sábado, 28 de junho de 2025
BRASIL, de Eliane Potiguara
Que faço com minha cara de índia?
E meus cabelos
E minhas rugas
E minha história
E meus segredos?
Que faço com minha cara de índia?
E meus espíritos
E minha força
E meu Tupã
E meus círculos?
Que faço com minha cara de índia?
E meu toré
E meu sagrado
E meus “cabocos”
E minha Terra?
Que faço com minha cara de índia?
E meu sangue
E minha consciência
E minha luta
E nossos filhos?
Brasil, o que faço com minha cara de índia?
Não sou violência
Ou estupro
Eu sou história
Eu sou cunhã
Barriga brasileira
Ventre sagrado
Povo brasileiro.
Ventre que gerou
O povo brasileiro
Hoje está só...
A barriga da mãe fecunda
E os cânticos que outrora cantavam
Hoje são gritos de guerra
Contra o massacre imundo.
(Metade Cara, Metade Máscara)
(Ilustração: Eliane Potiguara - foto de Bruna Monique)
quarta-feira, 25 de junho de 2025
CINCO TENDÊNCIAS NARRATIVAS, de Enrique Villa-Matas
1
Em fevereiro de 74, viajei a Paris com a anacrônica intenção de me transformar em um escritor dos anos 20, estilo “geração perdida”. Fui com esse objetivo, digamos, singular e, embora eu ainda fosse muito jovem, isso não impediu que, logo ao começar a passear pela cidade, eu percebesse que Paris estava ensimesmada em suas últimas revoluções, e então fui invadido por uma preguiça imensa, monumental, um enorme cansaço só de pensar que lá eu teria que me transformar em escritor e, ainda por cima, em um caçador de leões à la Hemingway.
Para o diabo com tudo, especialmente as minhas aspirações, disse a mim mesmo num entardecer, caminhando pela Pont Neuf. Tenho que fazer alguma coisa para escapar deste destino, pensava a cada dois minutos naquele dia, sem me dar trégua. E, no fim, acabei entrando numa rua mal iluminada e iniciando uma vida de delinquente que, de algum modo, devolveu-me a um estado de ânimo adolescente que acreditava ter superado: o clássico estado exasperado do jovem que, na “intempérie de sua alma” e na palavra “solidão”, encontra os dois eixos em torno dos quais deveriam girar os grandes poemas que, excessivamente ocupado com o tráfico de drogas, jamais escreverá.
Em Paris, de qualquer forma, não fui tão idiota a ponto de me deixar enganar pelo vazio absoluto, algo que já havia estragado minha primeira juventude em Barcelona, e limitei-me a aceitar que uma controlada falta de sentido me absorvesse, beirando quase o fingimento, dedicando-me quase exclusivamente a percorrer a fundo, de cima a baixo, a Paris mais canalha, a Paris mais brutal, a genial Paris que Luc Sante descreve em The Other Paris (bairros repletos de flâneurs, bandidos, estrelas da chanson, clochards, revolucionárias valentes e artistas de rua), a Paris dos marginais, a Paris dos antifranquistas, com sua bem organizada rede de venda de drogas, a Paris dos destroçados, a Paris da grande vertigem social.
Uma Paris que, muitos anos depois, seria o plano de fundo de minha crônica sobre aquele período em que mergulhei no tráfico de haxixe, maconha e cocaína, e não consegui dedicar-me à escrita nem um minuto, ao que teria que acrescentar meu repentino desinteresse pela cultura em geral — um desinteresse pelo qual paguei caro a longo prazo e que se refletiria até no patético título escolhido para minha crônica daqueles dias desmedidos: “Uma garagem própria”.
