terça-feira, 30 de setembro de 2025

APOLOGY OF GENIUS / APOLOGIA DO GÊNIO, de Mina Loy

 



Ostracized as we are with God

the watchers of the civilized wastes

reverse their signals on our track



Lepers of the moon

all magically diseased

we come among you

innocent

of our luminous sores



unknowing

how perturbing lights

our spirit

on the passion of Man

until you turn on us your smooth fools’ faces

like buttocks bared in aboriginal mockeries



We are the sacerdotal clowns

who feed upon the wind and stars

and pulverous pastures of poverty



Our wills are formed

by curious disciplines

beyond your laws



You may give birth to us

or marry us

the chances of your flesh

are not our destiny –



The cuirass of the soul

still shines –

And we are unaware

if you confuse

such brief

corrosion with possession



In the raw caverns of the Increate

we forge the dusk of Chaos

to that imperious jewellery of the Universe

– the Beautiful –



While to your eyes

a delicate crop

of criminal mystic immortelles

stands to the censor’s scythe.



Tradução de Felipe Paradizzo:



Neste nosso ostracismo de Deus

os vigilantes do lixo civilizado

revertem seus sinais em nosso rastro



Leprosos da lua

todos magicamente adoecidos

estamos entre vocês

inocentes

de nosso luminoso sofrer



desconhecendo

quão perturbadoras luzes

nosso espírito

na paixão do Homem

até que vocês nos mostrem suas plácidas tolas faces

como bundas desnudas em zombarias aborígenes



Somos os palhaços sacerdotais

que se alimentam de vento e estrelas

e pulverizados pastos de pobreza



Nossas vontades se formam

por disciplinas curiosas

para além das suas leis



Vocês podem nos parir

ou nos casar

a sorte de sua carne

não é nosso destino –



A couraça da alma

ainda brilha –

E desconhecemos

se vocês confundem

esta breve

corrosão com possessão



Nas brutas cavernas do Incriado

forjamos o crepúsculo do Caos

para essa joia imperiosa do Universo

– o Belo –



Enquanto aos seus olhos

uma colheita delicada

de místicas perpétuas criminosas

encara a foice do censor.




(Ilustração: Cartoon de 1906 retratando 'um cartunista e seus captores', da revista satírica alemã Simplicissimus)

sábado, 27 de setembro de 2025

UM BRASIL VISTO DE LONGE: ALFRED DÖBLIN, de George Bernard Sperber


Um dos casos em que um autor escreveu em alemão uma obra com tema sul-americano, sem nunca ter pisado neste subcontinente, é o do romance de Alfred Döblin que, em suas mais recentes edições, foi publicado com o título Amazonas. O autor publicou em 1929 a sua obra mais famosa, Berlin Alexanderplatz. Em 28 de fevereiro de 1933, um dia após o incêndio do Reichstag, teve razões mais do que suficientes para sair da Alemanha, indo parar em Paris. Na França, privado do exercício de sua profissão de médico, Döblin leu e escreveu muito. Num dos seus dias de leitura, na Biblioteca Nacional em Paris, pegou um Atlas sobre a bacia do rio Amazonas. Fascinado pela massa aquática do grande rio, procurou uma série de livros relacionados mais ou menos estreitamente com ele, “esse ente maravilhoso, rio-oceano, uma coisa dos tempos primitivos. Suas margens, os animais e os homens pertenciam a ele”.

A partir dessas leituras escreveu, entre 1935 e 1937, uma obra que seria publicada inicialmente em dois volumes: Die Fahrt ins Land ohne Tod (A Viagem à Terra sem Morte), 1937, e Der blaue Tiger (O Tigre Azul), 1938. Na segunda edição, de 1947, a obra assume a forma de uma trilogia, separando-se do segundo volume da primeira edição um novo volume, com o título Der neue Urwald (A Nova Selva). A partir da edição de 1963, foi adotado para esta trilogia o título Amazonas.

Das Land ohne Tod (A Terra sem Morte), título atual do primeiro volume da trilogia, começa com a narrativa da revolta das mulheres de uma nação indígena na região do Rio Uaupés, um afluente do Rio Negro, as quais decidem matar os seus maridos, prescindir dos homens em geral e viver, dali em diante, como um povo constituído só por mulheres: as amazonas. Döblin encontrou esta lenda numa coletânea publicada em 1927 pelo etnólogo alemão Theodor Koch- Grünberg. Döblin privilegia a visão clássica rousseauniana do “bom selvagem”, ou melhor: o índio de que Döblin precisa é aquele que confirma o louvor do primitivo, explicitado em seu ensaio Prometheus und das Primitive (Prometeu e o Primitivo), de 1938.

As amazonas iniciam, no romance de Döblin, uma viagem durante a qual encontram mensageiros incas que narram a conquista do seu reino pelos espanhóis, entrando em detalhes quanto à sua crueldade e ganância, totalmente incompreensíveis para as mentes indígenas. O líder dos mensageiros e seus companheiros querem advertir os povos da bacia do grande rio do perigo que os brancos representam, mas acabam tendo o mesmo destino dos outros homens que as amazonas encontram durante a sua viagem: a morte.

O segundo livro do primeiro volume, Das Reich Cundinamarca (O Reino de Cundinamarca), transfere a ação para o planalto colombiano, onde os chibchas erigiram a sua cultura. Três colunas de conquistadores chegam, à procura do lendário Eldorado, e reduzem essa civilização a ruínas. É significativo o fato de Döblin ter escolhido justamente este episódio da conquista da América do Sul, entre tantos outros que estavam à sua disposição nas fontes que podia consultar na Biblioteca Nacional em Paris, porque duas das três colunas que chegam a Cundinamarca eram chefiadas por alemães: Ambrosius Alfinger e Nikolaus Federmann.

O segundo volume da trilogia, aquele em que surge uma imagem do Brasil, coligida por Döblin exclusivamente a partir de suas leituras, é dividido em cinco livros, o primeiro dos quais tem o título São Paulo. O autor narra a chegada dos jesuítas ao planalto de Piratininga e descreve os seus habitantes brancos como sendo eventualmente menos sanguinários que os seus semelhantes do primeiro volume, mas certamente não menos gananciosos. A mercadoria com que comerciam preferencialmente é constituída de seres humanos: são índios escravizados. Os jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega, deixam São Paulo, fundada por eles, por não terem conseguido mudar a atitude dos seus habitantes leigos. Adentram pelas matas, que são novamente descritas com parcimônia, mas sem deixar de ressaltar sua beleza primitiva, pura, mas também ominosa.

O terceiro livro, Das indianische Kanaan (O Canaã Indígena), dá continuidade ao anterior ao narrar a criação das primeiras reduções jesuíticas na região do Rio Guairá, no sul do Brasil, seu florescimento, assim como as reações negativas, tanto em São Paulo e Assunção como em Madri. O único projeto europeu de integração cultural e humana na América do Sul está ameaçado. A única tentativa historicamente documentada de estabelecer uma comunidade baseada em ideias e crenças vindas da Europa em meio ao paraíso americano, que desta forma poderia deixar de ser, também ele, um paraíso perdido, está fadada ao fracasso.

O quarto livro do segundo volume, Die Arche Noah (A Arca de Noé), começa com a narração de um estranho episódio que teria ocorrido na história de São Paulo – aliás, ficção feita a respeito de São Paulo –, desconhecido de muitos historiadores: o caso de Nicolau Riubuni, “rei de São Paulo”. Trata-se de um texto apócrifo, publicado aparentemente em 1756, intitulado Histoire de Nicolas 1er, Roi du Paraguai et Empereur des Mamelus. É sabido que em 1756 não havia imprensa em São Paulo. A finalidade dessa publicação, cuja iniciativa pode ser atribuída a Pombal, era denegrir os jesuítas. Döblin inverte a intenção do texto e utiliza Riubuni para denegrir os paulistas.

O quinto livro do segundo volume, Die Zeitenwende (A Encruzilhada dos Tempos), começa com o auge da República Cristã – é assim que o autor a denomina – e termina com a sua destruição. O projeto de convivência humana e transcendental entre europeus e indígenas fracassa. O contato entre as duas civilizações termina de forma trágica, independentemente não apenas da nacionalidade dos que se defrontam, mas também das suas intenções. A América, vista de início como um paraíso, não pacífico e tranquilo, mas primitivo e violento, não tem forças para se opor ao ímpeto da decadência moral, da ambição, que se apresenta como mola propulsora do expansionismo europeu.

