro por Deus que ela parece arrasada com nosso beijo, e escuto Mark tagarelando sem parar, primeiro sobre o disco New Gold Dream do Simple Minds, depois sobre o projeto fictício de rock industrial, adicionando novos elementos de improviso. Enquanto a língua e o cheiro do Simon preenchem minha cabeça, escuto a voz abatida de Esther comentar que deve ser difícil encaixar tantos elementos diferentes. Simon e eu paramos pra tomar fôlego e assistir o show. Mark está concordando com ela: – É justamente o principal desafio que estamos encarando, mas é também o que torna a tarefa tão intrinsecamente gratificante...
Quando ela pergunta o nome da banda, ele responde, mas com a mandíbula travada pela anfetamina as palavras saem meio erradas da boca do Mark e o nome sai parecido com “Fornication”. Esther acha que ele está passando dos limites e olha pra gente pedindo socorro! Mark dá de ombros e a deixa sozinha assim que uma mina oriental bonitinha, mas com um sotaque de quem cresceu nos blocos, aparece declarando: – Tô fritando de tanta anfetamina!
– Eu também – responde Mark, entusiasmado, e Esther se dá conta que até ele a esnobou!
Ela chega mais perto pra dizer alguma coisa pro Simon, mas ele dá um corte:
– Aguarde o próximo capítulo. – E me puxa pelo pulso até um cantinho pra termos uma conversa íntima! Dou uma olhada na Esther: engole essa, sua vagabunda rica de merda! O melhor do Leith tem que permanecer no Leith!
Como a música está bem mais alta do que o normal no Hooch e a caixa de som fica perto de onde estamos sentados, Simon e eu meio que precisamos gritar no ouvido um do outro. Enquanto puxo o cinto pra garantir que não estou pagando cofrinho, comento sobre o Spud ter sido barrado só porque estava com o braço numa tipoia.
– Nessa eu tô do lado da portaria – diz ele. – Uma falta grave de estilo. Também não deve ter colaborado ele se vestir que nem um mendigo.
Então a gente começa a conversar sobre a pequena Maria Anderson, porque meu irmão e os amigos dele andam com ela e seus colegas de escola. Andam dizendo por aí que o Simon está namorando com ela. Não dá pra acreditar, porque ela é bem novinha, e por que ele faria isso quando tem tantas namoradas?
Ele me encara com um olhar triste, dizendo que se meteu num pesadelo. – Que confusão – reclama ele enquanto Prince manda todo mundo enlouquecer. – Sou vizinho da Maria, e depois que o pai dela morreu e a mãe foi pra cadeia eu meio que me senti responsável porque ela não quer de jeito nenhum ir pra casa do tio em Nottingham. – Ele respira fundo e olha pro teto. – O problema é que ela se apegou demais a mim e, pior, à heroína. Tô tentando manter ela longe da droga, mas ela só pensa nisso.
– Mas o que isso tem a ver com você? Não é justo ter que carregar esse peso!
– A culpa é minha. Cometi a burrice de... ah, que merda – resmunga ele –, a gente acabou na cama... eu dormi com ela. Tava tentando consolar a menina, e ela tava toda carente e desesperada, e uma coisa levou à outra. Foi um grande erro.
– Puta merda, Simon – digo pra ele, tentando incomodar sem parecer ciumenta, porque estou sentindo um pouco de ciúme. Mas não dá mesmo pra culpar a menina por estar fora de controle depois de tudo que aconteceu com ela.
– Ela é jovem e perturbada demais, e agora vejo que fui idiota e fraco e tirei vantagem de alguém que estava numa situação ruim. Agora ela acha que a gente tá namorando. Semana que vem vou com ela na prisão visitar a mãe, e espero que a gente consiga convencer ela a ir pra casa do tio e entrar na linha. Essa confusão... tomou conta da minha vida! Eu só queria fazer a coisa certa, mas tudo acabou saindo pela culatra. – Ele respira fundo, olhando pra pista de dança sem focar a visão. – O negócio é que mesmo agora fico louco de preocupação ao pensar nela sozinha no apartamento; cê não tem como saber o que uma mina tão nova pode fazer naquele estado. Ela já foi pra cima do cara que matou o pai dela, aquele Dickson do Grapes. Meu medo é que ela acabe que nem a mãe ou o pai: na cadeia ou comendo grama pela raiz. Ela tá andando com uns caras que não valem nada; tô tentando manter ela longe deles, mas não tenho como passar todos os minutos do dia ao lado dela, é doente... é errado... – ele sacode a cabeça – e não posso ficar dormindo com ela e levando heroína, mas só isso deixa ela calma... ela tinha que estar fazendo exames pra ir pro ensino médio. – Ele suspira, angustiado, e me olha nos olhos. – Nossa, eu aqui falando sem parar das minhas coisas enquanto a sua mãe... – Ele agarra minha mão e aperta.
Sinto as lágrimas escorrendo dos meus olhos. – Desculpa, Simon, eu... – E não consigo mais falar, enquanto a música e as pessoas rodopiam ao nosso redor. Até que me escuto pensar em voz alta: – Por que a vida é essa confusão fodida?
– Não pergunta pra mim – responde ele, apertando mais a minha mão e com os próprios olhos ficando úmidos. Então olha ao redor com uma expressão de desgosto quando “You’re the Best Thing” do Style Council começa a tocar.
– Você não gosta dessa música?
– Gosto até demais. É boa demais pros posers e otários deste lugar horrendo. – Ele cospe no chão. – Odeio que essa gente tenha permissão pra ouvir esse tipo de música.
– Entendo o que você quer dizer – concordo, perplexa; olhando pra Esther, meio que faz sentido. Ela está fugindo da conversa animada entre Mark e a oriental baixinha, que pelo que lembro se chama Nadia.
– Olha, tenho uma sugestão. Por que a gente não vai pro Swanney, pega uma coisinha e daí volta pra minha ou pra sua casa pra fazer um pouco do que a gente gosta e conversar? Tem muita coisa ruim acontecendo nas nossas vidas e esse pessoal daqui tá começando a me encher o saco. Mark tá começando a exagerar demais na heroína e na anfetamina; não sou nenhum anjo, mas porra, ele tá ficando míope...
Ficamos olhando Mark falando sem parar com a maluquinha da Nadia, os dois totalmente transtornados de anfetamina.
– Taí um casamento feito de pó. – Simon ri, e continua: – Prefiro comprar antes que ele apareça no Johnny, porque daí a gente nunca vai se livrar do filho da puta.
Nem precisa me convencer. A noite de café e poesia com Hamish vai ter de esperar. E Alexander deixou uma mensagem dizendo que queria me ver, mas agora isso está fora de cogitação pra agenda desta noite. – Claro. Vamos.
Saímos pra noite gelada. Alguma coisa impossível de nomear se remexe por trás dos meus olhos. O toque da mão do Simon é morno e seu hálito quente é como o sussurro de anjos no meu ouvido.
(Skagboys; tradução de Daniel Galera e Daniel Pelizzari)
(Ilustração : George Rossidis - british pub)
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário