quarta-feira, 25 de junho de 2025
CINCO TENDÊNCIAS NARRATIVAS, de Enrique Villa-Matas
1
Em fevereiro de 74, viajei a Paris com a anacrônica intenção de me transformar em um escritor dos anos 20, estilo “geração perdida”. Fui com esse objetivo, digamos, singular e, embora eu ainda fosse muito jovem, isso não impediu que, logo ao começar a passear pela cidade, eu percebesse que Paris estava ensimesmada em suas últimas revoluções, e então fui invadido por uma preguiça imensa, monumental, um enorme cansaço só de pensar que lá eu teria que me transformar em escritor e, ainda por cima, em um caçador de leões à la Hemingway.
Para o diabo com tudo, especialmente as minhas aspirações, disse a mim mesmo num entardecer, caminhando pela Pont Neuf. Tenho que fazer alguma coisa para escapar deste destino, pensava a cada dois minutos naquele dia, sem me dar trégua. E, no fim, acabei entrando numa rua mal iluminada e iniciando uma vida de delinquente que, de algum modo, devolveu-me a um estado de ânimo adolescente que acreditava ter superado: o clássico estado exasperado do jovem que, na “intempérie de sua alma” e na palavra “solidão”, encontra os dois eixos em torno dos quais deveriam girar os grandes poemas que, excessivamente ocupado com o tráfico de drogas, jamais escreverá.
Em Paris, de qualquer forma, não fui tão idiota a ponto de me deixar enganar pelo vazio absoluto, algo que já havia estragado minha primeira juventude em Barcelona, e limitei-me a aceitar que uma controlada falta de sentido me absorvesse, beirando quase o fingimento, dedicando-me quase exclusivamente a percorrer a fundo, de cima a baixo, a Paris mais canalha, a Paris mais brutal, a genial Paris que Luc Sante descreve em The Other Paris (bairros repletos de flâneurs, bandidos, estrelas da chanson, clochards, revolucionárias valentes e artistas de rua), a Paris dos marginais, a Paris dos antifranquistas, com sua bem organizada rede de venda de drogas, a Paris dos destroçados, a Paris da grande vertigem social.
Uma Paris que, muitos anos depois, seria o plano de fundo de minha crônica sobre aquele período em que mergulhei no tráfico de haxixe, maconha e cocaína, e não consegui dedicar-me à escrita nem um minuto, ao que teria que acrescentar meu repentino desinteresse pela cultura em geral — um desinteresse pelo qual paguei caro a longo prazo e que se refletiria até no patético título escolhido para minha crônica daqueles dias desmedidos: “Uma garagem própria”.
Naquela primeira temporada de dois anos, Paris foi, para mim, apenas um lugar onde trabalhei exclusivamente como vendedor de drogas e, durante um breve período de três meses que passou voando, fui um consumidor frequente de ácido lisérgico — lsd —, o que me fez entender que aquilo que chamamos de “realidade” não é uma ciência exata, e sim um pacto entre muitas pessoas, entre muitos conjurados que, por exemplo, um dia decidem, em sua cidade natal, que a avenida Diagonal é uma rua com árvores quando, na verdade, se você toma ácido, pode ver que é um zoológico atulhado de feras e de periquitos com vida própria, todos soltos, alguns trepados nas copas das árvores.
Meu mundo em Paris, naquela primeira temporada de dois anos, resumiu-se a um modesto espaço em que reinavam traficantes de pouca importância e, de vez em quando, a algumas festas com espanhóis decadentes, festas baratas, mas com bastante vinho tinto, e das quais recordo unicamente que adquiri o costume de me despedir dizendo aos pseudoamigos ou conhecidos, a todos, sem exceção:
— Já sabe que parei de escrever?
E quase sempre alguém se atirava para me corrigir:
— Mas você não escreve!
E era isso mesmo, de fato eu não escrevia ou, sendo mais claro, não havia voltado a escrever desde o tempo em que publicara meu primeiro e único livro, um exercício de estilo que concretizara nas dependências militares da cidade africana de Melilla e que intitulei Nepal e que tratava sorrateiramente da destruição da família burguesa e de como eu me dispunha — santa inocência, ainda não havia colocado o pé em Paris, na rua mal iluminada — a permanecer de maneira absolutamente idêntica ao longo de toda a minha vida, ou seja, encantado pelas sãs tendências hippies que tanto me seduziram, até que uns impiedosos contraculturais, libertários e pacifistas me levaram para trabalhar numa colheita de beterraba, e tudo mudou de repente.
Em Paris ninguém sabia, e evidentemente ninguém teria por que saber, que eu havia escrito e publicado um livro ao regressar da África, um romancezinho que fingia ter sido escrito em Katmandu e no qual eu tratava a prosa de um modo tão experimental que a crítica à família burguesa passava despercebida. Ninguém tinha a mínima noção sobre aqueles dias em que eu havia estado em Melilla, brincando de me sentir Gary Cooper em Marrocos, de Von Sternberg (embora me faltasse tudo para ser ele, a começar por Marlene Dietrich), o que me oferecia, entre outras coisas, a chance de tentar ser outro, de inventar uma nova identidade para mim, mesmo que sempre acabasse descobrindo que, apesar de desejar ser muitas pessoas e de ter nascido em muitos lugares diferentes, não passava um dia sem que eu constatasse que somos demasiadamente parecidos a nós mesmos, e o perigo é justamente que acabemos parecidos a nós mesmos.
2
Era muito raro não escrever em Paris, que isso fique bem claro.
Cioran descreveu esse fenômeno ao transcrever o que a porteira de seu prédio um dia lhe dissera: “Os franceses não querem mais trabalhar, todos querem escrever”.
“Mas você não escreve!”, corrigiam-me sempre nas festas das quais saía com cargas explosivas de vinho e haxixe. Dias depois, porém, voltava a me despedir da mesma forma; gostava tanto de proclamar que havia deixado de escrever para poder ouvir aquele fantástico “Mas você não escreve!” que me acostumei a fingir que não ouvia, consciente de que isso me facilitaria continuar repetindo minha frase de despedida em outras ocasiões.
Hoje acho que compreendo que, muito antes de escrever — ou de ter escrito Nepal, o que no caso dava na mesma, porque não era escrita, nem chegava a ser um exercício de estilo —, eu desejava de maneira quase irresistível deixar a escrita para trás, um tema que fiz bem em nunca perder de vista. De fato, essa poética de querer abandonar a obra antes que a obra existisse foi o que, a longo prazo, transformou-me em um especialista em pular de um lugar para o outro no círculo das cinco tendências narrativas, que sempre penso, sempre intuo, que são seis, sem conseguir encontrar a sexta.
Na época, viajei como um louco pelo círculo das cinco tendências narrativas, embora nunca tenha visitado a quarta casa, reservada a Deus e ao tio de Kafka, mais conhecido como “o tio de Madri”, um par impressionante, mas que nunca se sabe onde vai surgir.
Viagens agitadas por quatro das cinco casas. Porque, em Barcelona, quando era muito jovem, comecei sendo um desses que “não têm nada para contar” (primeira tendência) e, portanto, só conseguem chutar pedrinhas pelas ruas de seu próprio e infinito tédio. Depois, pulei para a segunda tendência e fui virando um especialista em ocultar certos aspectos das histórias que contava e em obter, com a estratégia, grandes resultados, até que me transformei em um virtuoso das narrativas nas quais deliberadamente não se narra nada. Esse período aplainou o caminho para a terceira tendência, que é na qual circula mais gente, ocupada pelos que deixam algum fio solto na história que contam e esperam que algum dia Deus a complete ou, em seu lugar, o tio de Kafka, os dois únicos amos e senhores da quarta tendência, seres lendários — o primeiro mais que o segundo — de quem sempre se falou que, dispostos a dizer algo sensato, acabavam por nunca dizer nada, como se fossem inimigos de qualquer tipo de eloquência. Em relação aos ativos hackers do futuro (que, como os marcianos, em parte já estão entre nós e às vezes assumem o nome genérico de “as redes”), cabe esperar que, com o tempo, aprendam a trabalhar como se pertencessem ao sistema de espionagem norte-americano; um sistema que, por sua vez, e por incrível que pareça, tem pontos em comum com a “máquina solteira” que o genial Raymond Roussel utilizou para escrever sua obra.
Essa invenção do autor de Impressões de África — gênio à frente do seu tempo e precursor da era digital — cuspia inesgotavelmente a linguagem numa deslumbrante criação de escrita interminável expelida, provida de uma infinidade de ecos internos que garantiam que a “máquina textual” nunca pifasse.
Fui, enfim, de um lado para outro, conhecendo algumas tendências melhor do que outras, mas tendo, aos poucos, alguma experiência com cada uma delas, exceto com a dos inimigos da eloquência, casa em que, se não me engano — porque em Montevidéu suspeitei ter dado uns passos a mais na escuridão —, nunca pus os pés.
Enumero as cinco tendências:
1) A daqueles que não têm nada para contar.
2) A daqueles que deliberadamente não narram nada.
3) A daqueles que não contam tudo.
4) A daqueles que esperam que Deus algum dia conte tudo, inclusive por que é tão imperfeito.
5) A daqueles que se renderam ao poder da tecnologia, que parece transcrever e registrar tudo, tornando prescindível, portanto, o ofício do escritor.
A primeira casa — a única que percorri naquela Paris dos anos 70 — sempre acabava por me remeter a uma paisagem acinzentada do pós guerra em Barcelona, com uma figura solitária no centro da cena, no meio do Paseo de San Juan, um colegial entediado, magro e pavoroso — eu mesmo, sem ir mais longe. Uma figura solitária que hoje em dia associo a um comentário de Ricardo Piglia sobre sua juventude e sobre os primeiros anos de seus diários (“Porque ali luto com o vazio total: não acontece nada, nunca acontece nada na verdade. E o que poderia acontecer?”), e também ao diário de Paco Monteras, o único companheiro de colégio que sabia fingir que se divertia, mas que, décadas depois, deu-me suas anotações para que eu as lesse, não sem antes advertir que eram ferozmente entediantes e “tão ocres”, disse, destacando o adjetivo “ocres” (que eu nunca tinha ouvido), que os detalhes ali reunidos serviam apenas para saber a previsão meteorológica dos dias pacientemente embaralhados.
(Montevidéu; tradução de Júlio Pimentel Filho)
(Ilustração: Joyce Lee)
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