O terceiro volume da trilogia Amazonas, Der neue Urwald (A Nova Selva), começa no interior de uma belíssima igreja localizada em Cracóvia. Döblin retoma um personagem que descobrira numa viagem àquela cidade, em 1925, um cavaleiro de nome Twardovsky, espécie de Fausto polonês, que invoca do além os espíritos de Copérnico, Galileu e Giordano Bruno e os confronta com o mundo das décadas de vinte e trinta do século XX e com a barbárie que, segundo ele, é fruto da evolução das ideias preconizadas pelos três grandes pensadores. Dessa forma, Twardovsky apresenta também o ímpeto dos conquistadores da América como fruto das ideias dos três, como resultado do triunfo do pensamento prometeico sobre o primitivo.

Após uma série de peripécias, um dos personagens deste volume é condenado, na França, ao desterro em Caiena, na Guiana Francesa. Junto com outros condenados, ele organiza uma fuga, que os leva para as profundezas da selva amazônica. E ali se fecha o grande arco, tendido pelo autor desde o final do primeiro volume. No interior da selva os fugitivos encontram um grupo de indígenas que iniciara, quatro séculos antes, no primeiro volume da trilogia, uma peregrinação em busca da Terra sem Morte, que estaria além do oceano, onde reinaria a felicidade eterna e jorrariam mananciais de leite e de mel... Mas esta peregrinação, que ocorreu na realidade, terminaria em pleno século XX com um suicídio coletivo, nas praias do sul do Brasil.

Esse suicídio coletivo é retomado por Döblin, que encerra o seu romance com esta cena terrível, na qual faz a deidade Sukuruja assumir o papel de líder:

“Sukuruja brandia o tacape. Exultava à beira da mata. Vieram veados, antas e garças. Seguiam-na, caminhavam com ela. Procuravam dançar, como haviam dançado os homens quando clamavam pelo Grande Pai. Aparece a terra onde não se morre e onde não há nenhum mal. As enxadas rasgam o solo sozinhas. As frutas entram por si nas casas. Os espíritos aproximavam-se farfalhando, sussurravam em bandos ao seu redor. À margem da corrente Sukuruja chacoalhava como cobra. Afundou nas águas. Milhares a seguiram no vórtice”.

Essas são as linhas finais da trilogia. Não há salvação para ninguém. Não há salvação para os índios: perseguidos durante séculos pelos europeus, só encontram a terra sagrada dos seus mitos através da morte. Não há salvação para os europeus: a sua crença na força irrefreável do progresso material os arrasta para um fim inglório, mesmo que procurem se refugiar no mundo mítico dos indígenas.



(Ilustração: Carybé - As amazonas)

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

ПОСЛАННЯ /EPÍSTOLA, de Тара́с Григо́рович Шевче́нко / Taras Hryhorovych Shevchenko

 



Своїм землякам живим, мертвим і ненародженим

у дружній Україні та за її межами

І смеркає, і світає,

День божий минає,

І знову люд потомлений,

І все спочиває

Тілько я, мов окаянний,

І день і ніч плачу

На розпуттях велелюдних,

І ніхто не бачить,

І не бачить, і не знає —

Оглухли, не чують;

Кайданами міняються,

Правдою торгують

І Господа зневажають,

Людей запрягають

В тяжкі ярма. Орють лихо,

Лихом засівають,

А що вродить? побачите,

Які будуть жни́ва!

Схаменіться, недолюди,

Діти юродиві!

Подивіться на рай тихий,

На свою країну,

Полюбіте щирим серцем

Велику руїну,

Розкуйтеся, братайтеся,

У чужому краю

Не шукайте, не питайте,

Того, що немає

І на небі, а не тілько

На чужому полі.

В своїй хаті своя й правда,

І сила, і воля.

Нема на світі України,

Немає другого Дніпра,

А ви претеся на чужину.

Шукати доброго добра,

Добра святого. Волі! волі!

Братерства братнього! Найшли,

Несли, несли з чужого поля

І в Україну принесли

Великих слов велику силу,

Та й більш нічого. Кричите,

Що Бог создав вас не на те,

Щоб ви неправді поклонились!

І хилитесь, як і хилились!

І знову шкуру дерете

З братів незрящих, гречкосіїв,

І сонця-правди дозрівать

В німецькі землі, у чужії,

Претеся знову!... Якби взять

І всю мізерію з собою,

Дідами крадене добро,

Тойді оставсь би сиротою

З святими горами Дніпро!

Ох, якби те сталось, щоб ви не вертались,

Щоб там і здихали, де ви поросли!

Не плакали б діти, мати б не ридала,

Не чули б у Бога вашої хули

І сонце не гріло б смердячого гною

На чистій, широкій, на вольній землі

І люди б не знали, що ви за орли,

І не покивали б на вас головою

Схаменіться! будьте люди,

Бо лихо вам буде

Розкуються незабаром

Заковані люде,

Настане суд, заговорять

І Дніпро, і гори!

І потече сторіками

Кров у синє море

Дітей ваших... і не буде

Кому помагати

Одцурається брат брата

І дитини мати

І дим хмарою заступить

Сонце перед вами,

І навіки прокленетесь

Своїми синами!

Умийтеся! образ Божий

Багном не скверніте

Не дуріте дітей ваших,

Що вони на світі

На те тілько, щоб панувать...

Бо невчене око

Загляне їм в саму душу

Глибоко! глибоко!

Дознаються небожата,

Чия на вас шкура,

Та й засядуть, і премудрих

Немудрі одурять!

Якби ви вчились так, як треба,

То й мудрость би була своя

А то залізете на небо:

«І ми не ми, і я не я,

І все те бачив, і все знаю,

Нема ні пекла, ані Раю

Немає й Бога, тілько я!

Та куций німець узловатий,

А більш нікого!...» — «Добре, брате,

Що ж ти такеє?»

«Нехай скаже

Німець. Ми не знаєм»

Отак-то ви навчаєтесь

У чужому краю!

Німець скаже: «Ви моголи».

«Моголи! моголи!»

Золотого Тамерлана

Онучата голі

Німець скаже: «Ви слав’яне»

«Слав’яне! слав’яне!»

Славних прадідів великих

Правнуки погані!

І Коллара читаєте.

З усієї сили,

І Шафарика, і Ганка,

І в слав’янофіли

Так і претесь... І всі мови

Слав’янського люду —

Всі знаєте. А своєї

Дас[т]ьбі... Колись будем

І по-своєму глаголать,

Як німець покаже

Та до того й історію

Нашу нам розкаже, —

Отойді ми заходимось!

Добре заходились

По німецькому показу

І заговорили

Так, що й німець не второпа,

Учитель великий,

А не те, щоб прості люде

А ґвалту! а крику!

«І гармонія, і сила,

Музика та й годі!

А історія!... поема

Вольного народа!

Що ті римляне убогі!

Чортзна-що — не Брути!

У нас Брути! і Коклеси!

Славні, незабуті!

У нас воля виростала,

Дніпром умивалась,

У голови гори слала,

Степом укривалась!»

Кров’ю вона умивалась,

А спала на купах,

На козацьких вольних трупах,

Окрадених трупах!

Подивіться лишень добре,

Прочитайте знову

Тую славу. Та читайте

Од слова до слова,

Не минайте ані титли,

Ніже тії коми,

Все розберіть... та й спитайте

Тойді себе: що ми?...

Чиї сини? яких батьків?

Ким? за що закуті?...

То й побачите, що ось що

Ваші славні Брути:

Раби, подножки, грязь Москви,

Варшавське сміття — ваші пани

Ясновельможнії гетьмани.

Чого ж ви чванитеся, ви!

Сини сердешної Украйни!

Що добре ходите в ярмі,

Ще лучше, як батьки ходили.

Не чваньтесь, з вас деруть ремінь,

А з їх, бувало, й лій топили.

Може, чванитесь, що братство

Віру заступило.

Що Синопом, Трапезондом

Галушки варило.

Правда!.. правда, наїдались.

А вам тепер вадить.

І на Січі мудрий німець

Картопельку садить,

А ви її купуєте,

Їсте на здоров’я

Та славите Запорожжя.

А чиєю кров’ю

Ота земля напоєна,

Що картопля родить, —

Вам байдуже. Аби добра

Була для городу!

А чванитесь, що ми Польщу

Колись завалили!...

Правда ваша: Польща впала,

Та й вас роздавила!

Так от як кров свою лили

Батьки за Москву і Варшаву,

І вам, синам, передали

Свої кайдани, свою славу!

Доборолась Україна

До самого краю.

Гірше ляха свої діти

Її розпинають.

Заміс[т]ь пива праведную

Кров із ребер точать.

Просвітити, кажуть, хочуть

Материні очі

Современними огнями.

Повести за віком,

За німцями, недоріку,

Сліпую каліку.

Добре, ведіть, показуйте,

Нехай стара мати

Навчається, як дітей тих

Нових доглядати.

Показуйте!... за науку,

Не турбуйтесь, буде

Материна добра плата.

Розпадеться луда

На очах ваших неситих,

Побачите славу,

Живу славу дідів своїх

І батьків лукавих.

Не дуріте самі себе,

Учітесь, читайте,

І чужому научайтесь,

Й свого не цурайтесь.

Бо хто матір забуває,

Того Бог карає,

Того діти цураються,

В хату не пускають.

Чужі люди проганяють,

І немає злому

На всій землі безконечній

Веселого дому.

Я ридаю, як згадаю

Діла незабуті

Дідів наших. Тяжкі діла!

Якби їх забути,

Я оддав би веселого

Віку половину.

Отака-то наша слава,

Слава України.

Отак і ви прочитай[те],

Щоб не сонним снились

Всі неправди, щоб розкрились

Високі могили

Перед вашими очима,

Щоб ви розпитали

Мучеників, кого, коли,

За що розпинали!

Обніміте ж, брати мої,

Найменшого брата —

Нехай мати усміхнеться,

Заплакана мати.

Благословить дітей своїх

Твердими руками

І діточок поцілує

Вольними устами.

Забудеться срамотня

Давняя година,

І оживе добра слава,

Слава України,

І світ ясний, невечерній

Тихо засіяє...

Обніміться ж, брати мої.

Молю вас, благаю!




Tradução de Oksana Kowaltschuk:




Aos meus conterrâneos vivos e mortos

e não nascidos 

existentes na minha amistosa Ucrânia e fora dela.

[1] Anoitece e amanhece,

Dia santo finda,

Novamente o povo cansado

E tudo repousa

[5] Somente eu, como maldito,

Dia e noite choro

Nos cruzamentos populosos,

E ninguém não vê,

E não vê, e não sabe —

[10] Emouqueceram, não ouvem;

Permutam grilhões,

Mercantilizam a verdade.

E a Deus desprezam,

Pessoas atrelam [1]

[15] A jugos pesados. Lavram o mal,

E o mal semeiam,

E o que nascerá? Vereis,

Qual será a colheita!

Reconsiderai, tiranos,

[20] Crianças alienadas! [2]

Olhai no paraíso silencioso,

No seu país,

Afeiçoai-vos com coração sincero

Ao grande escombro, [3]

[25] Libertai-vos, irmanai-vos, [4]

Em país estranho

Não procurai, não perguntai,

O que não existe

Nem no céu, não somente

[30] No campo alheio.

Em sua casa, sua verdade

E força, e vontade.

Não há no mundo outra Ucrânia, [5]

Não há um outro Dnipró,

E vós correis ao estrangeiro.

[36] Procurar um bem melhor

Um bem santo. Liberdade! Liberdade!

Irmandade fraterna! Encontrastes, [6]

Carregastes, carregastes do campo alheio

[40] E a Ucrânia trouxestes

Grandes palavras, grande vigor,

E nada mais. Agora gritais,

Que Deus criou-vos não para,

A inverdade vós curvastes!

[45] E curvais, como curvastes!

E novamente a pele arrancais

Dos irmãos iletrados, lavradores,

E o sol - verdade amadurecer

Em terras alemãs, estranhas,

[50] Correis novamente!...Se pegardes

Toda miséria consigo, [7]

O bem roubado pelos avós,

Então ficaria órfão

Com montanhas santas Dnipró!

[55] Ah, se acontecesse, que vós não voltásseis,

Que lá expirásseis, onde vós crescestes! [8]

Não chorariam filhos, mãe não choraria,

Vossa blasfêmia a Deus não chegaria [9]

E o sol não aqueceria fétido esterco

[60] No limpo e largo, no livre torrão

E pessoas não saberiam, que águias sois,

E não vos desaprovariam meneando a cabeça

Reconsiderai! sede pessoas,

Porque o mal vos atingirá.

[65] Brevemente livrar-se-ão

Acorrentadas pessoas,

Ocorrerá julgamento, falarão

Dnipró, e montanhas! [10]

E fluirá em cem rios

[70] Sangue ao mar azul

De vossos filhos...e não haverá

Ninguém ajudando

Irmão rejeitará irmão

E a mãe ao filho,

[75] A nuvem de fumaça impedirá

O sol diante de vós,

Para sempre sereis amaldiçoados [11]

Pelos filhos seus! [12]

Lavai! de Deus a imagem

[80] Não desfigureis com lama [13]

Não enganeis filhos vossos,

Que eles vieram ao mundo

Para dominar, apenas

Porque o olho iletrado

[85] Perscrutará sua alma

Profundo! profundo!

E saberão pobrezinhos,

De quem vestis a pele, [14]

E julgarão, e aos mui sabidos

[90] Os tolos enganarão! [15]

Se vós estudásseis como precisa,

A sabedoria seria vossa.

Mas rastejando ao céu:

"E nós não somos nós, e eu não sou eu, [16]

[95] E tudo o que vi, e tudo o que sei,

Não há inferno, nem Paraíso,

E não há Deus, somente eu!

O alemão é curto mas também desata os nós

E mais ninguém!..." -"Está bem, irmão

[100] E você o que é?"

"Deixa que diga

O alemão. Nós não sabemos." [17]

É assim que estudais

Em país estranho!

[105] O alemão dirá: "Vós sois Moguls".

"Moguls! Moguls!" [18]

Do áurico Tamerlão [19]

Netinhos despidos.

O alemão dirá: "Vós sois eslavos".

[110] "Eslavos! eslavos!"

De grandes ancestrais gloriosos

Bisnetos inaptos!

E ledes Kollara [20]

Com todas as forças

[115] E Shafarik, [21] e Hanka, [22]

E aos eslavófilos [23]

Assim avançais... E todas as línguas

Dos povos eslavos —

Conheceis todas. Mas a sua

[120] Deus dará... Algum dia

Iremos falar a esmo

Quando o alemão mostrar

E ainda a história

Nossa nos contar, —

[125] Então nós nos empenhamos

Bem nos empenhamos

Pelo exemplo alemão

E começamos a falar

Mas, nem o alemão entendeu,

[130] Grande Professor,

Quanto mais pessoas comuns

A violência! os gritos!

"E harmonia, e força, [24]

Música e basta!

[135] A história!... poema [25]

Nação livre!

O que aqueles pobres romanos! [26]

Diabo sabe o que - não Brutus!

Para nós Brutus! e Koklesy!

[140] Gloriosos, inesquecíveis!

Crescia nossa liberdade

No Dnipró banhava-se,

Montanhas às cabeças enviava,

Com estepes cobria-se!"

[145] Em sangue banhava-se,

Mas dormia sobre pilhas,

De cadáveres, de livres cossacos

Espoliados cadáveres! [27]

Apenas olhem bem,

[150] Novamente lede

Aquela glória. Mas lede

De palavra a palavra

Não desvieis nem o til,

Nem aquela vírgula,

[155] Compreendei tudo... e perguntai

A vós mesmos: quem nós somos?...

Filhos de quem? de que pais?...

Por quem? por que acorrentados?...

Vereis então, que eis que

[160] Vossos gloriosos Brutus:

Escravos, bajuladores, imundície de Moscou,

Lixo de Varsóvia - vossos senhores [28]

Potentíssimos hetmanes. [29]

Por que vos vangloriais, vós!

[165] Da Ucrânia infelizes filhos

Que sob o jugo viveis bem,

Bem melhor, que vossos avós viviam. [30]

Não vos vangloriais, de vós esfolam couro,

E deles, acontecia, derretiam sebo.

[170] Talvez, vos vangloriais, que a irmandade [31]

Substituiu a fé cristã.

Que em Sinop, Trebizonda [32]

Bolinhos coziam.

Verdade!...verdade, fartavam-se.

[175] E a vós agora enjoa. [33]

E na Sichi o alemão sábio [34]

Planta batatinha,

E vós a comprais,

Comeis pra saúde

[180] E glorificais Zaporozhzhia.

E de quem o sangue

Que regou aquela terra

Que produz batata,

Sois indiferente. Desde que seja

[185] Boa para horta!

Mas jactai-vos, que a Polônia

Derrotamos, certa vez!...

Vossa verdade: Polônia caiu,

E vos esmagou! [35]

[190] Assim como o sangue derramaram

Os pais por Moscou e Varsóvia

A vós, filhos, passaram

Seus grilhões, sua glória! [36]

Lutou, lutou Ucrânia

[195] Até o limite.

Pior que o inimigo, seus filhos

A crucificam.

Em vez da cerveja, o digno

Sangue das costelas sugam.

[200] Dizem, esclarecer querem

Da mãe, os olhos

Com eternas chamas.

Além da vida levar,

Atrás dos alemães, desamparada,

[205] Cega aleijada, [37]

Bom, levai, mostrai,

Que a velha mãe

Aprenda, como cuidar

As novas crianças.

[210] Mostrai!... pela ciência,

Não preocupeis, haverá

Bom pagamento materno.

Desintegrar-se-á o engano

Nos vossos olhos não saciados,

[21]5 Vereis a glória, [38]

Glória viva de seus avós

E de pais dissimulados,

Não mintam para si mesmos,

Estudai, lede,

[220] E de outrem aprendei,

Do próprio não vós esqueçais,

Porque, quem esquece a mãe,

Por Deus será castigado,

Dele os filhos se esquivam,

[225] Em casa não acolhem.

Estranhos mandam embora, [39]

Já não há aceitação

Em toda a terra infinita

Nem casa alegre.

[230] Eu choro quando lembro

Inesquecíveis ações

De avós nossos. Difíceis ações!

Como esquecê-las,

Com alegria eu daria

[235] De minha vida metade. [40]

Assim é a nossa glória,

Glória da Ucrânia.

Então e vós lede, [41]

Para adormecidos não sonhardes [42]

[240] Todas as mentiras, que se abram

Altas sepulturas

Diante de vossos olhos,

Para vos questionardes

Mártires, quem, quando

[245] Por que crucificavam!

Abracem, irmãos meus, [43]

O irmão menor [44]

Para que a mãe sorria,

Mãe chorosa.

[250] E abençoe filhos seus

Com mãos firmes [45]

E beije as criancinhas

Com os lábios libertos. [46]

E esqueça-se a infame

[255] A antiga hora, [47]

E reviva a boa glória,

Glória da Ucrânia,

E o mundo claro, inexaurível

Em silêncio brilhará...

[260] Abraçai-vos, irmãos meus.

Peço-vos, suplico!



NOTAS


Elaboração: Oksana Kowaltschuk


[Nota][Linha]Descrição


1/14 - Pessoas atrelam. As pessoas são os agricultores servos obrigados a lavrar o campo.


2/20 - Crianças alienadas. Aqui Taras Shevchenko mostra sua mágoa, principalmente ao Hetman Bohdan Khmylmytskyi que, para vencer os poloneses que lutavam contra Ukraina para apoderar-se de todas as suas terras, estabeleceu acordo com Moscou. O acordo, em poucos anos foi violado por Moscou, e toda a região central e a esquerda do rio Dnipró caiu sob o jugo moscovita.


3/24 - Ao grande escombro. O Poeta exorta os senhores ukrainianos para amarem o seu país, que mesmo em ruínas tem harmonia, força e história.


4/25 - Libertai-vos, irmanai-vos. As algemas significam a escuridão em que a nação, agora, sob o domínio moscovita, vive. A nação deve procurar o caminho do entendimento mútuo, real, não somente com palavras.


5/33 - Não há no mundo outra Ukraina. Não há outro país como Ukraina.


6/38 - Irmandade fraterna! Encontrastes. Slogans criados pela Revolução Francesa: bem, irmandade, liberdade, etc.


7/51 - Toda miséria consigo. Toda pobreza, insignificância.


8/56 - Que lá expirásseis, onde vós crescestes. Onde se educaram, onde cresceram, se estão no estrangeiro. Porque quando voltam ao país, só se preocupam com o seu próprio bem.


9/58 - Vossa blasfêmia a Deus não chegaria. Porque vocês ofendem Deus, desprezam-no dizendo uma coisa e fazendo outra.


10/68 - Dnipró e montanhas. Neste julgamento serão testemunhas Dnipró e montanhas nas suas margens - Ukraina inteira se levantará contra vocês por causa da opressão que exercem sobre o irmão menor.


11/77 - Sereis amaldiçoados para sempre. Este julgamento se assemelha ao julgamento vindouro de Deus retratado por Isaias.


12/78 - Pelos filhos seus! Pagarão por vocês seus filhos, porque vocês já não existirão.


13/80 - Não desfigureis com lama. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, não pode mentir.


14/88 - De quem vestis a pele. Agora vocês se tornaram senhores. Mas, anteriormente, eram homens comuns como aqueles que agora mantém sob o jugo.


15/90 - Os tolos enganarão. O homem comum condenará os inteligentes, isto é, os opressores.


16/94 - E nós não somos nós, e eu não sou eu. Pensamento de filósofos alemães, profundos e inteligentes. Nossos senhores, porém, são superficiais e se apegam apenas às palavras e não aos pensamentos, daí que suas conclusões não contém a verdade, apenas palavras banais que atribuem, erroneamente, a um ou outro estudioso sério.


17/101/102 - Deixa que o diga O alemão. Nós não sabemos. Pode ser um alemão ou qualquer outro estrangeiro erudito.


18/106 - Moguls! Moguls! Na então ciência histórica havia uma corrente que acreditava serem os eslavos descendentes de mongóis.


19/107 - Do áurico Tamerlão. Tamerlão (1336-1405). Emir da Ásia Central (1370-1405). Conquistador. Realizava ataques devastadores contra o Irã, Ásia Menor, Cáucaso e Índia. Comandou a chamada Horda de Ouro.


20/113 - E ledes Kollara. Jan Kollar (1793-1852). Cientista e poeta Checo-Eslovaco, que defendia a idéia da unidade dos povos eslavos.


21/115 - E Shafarik. Paul Joseph Shafarik. Eslovaco. Linguista, etnógrafo, historiador literário e poeta. Estudioso da história, língua e literatura dos povos eslavos.


22/115 - Hanka. Vaclav Hanka (1791-1861) Filólogo e poeta checo. Líder do renascimento nacional. Defendia a idéia da unidade eslava.


23/116 - E aos eslavófilos. Eslavófilos - representantes de uma das áreas do pensamento social e político da Rússia dos anos 40 - 50 do século XIX. Com medo da influência posicionavam-se contra as ideias ocidentais. Seus pontos de vista eram complexos e contraditórios, com evolução para o conservadorismo. Nos anos 40 os ocidentais os criticavam pela escravatura e conclamavam para que estudassem mais a história nacional e fossem mais progressistas. Os eslavófilos em oposição aos "ocidentalizados" engrandeciam a ortodoxia oficial e defendiam a idéia da forma original russa de desenvolvimento através de comunidades agrárias. Taras Shevchenko dirige suas palavras contra as manifestações daqueles "compatriotas", que se preocupavam com a união dos eslavos sob o cetro do czar autocrata russo, ignorando os interesses do povo ucraniano e seus interesses político-sociais de vanguarda.


24/133 - E harmonia, e força. Harmonia na música, nas canções, satisfação em ouvir. Elogio ao idioma ucraniano que tem harmonia e força e que, mesmo falado parece musical. Assim os senhores ucranianos elogiavam o idioma ucraniano na presença de Shevchenko para lhe agradar mas, entre si, usavam o idioma russo.


25/135 - A história!... poema. Poema - palavra grega. Nossos senhores dizem que nossa história de luta pela liberdade é tão linda, que é como se alguém construísse um poema.


26/137 - O que aqueles pobres romanos! E novamente os senhores pátrios dizem que os heróis romanos eram inferiores, se comparados aos heróis ukrainianos, porque eles não lutaram com eficiência pela liberdade: Brutus tornou-se famoso porque em 509 a.C. matou o rei, e Roma tornou-se uma república livre. Outro Brutus em 43 a.C. matou Cesar, que pretendia tornar a república czarista e tornar-se czar, daí o nome. Horace Kokles, famoso na mitologia romana, o herói que defendeu sozinho uma ponte sobre o Tibre contra os etruscos.


27/148 - Espoliados cadáveres. Esta é a resposta de Shevchenko aos senhores ukrainianos que glorificavam a nossa liberdade.


28/162 - Lixo de Varsóvia. Os dirigentes bajuladores de Varsóvia: Teteria e Khanenko.


29/163 - Potentíssimos hetmanes. Não convém pensar que Shevchenko julgava mal a todos os "hetmanes". Ele glorificava àqueles que realmente cuidavam da Ukraina: Polubotok, Mazepa, Doroshenko, respeitava muito mas sentia grande mágoa por Bohdan Khmylnytskyi devido ao acordo de Pereyaslav com os russos. A crítica é dirigida aos bajuladores de Moscou: Rozumovskyi, Samoilovuch, Skoropadskyi, Briúkhovetskyi.


30/167 - Bem melhor, que vossos avós viviam. Como avós, deve-se compreender aqueles antepassados que lutavam contra o jugo polonês, que não era mais leve que o russo.


31/170 - Talvez vos vanglorieis que a irmandade. A verdadeira história da época dos "hetmane" os senhores não conhecem, vangloriam-se com o que não conhecem bem. Vangloriam-se até com episódios que não merecem glória. Irmandade é o Zaporizhzhia (local e organização dos cossacos). Shevchenko repreende os senhores, lembra que, o glorioso Zaporizhzhia, que era o terror dos turcos - estrangeiros ocuparam, isto é, os alemães.


32/172 - Que em Sinop, Trebizonda. Cidades do litoral da Turquia no litoral norte. Ásia Menor.


33/175 - E a vós agora enjoa. Agora não há mais proveito da situação.


34/176 - E na Sichi o alemão sábio. "Sich" ou Zaporozhizhia (ou mais antigamente Zaporizhzhia) eram os nomes das terras onde viviam os cossacos. Havia uma espécie de quartel militar organizado onde os cossacos viviam sem nenhuma remuneração, a não ser a glória alcançada em lutas pela pátria. As terras adjacentes, geralmente eram ocupadas por cossacos idosos ou mutilados, que constituíam família e ocupavam-se com agricultura, pequena criação de animais e apicultura.


35/189 - E vos esmagou. Não há por que vangloriar-se. É verdade que por causa da Ucrania, Polônia caiu, mas, para Ucrania chegou o fim - sob Moscou.


36/193 -Seus grilhões e sua glória. Aqui a referência já não é mais aos avós, mas aos pais dos atuais senhores, que serviam à Polônia e Moscou. Então a glória dos senhores na verdade - nossos grilhões. Polônia e Moscou porque a parte da margem direita do rio Dnipró continuou sob o jugo da Polônia.


37/205 - Cega aleijada. A velha mãe é Ucrania, que, como criança desamparada não vê, não sabe o que está acontecendo.


38/215 - Vereis a glória. A grande e verdadeira glória dos avós, e a glória dissimulada dos pais. A referência é a épocas diferentes.


39/226 - Estranhos mandam embora. As pessoas não aceitam os traidores, eles se tornam estranhos.


40/235 - De minha vida metade. As ações dos avós eram difíceis mas grandiosos, porém nada restou. Então, seria melhor não saber.


41/238 - Então e vós lede. Eu li, diz o autor, portanto sei qual é nossa glória.


42/239 - Para adormecidos não sonhardes. Para abrir bem os olhos e enxergar a realidade tal qual ela é.


43/246 - Abracem, irmãos meus. Entenda-se - os senhores ucranianos.


44/247 - O irmão menor. O aldeão escravo.


45/251 - Com mãos firmes. Tendo consciência do que fazem.


46/253 - Com os lábios libertos. Sem mentiras.


47/255 - A antiga hora. Aquela que trazia vergonha.





(Ilustração : Ilya Repin - Troika Apprentices Fetch Water, 1866)

domingo, 21 de setembro de 2025

O ANDARILHO E SUA SOMBRA, de Eduardo Giannetti

 




Sempre que posso, saio a pé pelas ruas da cidade. Onde quer que more, com ou sem trânsito, é assim. Nada para mim substitui o contato direto com a rua, a ótica nua do pedestre e o exercício suave da condição de bípede reflexivo. Adoro quando me acontece de poder caminhar até o local de algum compromisso ou encontro e considero um privilégio inconfessável o luxo de perambular a esmo, sem propósito definido, pelo simples prazer peripatético de espiar, devanear e ruminar.

Não é sempre, porém, que me permito o luxo desse esbanjamento. Só quando sinto que cumpri alguma tarefa e, de certa forma, conquistei o direito de vagabundear um pouco por aí. Na era do politicamente correto e da máxima eficiência em tudo, temo a chegada do dia em que o deleite inocente de se caminhar sem pressa, sem expectativa de ganho e sem propósito definido seja considerado um crime.

Um dia desses, não faz muito tempo, eu estava a poucos quarteirões de casa quando fui abordado na calçada por um homem de aparência humilde e jeito acanhado. Não era um mendigo. Parei e perguntei o que era.

Ele então apontou para uma pequena placa no canteiro de obras de um prédio em frente e me pediu, assim meio de lado, se eu podia ler para ele o que estava escrito nela. Queria saber, explicou, se estavam oferecendo emprego. Li a placa em voz alta ("vende-se material usado"), lamentei que não era o caso e sugeri que fosse ao vigia da obra perguntar se estavam precisando de gente. Nunca mais o vi.

O episódio em si não durou mais do que um par de minutos, talvez nem isso. Mas a situação daquele homem simples procurando emprego, o dedo furtivo apontando a placa e a interrogação muda estampada em seu rosto expectante têm me acompanhado de forma intermitente desde aquela manhã.

A sensação imediata, enquanto caminhava de volta para casa, foi de um mal-estar difuso e uma ponta de remorso. A estranha dignidade daquele gesto difícil mexeu comigo. Como aquele sujeito teria vindo parar ali? Teria família, filhos, dívidas? Ele não parecia desesperado. Mas até que ponto, eu me perguntava, as aparências revelavam o seu estado?

Comecei a pensar nas dificuldades e embaraços inusitados que alguém como ele enfrenta cotidianamente. Como se vira um analfabeto no cipoal urbano de São Paulo? Como faz para encontrar um endereço, apanhar o ônibus certo, contar o troco, não ser trapaceado na conta da quitanda?

O analfabetismo numa grande cidade chega a ser uma deficiência tão debilitadora quanto a cegueira ou a surdez. É todo um universo de informação e oportunidades que se fecha, que nunca se abriu. Como nós que lemos e escrevemos como quem respira e caminha podemos sequer vislumbrar o que possa ser isso?

E por que diabos não fui mais solidário? O que me custaria, afinal, ser mais solícito e tentar ajudá-lo a se orientar um pouco? Podia, ao menos, ter perguntado se precisava de dinheiro para tomar uma condução. Inverti, na imaginação, os papéis: o que eu, no lugar dele, esperaria de alguém como eu? Vontade (abstrata) de voltar no tempo, ser melhor do que fui. Era tarde. Será diferente da próxima vez?

Logo, porém, as brigadas da racionalização, esse grande esporte nacional, entraram em campo. Mas por que essa agora, pensei comigo, de me preocupar justamente com aquele total desconhecido? Por que logo ele em vez de outro, em vez de centenas de milhares em situação ainda mais deplorável? Por que ele em vez de 20 milhões de adultos analfabetos absolutos, sem contar os funcionais, registrados no último censo? Só por que alguma coisa no seu jeito agradou o meu senso estético? Seria transformar a benevolência numa enorme loteria.

O sentimentalismo, refleti, não pode tomar conta. O impulso é cego e contraproducente. "O caminho do inferno", adverte são Bernardo, "está repleto de boas intenções". Se a questão for mesmo ajudar o próximo, confabulou o guardião da racionalidade em mim, existem formas institucionais, mais inteligentes e menos impulsivas, de se fazer o bem. O altruísmo amador é um perigo: a ética não pode prescindir da lógica. Não foi à toa que estudei economia tantos anos. A ação tem de ser consequente.

Ademais, prossegui elocubrando, e se tudo aquilo fosse parte de algum tipo de golpe ou armadilha? E se ele ficasse ofendido com o meu interesse em saber mais sobre ele e oferecer ajuda? E se ele não fosse analfabeto, mas disléxico? Não, meus ombros não suportam o mundo...

O fato espantoso, lembrei em seguida, é que em números absolutos existem mais analfabetos no Brasil hoje -o Brasil de FHC e dos 500 anos do descobrimento -do que havia no Brasil que aprendemos a desdenhar na escola -o Brasil da República Velha e das oligarquias agrárias, o Brasil do "café com leite" e do "para os amigos tudo, para os inimigos a lei". O que esses velhos oligarcas diriam se pudessem nos ver agora? O que as escolas do futuro dirão e ensinarão sobre a nossa época? Sobre a pseudomodernidade de nossas parabólicas, computadores e bóias-frias do giz?

Foi na sequência dessa esgrima restauradora do decoro íntimo -o exercício tipicamente machadiano de se chegar a um armistício convincente com a própria consciência -que me voltou a fantasia de algum dia organizar uma antologia de textos mostrando como, ao longo dos séculos, a obsessão com o resgate do ensino sempre foi uma tônica absolutamente central no pensamento e discurso político brasileiros.

Não é mesmo notável que José Bonifácio, o Patriarca da Independência, já se erguesse aos brados contra a precariedade da nossa educação básica e clamasse às elites responsáveis da jovem pátria que sem resolver essa questão o país não tinha jeito? A impressão que se tem, comparando o dito e o feito de lá para cá, é que quanto mais tenebrosa a realidade, mais luminoso o discurso.

De Rui Barbosa a Manoel Bonfim na República Velha, passando por Mário Henrique Simonsen e Hélio Jaguaribe no pós-guerra, sem esquecer, é claro, Eugenio Gudin e Darcy Ribeiro, algumas das páginas mais empolgantes de nossos reformadores e especialistas de todas as épocas e filiações doutrinárias versam sobre o tema. As eleições estão aí: que candidato poderá deixar de dar máxima prioridade à educação? A obsessão educacional e o "tudo pelo social" são nossos velhos companheiros. Nada mais justo.

No fundo é como se, a cada nova geração, os líderes das mais diversas correntes ideológicas se unissem no ritual de mais uma vez arrolar as suas estatísticas favoritas do nosso horror educacional (sempre um banquete de mil talheres), prever o caos inevitável se nada for feito e apontar as soluções claras, evidentes e inovadoras do problema. Ensino básico de qualidade, estamos todos de acordo, é a resposta. Mas qual é a questão?



(Folha de São Paulo, 2 de abril de 1998)



(Ilustração : Adriaen van Ostade - le maître d'école, 1662)

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

IN TABERNA / NA TABERNA, de Anônimo do Século XIII (Carmina Burana)

   




In taberna quando sumus

non curamus quid sit humus,

sed ad ludum properamus,

cui semper insudamus.

Quid agatur in taberna

ubi nummus est pincerna,

hoc est opus ut queratur,



si quid loquar, audiatur.

Quidam ludunt, quidam bibunt,

quidam indiscrete vivunt.

Sed in ludo qui morantur,

ex his quidam denudantur

quidam ibi vestiuntur,

quidam saccis induuntur.

Ibi nullus timet mortem,

sed pro Baccho mittunt sortem.



Primo pro nummata vini,

ex hac bibunt libertini;

semel bibunt pro captivis,

post hec bibunt ter pro vivis,

quater pro Christianis cunctis,

quinquies pro fidelibus defunctis,

sexies pro sororibus vanis,

septies pro militibus silvanis.



Octies pro fratribus perversis,

nonies pro monachis dispersis,

decies pro navigantibus

undecies pro discordaniibus,

duodecies pro penitentibus,

tredecies pro iter agentibus.

Tam pro papa quam pro rege

bibunt omnes sine lege.



Bibit hera, bibit herus,

bibit miles, bibit clerus,

bibit ille, bibit illa,

bibit servis cum ancilla,

bibit velox, bibit piger,

bibit albus, bibit niger,

bibit constans, bibit vagus,

bibit rudis, bibit magnus,



Bibit pauper et egrotus,

bibit exul et ignotus,

bibit puer, bibit canus,

bibit presul et decanus,

bibit soror, bibit frater,

bibit anus, bibit mater,

bibit ista, bibit ille,

bibunt centum, bibunt mille.



Parum sexcente nummate

durant, cum immoderate

bibunt omnes sine meta.

Quamvis bibant mente leta,

sic nos rodunt omnes gentes

et sic erimus egentes.

Qui nos rodunt confundantur

et cum iustis non scribantur.



Tradução de Jorge de Sena:



Na taberna quando estamos,

De mais nada nós curamos,

Que do jogo que jogamos,

Mais do vinho que bebemos.

Quando juntos na taberna,

Numa confusão superna,

Que fazemos nós por lá?

Não sabeis? Pois ouvi cá.



Nós jogamos, nós bebemos,

A tudo nos atrevemos.

O que ao jogo mais se esbalda

Perde as bragas, perde a fralda,

E num saco esconde o couro,

Pois que um outro conta o ouro.

E a morte não val’ um caco

Pra quem só joga por Baco.



Nossa primeira jogada

É por quem paga a rodada.

Depois se bebe aos cativos,

E a seguir aos que estão vivos.

Quarta roda, aos cristãos juntos.

Quinta roda, aos fiéis defuntos.

Sexta, às putas nossas manas,

E sete às bruxas silvanas.



Oito, aos manos invertidos.

Nove, aos frades foragidos,

Dez, se bebe aos navegantes,

Onze, é para os litigantes,

E doze , dos suplicantes,

E treze, pelos viandantes.

Pelo Papa e pelo Rei

Bebemos então sem lei.



Bebem patroa e patrão,

Bebem padre e capitão,

Bebe o amado e bebe a amada,

Bebem criado e criada,

Bebe o quente e o piça fria,

Bebe o da noite e o do dia,

Bebe o firme, bebe o vago,

Bebe o burro e bebe o mago.



Bebe o pobre e bebe o rico,

Bebe o pico-serenico,

Bebe o infante, bebe o cão,

Bebem cónego e deão,

Bebe a freira e bebe o frade,

Bebe a besta, bebe a madre,

Bebem todos do barril,

Bebem cento, bebem mil.



Nenhuma pipa se aguenta

Com esta gente sedenta,

Quando bebe sem medida

Quem de beber faz a vida.

E quem de nós se fiou,

Sem cheta s’arrebentou.

E quem de nós prejulgava,

Se quiser, que vá à fava.



(Poesia de 26 séculos, 2001)



(Ilustração: Jan Miense Molenaer (Dutch, b. ca. 1610–1668) - Tavern of the Crescente Moon)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

A ESPINGARDA DO REI DA SÍRIA, José J. Veiga

  



A vida não estava tratando bem o Juventino Andas desde que ele perdera a espingarda numa espera. Para um caçador de fama e rama, perder a espingarda numa espera pode parecer um feito desonroso — mas é preciso atentar para as circunstâncias. Ninguém esperava chuva aquela noite, e choveu; a lanterna, que ele havia experimentado antes de sair de casa, falhou no mato; e o cavalo, assustado por alguma onça, arrebentou o cabresto e fugiu. Foi quando procurava o cavalo na noite escura que Juventino rolou numa grota, perdeu a espingarda e ainda destroncou um braço. No outro dia o cavalo apareceu na porteira de Seu Ângelo Furnas com a sela quase na barriga e a crina cheia de carrapicho. Seu Ângelo reconheceu-o e o recolheu e mandou recado para Juventino.

Sendo homem sem malícia, apesar de caçador, Juventino achou que devia agradecer a gentileza contando candidamente como se apartara do cavalo. Ângelo ouviu com simpatia, fez uma pergunta aqui outra ali, não mostrou ter achado graça, e nada disse que pudesse ferir a reputação do amigo; mas depois de uma visita que fez à cidade um ou dois dias mais tarde, todo mundo estava gozando o lado cômico do episódio. Juventino não percebeu de logo o que era que lhe estava acontecendo, e até contribuiu para o riso geral acrescentando uma ou outra informação que havia omitido na conversa com Seu Ângelo; mas quando desconfiou que ao assunto estava rendendo mais do que a sua importância justificava, já era tarde para recolocar as coisas na sua exata perspectiva. Aos olhos dos amigos ele era agora como um soldado que perdeu a arma na guerra. Tudo o que ele dissesse teria que ser pesado contra esse único e singelo episódio. Juventino achou que o mais acertado naquelas circunstâncias era viver mais para si e evitar locais como a farmácia de Seu Castiço, que era uma espécie de bolsa de comentários sobre caçadas.

Mas a perda do prestígio de caçador não foi o único aborrecimento de Juventino; havia outro igualmente grande: a privação de caçar, por falta de espingarda. Enquanto aos sábados os outros preparavam seus cartuchos, arreavam seus cavalos e saíam para o Ouro-Fino, os Peludos ou a Mandaquinha, ele ficava em sua janela fumando cigarros de palha, cuspindo nas pedras da calçada e olhando as beatas passarem para o terço. Uma vez, quando a coceira que dizem dar na nunca dos caçadores ficou muito forte, Juventino venceu o escrúpulo e foi pedir a espingarda da Manuel Davém, que ele sabia estar de cama com a ciática. Manuel arregalou os olhos e rebateu quase desesperado:

— Emprestar a minha espingarda? Não, Seu Juventino. O senhor me desobrigue, isso eu não posso. Empresto o cavalo, os arreios, se o senhor quiser. A espingarda não.

Havia também os que se fingiam de inocentes, passavam e perguntavam como se não soubessem de nada:

— Uai, Seu Juventino, o senhor brigou com as pacas?

Mas isso só acontecia porque ele não gostava de criar questão. Se ele fosse como o tenente Aurélio, daria uma resposta arrepiada, e quem não gostasse que corresse dentro. Alguém ia querer briga com tenente Aurélio? Se tenente Aurélio tivesse perdido a espingarda, que teria acontecido? Nada. Nada. Teria comprado outra, se não ganhasse de presente. Foi esperar, choveu, a lanterna zangou, a onça espantou o cavalo, o caçador rolou numa grota, perdeu a espingarda. Não pode acontecer? Alguém ia rir? Ia!

Mas uma coisa dessas só é natural quando acontece a quem pode comprar outra arma no dia seguinte; a graça está justamente quando o caçador não tem recurso e fica impossibilitado de praticar o seu divertimento, isso é que é engraçado e dá assunto. Se Juventino não fosse como era não haveria problema nenhum. Ele iria ao Dr. Amoedo e mandaria suspender o trabalho da dentadura porque precisava do dinheiro para comprar uma espingarda; mas com o trabalho já começado era preciso coragem para fazer isso.

De sorte que naquela ocasião a vida de Juventino girava em volta de uma espingarda, ou da falta de uma espingarda. Por caminhos ocultos o seu pensamento voltava sempre ao mesmo assunto. As pessoas que conheciam o seu problema — eram quase todos na vila — podiam acompanhar os seus silêncios, os seus suspiros, os seus sorrisos secretos e ver na frente uma espingarda.

Como daquela vez que ele entrou na loja de Seu Gontijinho para comprar um par de ligas e estava lá um cometa. Seu Gontijinho era um homem muito delicado, um dos poucos que não caçoavam de Juventino pela perda da espingarda. Era pequenino, usava óculos sem aro e piscava avidamente.

Seu Gontijinho pediu a opinião de Juventino sobre determinado artigo que o cometa estava oferecendo, Juventino gostou da consideração e demorou-se mais do que de costume. O cometa também era simpático, chamava as pessoas pelo nome e tinha sempre coisas engraçadas para dizer. Quando chegou aos mostruários dos cachimbos ele escolheu o mais bonito e deu-o a Juventino para admirar e aproveitou a ocasião para contar que os colonizadores ingleses na África arranjaram uma maneira muito prática de curtir cachimbo novo: retiram o canudo e dão o cachimbo para um preto fumar; quando o cachimbo está bem curtido tomam-no de volta e colocam novamente o canudo novo.

Juventino ouviu a história e ficou muito tempo com o cachimbo na mão, os olhos parados longe. Depois, sem perceber que era observado, ergueu o cachimbo à altura do rosto, segurando-o pelo bojo, fechou um olho em pontaria e deu um estalo com a boca.

O cometa olhou desconfiado e tratou de recuperar o cachimbo para o mostruário. Seu Gontijinho olhou, piscou e perguntou a Juventino o que ele achava de uns borzeguins de bico fino que o cometa havia oferecido antes a preço de saldo. Juventino pensou e disse que era capaz de encalhar, todo mundo agora estava querendo era sapato bico de pato, era a moda. Seu Gontijinho concordou e encomendou só meia dúzia de pares para atender os fregueses mais velhos.

Juventino estava sentado em sua mesa no cartório fumando um cachimbo, e apesar de ser pela primeira vez ele não tossia, nem engasgava, nem sentia nada do que dizem sentir o cachimbeiro principiante, achava até bom; e como o cachimbo não era dele, ele já sentia pena de ter de devolvê-lo mais cedo ou mais tarde. Provavelmente por isso ele queria aproveitar ao máximo o cachimbo, chupando-o sem parar nem mesmo para descansar e enchendo-o de cada vez que ele começava a chiar e pipocar e que o ar quente que saía pelo canudo ameaçava queimar-lhe a língua.

Tão calmante era o efeito do cachimbo que Juventino sentia-se leve e otimista, e até um tanto importante. O problema que o vinha preocupando nos últimos tempos, e que lhe pesara tanto na cabeça ainda no dia anterior, agora parecia primário e distante. De pernas esticadas, pés cruzados na mesa, as costas no descanso da cadeira, ele olhava pela janela e via o largo muito verde pendendo em brando declive até quase tocar os telhados da rua lá embaixo, animais pastando peados entre os pés de vassourinhas. Era engraçado vê-los de longe movendo-se aos saltos como se brincassem de pular de pés juntos. Se não fosse maldade, nem desse processo, ele podia derrubá-los todos um a um sem se levantar do lugar; bastava esticar a mão e apanhar a espingarda que descansava no estojo de couro no chão ao pé da mesa. Mas naturalmente ele não ia fazer isso, era preciso fazer bom uso da esp8ngarda, como dissera Sua Majestade na carta.

Juventino abriu a gaveta, tirou a carta e leu-a mais uma vez, apesar de já sabê-la de cor. Cada vez que ouvia o eco daquelas palavras e pensava na espingarda brilhando em seu estojo, ele gostava porque sentia estar vivendo. Antes, mesmo quando ainda tinha a velha espingarda, ele estava sempre adiando o momento de viver; mas agora era diferente, agora o presente era mais importante do que o futuro.

Mas é claro que nenhum homem pode viver por muito tempo contente apenas com as ofertas do presente; o futuro é tão tentador que acaba sempre metendo a cabeça aqui e ali. Juventino encheu o cachimbo mais uma vez, e enquanto soprava levemente a fumaça — não soprava forte porque queria ver o redemunho iluminado pela fresta de um olho-de-boi no telhado – ele pensava nas pessoas que logo o estariam visitando para ver a espingarda e elogiar a qualidade dela, evidente a qualquer pessoa que conhecesse pelo menos um pouco de arma de fogo.

O primeiro que ele gostaria de ver era Manuel Davém. Pagaria a pena ver a cara dele quando o estojo fosse aberto e a espingarda exibida. Com certeza Manuel ia querer manejá-la, examinar o cano por dentro, e até pedir para dar uns tiros, mas isso Juventino não consentiria, uma espingarda para ser sempre boa não deve andar de mão em mão, como pertence de grêmio.

Juventino não havia ainda terminado com Manuel Davém quando o coronel Bernardo Campelo gritou ó-de-casa no corredor e foi entrando sem esperar resposta. Usava chapéu de copa redonda — não amassava para não est5ragar — paletó de peito fechado, como blusa de soldado, chinelos de couro de anta e bengala de guatambu. Entrou e foi descansando a bengala e o chapéu em cima da mesa e procurando o lenço para enxugar a testa e a carneira do chapéu, suor estraga muito o couro.

A visita do coronel deixou Juventino incomodado porque as relações entre eles não andavam muito boas desde que o coronel cessou de convidar Juventino para o jogo de truco. E da maneira que as coisas aconteceram dava mesmo para desconfiar. Juventino era parceiro certo todos os sábados, e nos intervalos cantava modinha com a filha do coronel, a menina Andira. Diziam que havia namoro entre os dois, mas nessas coisas o povo conversa muito. Um dia Andira não apareceu na sala, e quando alguém perguntou por ela — não Juventino, ele era muito discreto — a mãe informou que se deitara cedo com dor de cabeça. Da vez seguinte também não apareceu, tinha ido visitar umas amigas. E antes do terceiro sábado o coronel Bernardo mandara dizer que o jogo estava suspenso por enquanto, quando recomeçasse avisaria. Depois Juventino soube que estavam jogando sempre, só não haviam jogado uma vez. A gente bate na cangalha para o burro entender, pensou Juventino — e guardou a mágoa

O coronel Bernardo estava agora na frente de Juventino enxugando o suor da testa. Juventino levantou sem dizer nada, não queria comprometer-se nem por um lado nem por outro. Se a visita fosse de paz, o gesto de levantar-se podia ser tomado como uma deferência; se fosse de guerra, seria um movimento estratégico.

O coronel guardou o lenço no bolso traseiro da calça, com certa dificuldade

porque a blusa era comprida e justa, e disse em sua voz grossa descansada:

— O senhor ganhou na loteria, Seu Juventino?

— Que me conste, não... Mas não atino.

— Pensei, não é? Deixou de procurar os pobres...

Juventino pensou para ver se entendia, depois disse:

— Coronel, eu só gosto de ir onde sou esperado.

— Pois lá em casa todos estamos te esperando. Andira sempre pergunta. Anica também vive clamando a sua falta. Pensam que você está estremecido com a gente. Eu disse que com certeza você ficou rico.

— Ora essa, coronel...

— Fale franco comigo, Seu Juventino. Onde entra a franqueza não entra a vileza.

Essa era boa, pensou Juventino. Agora a culpa era dele!

— Eu cuidei que estava estorvando, coronel...

— Com efeito, Seu Juventino! A sua falta é que estorva.

— Quem entende uma coisa dessas, pensou Juventino. Quando a gente pensa que está rostindo, está tinindo, quando pensa que está chegando está zarpando. Erra quem confia, erra quem desconfia. Quem desiste acerta?

Ficou combinado que à noite Juventino comparecia para um truco extraordinário, e o coronel pediu licença para ir chegando, precisava encomendar os perus e os leitões e ver se o Tomé tinha foguetes prontos.

Juventino não quis olhar mais longe porque já adivinhava que antes do Ano Novo ele e Andira estariam casados.

Ele estava ainda sorrindo sozinho quando a porta abriu-se novamente com um chiado tímido e uma figura magra e baixota apareceu na sala. Vestia roupa preta, colarinho duro e chapéu felpudo debruado. Era o Dr. Góis — Deodato Góis Félix — proprietário da empresa de força e luz, de quase todas as casas da Rua Direita, do único automóvel da vila, e o homem a ser adulado pelos candidatos a intendente. Não era um homem com quem Juventino normalmente conversasse, o Dr. Góis tinha inclinações aristocráticas, só falava com proprietários, assim mesmo nem todos, e não tomava a iniciativa de cumprimentar ninguém, quem quisesse ouvir-lhe a voz teria que falar primeiro. Sabendo disso, Juventino não perdia tempo com ele, tinha um emprego vitalício e não precisava sabujar ninguém.

Vendo-o entrar em seu gabinete, Juventino não se levantou, como manda a cortesia; mas o Dr. Góis não se mostrou ofendido. Cumprimentou Juventino, e até muito alegre. Juventino respondeu sem entusiasmo, e nada fez para encadear a conversa, se é que o Dr. Góis queria conversar. Uma pessoa sem traquejo ficaria embaraçada com essa frieza, mas não o Dr. Góis. Ele sabia o que fazer em qualquer ocasião, e fazia-o com naturalidade. Enfiando a mão no bolso esquerdo do paletó, tirou uma penca de bananas-ouro bem madurinhas, podia-se ver o chamuscado da casca e sentir o cheiro. O Dr. Góis quebrou duas gêmeas para ele e passou a penca a Juventino.

— O senhor é servido? São muito macias, e não pesam no estômago. Meu pai dizia: das frutas, a banana; das bananas, a ouro.

Juventino tomou as bananas e foi comendo-as calado, não se sentia obrigado a dizer nada. A felicidade tem mais essa vantagem de deixar a pessoa ser ela mesma, não mudar diante de estranhos. Juventino foi comendo as bananas como gostava de fazer quando era criança, não as descascava, chupava-as por uma ponta, apertando a casca entre os dedos. As cascas espremidas ele ia jogando nas ripas do teto, umas caíam, outras ficavam presas. Parece que o Dr. Góis achou o divertimento interessante porque meteu a mão no outro bolso e tirou mais bananas para jogar as cascas nas ripas. De cada vez que conseguia encaixar uma, ria grosso na clave do ó, dava pulos e batia palmas.

Pareceu a Juventino que o doutor estava levando vantagem porque jogava as cascas abertas e de pé. Estabeleceram-se regras para o jogo, e como a maior parte das cascas acabaram presas no teto mandaram buscar mais um cacho de bananas para continuarem a brincadeira. Com o rumor que faziam, as pessoas que passavam na rua iam parando e chegando-se para olhar, chamavam outras, e logo as janelas do cartório estavam duras de gente.

Quando, horas depois, Juventino declarou que ia parar, o Dr. Góis insistiu que continuassem, estava tão bom o brinquedo. Juventino respondeu que tinha muito o que fazer, precisava escrever uma carta caprichada ao Rei da Síria. O doutor perguntou se não podia deixar para depois, seria uma pena terem que parar só por isso, mas Juventino disse que precisava comunicar ao rei o recebimento da espingarda, era uma questão de gentileza com Sua Majestade.

— Ora, uma espingarda! — disse o doutor fazendo pouco. — Vamos brincar. Eu interesso você em minha empresa.

Juventino respondeu que a proposta vinha tarde, agora ele estava comprometido com o Rei da Síria. O doutor agarrou-o pela manta e disse, instante:

— A eleição vem aí. Eu faço você intendente.

— Grande! Grande! Viva o intendente! — gritou a multidão do lado de fora, alguns imitando com a boca o chiado e o estouro de foguetes.

Juventino chegou à janela e a gritaria aumentou. Era preciso fazer um discurso, seria bobagem esperar a formalidade de eleição, já estavam todos aplaudindo. Ele apoiou as mãos no batente, os dedos para dentro e os cotovelos para fora, pendeu o corpo para a frente e começou:

— Povo de Manarairema!

Antes que ele pudesse ordenar as ideias para a primeira frase um cavaleiro entrou afobado no meio da multidão, empinando o cavalo e espandongando gente. Era o tenente Aurélio, com crepe no chapéu e no braço:

— Morreu! Morreu! — gritava ele. — Morreu o Rei da Síria!

Os sinos começaram a tocar, dos lados do Campo da Forca ouvia-se um toque triste de corneta, um foguete soltado do fundo de algum quintal, com certeza para festejar a proclamação do futuro intendente, voltou sem explodir, deixando no ar dois riscos de fumaça quase paralelos. A multidão foi se dispersando acabrunhada, muito provavelmente pensando na roupa que precisariam desencravar para a missa de sétimo dia.

Juventino virou as costas para a rua, sorrindo triste mas sorrindo. A espingarda estava ainda em seu estojo no chão ao pé da mesa. Ele ergueu o estojo, abriu-o em cima da mesa e tirou a espingarda. Era um belo trabalho de armeiro, com certeza feita por encomenda, e provavelmente não haveria duas iguais no mundo. Quanto teria custado? Quanto valeria? Juventino correu a mão pela arma, do cano à coronha, sentindo a frieza do aço e a lisura pegajosa do verniz novo.

Não era preciso apagar o brasão. Ficava para valorizar.



(Os Cavalinhos de Platiplanto)



(Ilustração: mulher com espingarda - autor não identificado)