Naquela primeira temporada de dois anos, Paris foi, para mim, apenas um lugar onde trabalhei exclusivamente como vendedor de drogas e, durante um breve período de três meses que passou voando, fui um consumidor frequente de ácido lisérgico — lsd —, o que me fez entender que aquilo que chamamos de “realidade” não é uma ciência exata, e sim um pacto entre muitas pessoas, entre muitos conjurados que, por exemplo, um dia decidem, em sua cidade natal, que a avenida Diagonal é uma rua com árvores quando, na verdade, se você toma ácido, pode ver que é um zoológico atulhado de feras e de periquitos com vida própria, todos soltos, alguns trepados nas copas das árvores.
Meu mundo em Paris, naquela primeira temporada de dois anos, resumiu-se a um modesto espaço em que reinavam traficantes de pouca importância e, de vez em quando, a algumas festas com espanhóis decadentes, festas baratas, mas com bastante vinho tinto, e das quais recordo unicamente que adquiri o costume de me despedir dizendo aos pseudoamigos ou conhecidos, a todos, sem exceção:
— Já sabe que parei de escrever?
E quase sempre alguém se atirava para me corrigir:
— Mas você não escreve!
E era isso mesmo, de fato eu não escrevia ou, sendo mais claro, não havia voltado a escrever desde o tempo em que publicara meu primeiro e único livro, um exercício de estilo que concretizara nas dependências militares da cidade africana de Melilla e que intitulei Nepal e que tratava sorrateiramente da destruição da família burguesa e de como eu me dispunha — santa inocência, ainda não havia colocado o pé em Paris, na rua mal iluminada — a permanecer de maneira absolutamente idêntica ao longo de toda a minha vida, ou seja, encantado pelas sãs tendências hippies que tanto me seduziram, até que uns impiedosos contraculturais, libertários e pacifistas me levaram para trabalhar numa colheita de beterraba, e tudo mudou de repente.
Em Paris ninguém sabia, e evidentemente ninguém teria por que saber, que eu havia escrito e publicado um livro ao regressar da África, um romancezinho que fingia ter sido escrito em Katmandu e no qual eu tratava a prosa de um modo tão experimental que a crítica à família burguesa passava despercebida. Ninguém tinha a mínima noção sobre aqueles dias em que eu havia estado em Melilla, brincando de me sentir Gary Cooper em Marrocos, de Von Sternberg (embora me faltasse tudo para ser ele, a começar por Marlene Dietrich), o que me oferecia, entre outras coisas, a chance de tentar ser outro, de inventar uma nova identidade para mim, mesmo que sempre acabasse descobrindo que, apesar de desejar ser muitas pessoas e de ter nascido em muitos lugares diferentes, não passava um dia sem que eu constatasse que somos demasiadamente parecidos a nós mesmos, e o perigo é justamente que acabemos parecidos a nós mesmos.
2
Era muito raro não escrever em Paris, que isso fique bem claro.
Cioran descreveu esse fenômeno ao transcrever o que a porteira de seu prédio um dia lhe dissera: “Os franceses não querem mais trabalhar, todos querem escrever”.
“Mas você não escreve!”, corrigiam-me sempre nas festas das quais saía com cargas explosivas de vinho e haxixe. Dias depois, porém, voltava a me despedir da mesma forma; gostava tanto de proclamar que havia deixado de escrever para poder ouvir aquele fantástico “Mas você não escreve!” que me acostumei a fingir que não ouvia, consciente de que isso me facilitaria continuar repetindo minha frase de despedida em outras ocasiões.
Hoje acho que compreendo que, muito antes de escrever — ou de ter escrito Nepal, o que no caso dava na mesma, porque não era escrita, nem chegava a ser um exercício de estilo —, eu desejava de maneira quase irresistível deixar a escrita para trás, um tema que fiz bem em nunca perder de vista. De fato, essa poética de querer abandonar a obra antes que a obra existisse foi o que, a longo prazo, transformou-me em um especialista em pular de um lugar para o outro no círculo das cinco tendências narrativas, que sempre penso, sempre intuo, que são seis, sem conseguir encontrar a sexta.
Na época, viajei como um louco pelo círculo das cinco tendências narrativas, embora nunca tenha visitado a quarta casa, reservada a Deus e ao tio de Kafka, mais conhecido como “o tio de Madri”, um par impressionante, mas que nunca se sabe onde vai surgir.
Viagens agitadas por quatro das cinco casas. Porque, em Barcelona, quando era muito jovem, comecei sendo um desses que “não têm nada para contar” (primeira tendência) e, portanto, só conseguem chutar pedrinhas pelas ruas de seu próprio e infinito tédio. Depois, pulei para a segunda tendência e fui virando um especialista em ocultar certos aspectos das histórias que contava e em obter, com a estratégia, grandes resultados, até que me transformei em um virtuoso das narrativas nas quais deliberadamente não se narra nada. Esse período aplainou o caminho para a terceira tendência, que é na qual circula mais gente, ocupada pelos que deixam algum fio solto na história que contam e esperam que algum dia Deus a complete ou, em seu lugar, o tio de Kafka, os dois únicos amos e senhores da quarta tendência, seres lendários — o primeiro mais que o segundo — de quem sempre se falou que, dispostos a dizer algo sensato, acabavam por nunca dizer nada, como se fossem inimigos de qualquer tipo de eloquência. Em relação aos ativos hackers do futuro (que, como os marcianos, em parte já estão entre nós e às vezes assumem o nome genérico de “as redes”), cabe esperar que, com o tempo, aprendam a trabalhar como se pertencessem ao sistema de espionagem norte-americano; um sistema que, por sua vez, e por incrível que pareça, tem pontos em comum com a “máquina solteira” que o genial Raymond Roussel utilizou para escrever sua obra.
Essa invenção do autor de Impressões de África — gênio à frente do seu tempo e precursor da era digital — cuspia inesgotavelmente a linguagem numa deslumbrante criação de escrita interminável expelida, provida de uma infinidade de ecos internos que garantiam que a “máquina textual” nunca pifasse.
Fui, enfim, de um lado para outro, conhecendo algumas tendências melhor do que outras, mas tendo, aos poucos, alguma experiência com cada uma delas, exceto com a dos inimigos da eloquência, casa em que, se não me engano — porque em Montevidéu suspeitei ter dado uns passos a mais na escuridão —, nunca pus os pés.
Enumero as cinco tendências:
1) A daqueles que não têm nada para contar.
2) A daqueles que deliberadamente não narram nada.
3) A daqueles que não contam tudo.
4) A daqueles que esperam que Deus algum dia conte tudo, inclusive por que é tão imperfeito.
5) A daqueles que se renderam ao poder da tecnologia, que parece transcrever e registrar tudo, tornando prescindível, portanto, o ofício do escritor.
A primeira casa — a única que percorri naquela Paris dos anos 70 — sempre acabava por me remeter a uma paisagem acinzentada do pós guerra em Barcelona, com uma figura solitária no centro da cena, no meio do Paseo de San Juan, um colegial entediado, magro e pavoroso — eu mesmo, sem ir mais longe. Uma figura solitária que hoje em dia associo a um comentário de Ricardo Piglia sobre sua juventude e sobre os primeiros anos de seus diários (“Porque ali luto com o vazio total: não acontece nada, nunca acontece nada na verdade. E o que poderia acontecer?”), e também ao diário de Paco Monteras, o único companheiro de colégio que sabia fingir que se divertia, mas que, décadas depois, deu-me suas anotações para que eu as lesse, não sem antes advertir que eram ferozmente entediantes e “tão ocres”, disse, destacando o adjetivo “ocres” (que eu nunca tinha ouvido), que os detalhes ali reunidos serviam apenas para saber a previsão meteorológica dos dias pacientemente embaralhados.
(Montevidéu; tradução de Júlio Pimentel Filho)
(Ilustração: Joyce Lee)
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Enrique Vila-Matas - Cinco tendências narrativas
domingo, 22 de junho de 2025
YOU WANT TO STRIKE BACK AND YOU CAN’T / VOCÊ NÃO PODE FAZER O GOLPE RETROCEDER, de Leonardo Cohen
You want to strike back and you can't
And you want to help but you can't
And the gun won't shoot
And the dynamite won't explode
And the wind is blowing the other way
And no one can hear you
And death is everywhere
And you're dying anyhow
And you're tired of the war
And you can't explain one more time
You can't explain anymore
And you're stuck behind your house
Like an old rusted truck
That will never haul another load
And you're not leading your life
You're leading someone else's life
Someone you don't know or like
And it's ending soon
And it's too late to begin again
Armed with what you know now
And all your stupid charities
Have armed the poor against you
And you're not who you wanted to be
Not remotely he or she
How am I going to get out of this
The untidy mess the untidiness
Never to be clean again or free
Soiled by gossip and publicity
You're tired and it's over
And you can't do any more
That's what this silence
That's what this song is for
And you can't explain anymore
And you can't dig in
Because the surface is like steel
And all your fine emotions
Your subtle insights
Your famous understanding
Evaporate into stunning
(To you) irrelevance
I don't remember when
I wrote this
It was long before 9/11
Tradução de Marcelo Ariel:
Você quer bater de volta e não consegue
Você quer tentar ajudar, mas não pode
A arma não dispara
A bomba não explode
O vento sopra sempre em outra direção
Ninguém quer te ouvir
A morte está em toda parte
Você vai morrer de qualquer maneira
Você está cansado da guerra
Você não pode explicar isso de novo
Você não pode explicar mais nada
E você está preso nos fundos de sua casa
Como um velho caminhão enferrujado
Parece que isso não vai demorar
Para ser carregado
E você não se mata
Você está vivendo a vida de outro
Alguém que você não sabe quem é
E logo isso vai acabar
E é tarde demais para recomeçar
Armado apenas com o que você sabe
E com todos os voluntariados estúpidos de caridade
Sim, Eles irão armar os pobres contra você
E você não é quem você queria ser
Não é ele ou ela e se pergunta
Como fará para sair disso?
Bagunçado Destroçado Humilhado
Sem nunca estar limpo ou livre
Confundido por
Notícias falsas e gritos
Você está cansado e acabou
E não pode fazer mais nada
Para isso, esse silêncio deve servir
Sim, é para isso que essa música existe
Você não consegue explicar mais do que isso
Não consegue ir mais fundo
Porque a superfície da coisa é como aço
E todas as suas boas intenções
Todas as suas delicadas percepções sutis
Seu famoso entendimento
Tudo evapora transmitindo uma incrível
(Ao menos para você) irrelevância
E irrealidade
Eu não me lembro quando foi
Que escrevi isso
Acho que foi um pouco antes de 11
Setembro
(Ilustração: Lida Swan – 9/11)
segunda-feira, 16 de junho de 2025
BOLERO, de Luís Fernando Veríssimo
“Dormir avec vous madame
Dormir avec vous
C’est um merveileux programe
Demandant surtout
Um endroit discret madame”
CHARLES AZNAVOUR
Enfim um bolero, n’est pas madame? Fui eu que subornei a orquestra. Agora podemos dançar juntos, eu sentindo os seus seios contra o meu peito, você sentindo as minhas medalhas. O bolero favorece a minha perna mecânica, ao contrário do tango, que também cultivo, mas só em teoria, senão eu caio na primeira rabanada. O bolero também nos permite falar um no ouvido do outro, ao contrário dessas danças modernas, nas quais a única comunicação possível entre os pares é o sinal semafórico. Nenhuma conversa é tão privada e discreta quanto a de um homem e uma mulher dançando um bolero, o homem cuidando para não engatar os lábios num brinco ao mordiscar o lóbulo, onde a mulher é mais tenra, a mulher se permitindo dizer baixinho tudo que jamais diria em público, principalmente ao alcance dos ouvidos do marido. Existe um marido, pois não, madame? Deve haver um marido, senão nada disto — este salão, este bolero, seus seios contra o meu peito e a minha ereção — tem sentido. O essencial numa sedução não é o sedutor nem a seduzida, é o marido. Todo o drama, toda a aventura, toda a glória e o prazer de uma sedução está centralizada no marido enganado. Um caso sem marido é como um merengue sem recheio, uma casca farofenta encobrindo o nada. Seu marido está nos vendo? Está seguindo nossos passos, salivando como um cão raivoso? Sinto seus olhos na minha nuca, talvez medindo-a para um golpe de cutelo, como o que mata os touros que se recusam a morrer pela espada. Sim, também já fui toureiro. E motociclista. E astronauta. E ator. E malabarista de circo. E físico nuclear. O que a gente não faz para impressioná-las, hein, madame? Posso desafiar o marido para um duelo, se lhe convier. Sim, sou do tempo dos duelos, quando a honra se lavava com sangue, nem que fosse apenas o sangue de um arranhão. Madame já adivinhou que sou um homem antigo. Para mim, nada é mais apropriado do que um bolero acabar num duelo. Posso mandar seu marido para um hospital. Assim nem ele ficaria sem sua honra nem nós ficaríamos sem um marido enganado vivo para apimentar nossa união. Como eu perdi minha perna? Foi numa dessas guerras, não me lembro mais qual. Foi em Waterloo, foi no Somme, foi no desembarque em Omaha Beach, quem se lembra? E tudo para impressioná-la, madame. Eu ainda não a conhecia, nem sentira os seus seios contra o meu peito, e já estava matando e morrendo e construindo civilizações para impressioná-la. Esta sedução não começa aqui, madame, começou há milhares de anos, quando nós descemos das árvores para a savana e passamos a andar de pé, com a genitália exposta. Como isto não as impressionou muito, recorremos a outros meios de sedução. Brigas, guerras, atos de bravura e audácia intelectual, boleros. Tudo para dormir com você, madame. Dormir com você. Fazermos um programa maravilhoso num lugar discreto. Champanhe, alguns canapês, cortinas de veludo cerradas, um disco de vinil na vitrola (sou um homem antigo). Não queremos outra coisa além de dormir com você. Nunca quisemos. E… glubz! Desculpe madame. Acho que engoli o seu brinco.
(Os últimos quartetos de Beethoven e outros contos)
(Ilustração: Fernando Botero - dança)
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Luís Fernando Veríssimo - Bolero
sábado, 14 de junho de 2025
AMORE, OGGI IL TUO NOME / AMOR, HOJE TEU NOME, de Cristina Campo
Amore, oggi il tuo nome
al mio labbro è sfuggito
come al piede l'ultimo gradino...
ora è sparsa l'acqua della vita
e tutta la lunga scala
è da ricominciare.
T'ho barattato, amore, con parole.
Buio miele che odori
dentro diafani vasi
sotto mille e seicento anni di lava -
ti riconoscerò dall'immortale
silenzio.
Tradução de José Tolentino Mendonça:
Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...
Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.
Desbaratei-te, amor, com palavras.
Escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava —
Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.
(O Passo do Adeus)
(Ilustração: Edward Hopper - moça lendo no café)
terça-feira, 10 de junho de 2025
HOMEM DA ESQUINA ROSADA, de Jorge Luis Borges
para Enrique Amorim
Logo pra mim, virem falar do finado Francisco Real. Eu o conheci, e isso que estes não eram os bairros dele, pois costumava andar pelo Norte, por aquelas bandas da lagoa de Guadalupe e da Bateria. Não tratei com ele mais de três vezes, e essas na mesma noite, mas é noite que não vou esquecer, pois nela veio a Lujanera, por querer, dormir no meu rancho, e Rosendo Juárez deixou, pra nunca mais voltar, o Arroio. Aos senhores, claro que falta a devida experiência pra reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Pegador, era dos que cantavam mais grosso lá na Villa Santa Rita. Moço tido e havido por bamba com a faca, era um dos homens de dom Nicolás Paredes, que era um dos homens de Morel. Sabia dar as caras com muita panca no conventilho, num murzelo com enfeites de prata; homens e cachorros o respeitavam e as chinas também; ninguém ignorava que devia duas mortes; usava um chapelão alto, de aba fininha, sobre a cabeleira gordurosa; a sorte o mimava, como quem diz. Nós, os moços da Villa, o copiávamos até no jeito de cuspir. Uma noite, porém, ilustrou pra nós a verdadeira natureza de Rosendo.
Parece conto, mas a história daquela noite mais do que esquisita começou com um carro de praça insolente com rodas encarnadas, cheio até o tope de homens, que ia aos solavancos por aqueles becos de barro duro, entre os fornos de tijolos e os terrenos baldios, e dois de preto, dá-lhe violão e zoada, e o da boleia que dava uma guasca na cachorrada solta que atravessava na frente do tordilho, e um de poncho que ia quieto no meio; aquele era o Curraleiro de tanto nome, e o homem ia pra brigar e matar. A noite era uma bênção de tão fresca; dois deles iam sobre a capota arriada, como se a solidão fosse um corso. Aquele foi o primeiro sucedido de tantos que houve, mas só depois é que ficamos sabendo. Nós, os rapazes, estávamos desde cedo no salão da Julia, que era um galpão de chapas de zinco, entre o caminho de Gauna e o Maldonado. Era um local que o senhor podia divulgar de longe, pela roda de luz que mandava o lampião sem vergonha, e pelo barulho também. A Julia, embora de cor humilde, era das mais conscientes e sérias, de modo que não faltava quem tocasse música nem boa beberagem e parceiras resistentes pro baile. Mas a Lujanera, que era a mulher de Rosendo, dava em todas com sobra. Morreu, senhor, e digo que há anos em que nem penso nela, mas era preciso vê-la em seus dias, com aqueles olhos. Vê-la não dava sono.
A cachaça, a milonga, o mulherio, um palavrão condescendente da boca de Rosendo, uma palmada dele num montão de gente e que eu procurava sentir como amizade: a questão é que eu estava feliz da vida. Pra mim tocou uma parceira das melhores pra acompanhar, que ia como que adivinhando minha intenção. O tango fazia o que queria com a gente e nos arrastava e nos perdia e voltava a nos ordenar e juntar. Naquela diversão estavam os homens, a mesma coisa que num sonho, quando de repente a música me pareceu aumentar, e era que já se embolava com ela a dos guitarristas do carro, cada vez mais perto. Depois, a brisa que a trouxe enveredou pra outro rumo, e voltei a prestar atenção no meu corpo e no da parceira e nas conversações do baile. Muito depois, chamaram à porta com autoridade, uma pancada e uma voz. Em seguida, um silêncio geral, uma peitada poderosa na porta e o homem estava dentro. O homem era parecido com a voz.
Pra nós não era ainda Francisco Real, mas um sujeito alto, fornido, trajado inteiramente de preto, com uma chalina* da cor de um baio jogada no ombro. A cara, lembro que era de índio, angulosa.
Ao se abrir, a folha da porta bateu em mim. Por pura afobação, caí em cima dele e lhe encaixei a esquerda na facha, enquanto com a direita sacava a faca afiada que carregava na cava do colete, junto do sovaco esquerdo. Pouco ia durar meu atropelo. O homem, pra se firmar, esticou os braços e me pôs de lado, como quem se livra de um estorvo. Deixou-me encolhido atrás, ainda com a mão debaixo do paletó, na arma inútil. Seguiu como se não fosse nada, adiante. Seguiu sempre mais alto que qualquer um dos que ia apartando, sempre como sem ver. Os primeiros — só uma italianada curiosa — abriram-se como leque, apressados. A coisa não durou. No amontoado seguinte já estava o Inglês à sua espera, e, antes de sentir no ombro a mão do forasteiro, colocou-a pra dormir com uma pranchada que tinha pronta. Foi verem aquela pranchada, e já foram todos na fumaça dele. O estabelecimento tinha mais que muitas varas de fundo, e ele foi arrastado feito um cristo, quase de ponta a ponta, a empurrões, assovios e cuspidas. Primeiro lhe deram socos, depois, ao verem que nem aparava os golpes, simples bofetões com a mão aberta ou com a franja inofensiva das chalinas, como rindo dele. Também, como que o reservando pro Rosendo, que não tinha se mexido da parede do fundo, onde estava encostado, calado. Fumava com pressa seu cigarro, como se já entendesse o que vimos claro depois. O Curraleiro foi empurrado até ele, firme e ensanguentado, com aquela rajada de gentuça chiando atrás. Vaiado, maltratado, cuspido, só abriu a boca quando se encarou com Rosendo. Então olhou pra ele, limpou o rosto com o antebraço e disse estas coisas:
— Eu sou Francisco Real, um homem do Norte. Sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Consenti a esses infelizes que me alçassem a mão porque o que estou procurando é um homem. Andam por aí uns loroteiros dizendo que nestas paragens há um, que chamam de Pegador, que tem fama de riscar a faca e de durão. Quero encontrá-lo pra que me ensine, a mim que sou nicles, o que é um homem de coragem de se ver.
Disse essas coisas e não tirou os olhos de cima dele. Agora lhe brilhava uma baita faca na mão direita, que na certa ele tinha trazido na manga. Ao redor os que empurraram foram se abrindo, e todos olhávamos para os dois, num silêncio grande. Até a fuça do mulato cego que tocava violino acatava esse rumo.
Nisso, ouço que se deslocavam atrás, e vejo junto da moldura da porta seis ou sete homens, que seriam a turma do Curraleiro. O mais velho, um homem com ar do interior, curtido, de bigode grisalho, adiantou-se para ficar como encadeado por tanto mulherio e tanta luz, e descobriu-se com respeito. Os outros vigiavam, prontos para entrar cortando se o jogo não fosse limpo.
Enquanto isso, o que acontecia com Rosendo, que não expulsava a pontapés aquele garganta? Continuava calado, sem erguer os olhos. O cigarro não sei se cuspiu ou deixou cair da cara. Afinal pôde dar com algumas palavras, mas tão devagar que para os da outra ponta do salão não chegou até nós o que disse. Francisco Real tornou a desafiá-lo, e ele a se negar. Então, o mais jovem dos estranhos assoviou. A Lujanera olhou pra ele com ódio, abriu passagem com a cabeleira nas costas, entre os do carro e as chinas, e foi no rumo do seu homem, meteu-lhe a mão no peito, sacou sua faca desembainhada e deu-a a ele com estas palavras:
— Rosendo, acho que você está precisando dela.
Na altura do teto havia uma espécie de janela comprida que dava pro riacho. Rosendo recebeu a faca com as duas mãos e botou os olhos nela como se não a reconhecesse. De repente se inclinou pra trás, e a faca voou direto e foi se perder lá fora, no Maldonado. Senti como um frio.
— Não te meto a faca só de nojo de te carnear — disse o outro, e levantou a mão pra castigá-lo. Então a Lujanera se agarrou nele, passou-lhe os braços pelo pescoço e, olhando pra ele com aqueles olhos, disse-lhe com raiva:
— Deixa esse aí que nos fez acreditar que era um homem.
Francisco Real ficou atrapalhado por um momento, mas em seguida a abraçou como pra sempre, gritando aos músicos que metessem tango e milonga e aos outros da diversão, que era pra gente dançar. A milonga correu solta como um incêndio de ponta a ponta. Real dançava com muita gravidade, mas sem deixar folga entre eles, como se já a possuísse. Chegaram à porta e gritou:
— Abram cancha, senhores, que eu já vou com ela dormida!
Disse, e saíram de rosto colado, como no marulhar do tango, como se o tango os deitasse a perder.
Devo ter ficado vermelho de vergonha. Dei algumas voltinhas com alguma mulher e logo a larguei. Inventei que era pelo calor e pelo aperto e fui beirando a parede até sair. Linda noite, pra quem? Na esquina do beco estava o carro de praça, com o par de violões tesos no assento, feito cristãos. Comecei a ficar chateado com tamanha falta de cuidado, como se nem pra catar bugigangas a gente prestasse. Fiquei com raiva de sentir que a gente era coisíssima nenhuma. Um piparote no cravo atrás de minha orelha e joguei-o num charquinho; fiquei um tempo olhando pra ele, como pra não pensar em mais nada. Eu teria gostado de estar no dia seguinte, queria cair fora daquela noite. Nisso, me deram uma cotovelada que foi quase um alívio. Era Rosendo, que se mandava do bairro, sozinho.
— Você sempre servindo de estorvo, seu traste — me resmungou ao passar, não sei se pra se desafogar, ou se distraído. Foi pro lado mais escuro, o do Maldonado; não tornei a vê-lo.
Fiquei olhando aquelas coisas da vida inteira — céu até dizer chega, o riacho porfiando solitário lá embaixo, um cavalo dormido, o beco de terra, os tijolos — e pensei que eu era apenas outro matinho daquelas beiras, criado entre flores do brejo e ossadas. Quem ia sair daquele lixo a não ser nós, gritalhões mas fracos pro castigo, boca e tropelia e nada mais? Senti depois que não, que, quanto mais aporrinhado o bairro, maior a obrigação de ser bravo. Lixo? A milonga — dá-lhe doideira, dá-lhe bochinche nas casas —, e trazia odor a madressilvas o vento. Linda até o cerne a noite. Havia estrelas de dar tontura só de olhar, umas sobre as outras. Eu fazia força pra sentir que pra mim o assunto nada representava, mas a covardia de Rosendo e a coragem insuportável do forasteiro não queriam me largar. Até uma mulher para aquela noite, o homem alto tinha podido arrumar.
Para aquela e para muitas, pensei, e talvez pra todas, porque a Lujanera era coisa séria. Sabe Deus pra que lado foram. Muito longe não haviam de estar. Até mesmo, talvez, já andassem aprontando os dois, em qualquer valeta.
Quando consegui voltar, o baileco seguia em frente como se nada tivesse acontecido.
Bancando um menininho, enfiei-me no meio de um monte de gente e vi que alguns dos nossos tinham se mandado e que os do Norte tangueavam junto com os demais. Cotoveladas e encontrões não havia, mas receio e decência. A música parecia sonolenta, as mulheres que tangueavam com os do Norte não diziam esta boca é minha.
Eu esperava alguma coisa, mas não o que aconteceu.
Ouvimos lá fora uma mulher que chorava e depois a voz que já conhecíamos, mas serena, quase serena demais, como se já não fosse de alguém, dizendo-lhe:
— Entre, minha filha — e logo outro choro. Em seguida a voz como se começasse a se desesperar.
— Abra, estou lhe dizendo, abra, bastarda perdida, abra, cadela! — Nisso a porta trêmula se abriu e entrou a Lujanera, sozinha. Entrou mandada, como se alguém a viesse tocando.
— Alguma alma está mandando nela — disse o Inglês.
— Um morto, amigo — disse o Curraleiro. A cara era tal qual de bêbado. Entrou e, no claro que todos lhe abrimos, deu alguns passos cambaleantes — alto, sem ver — e foi ao chão de uma vez, como um poste. Um dos que vieram com ele o deitou de costas e acomodou o ponchinho feito seu travesseiro. Esses auxílios o deixaram sujo de sangue. Vimos então que tinha um ferimento forte no peito; o sangue encharcava-o e enegrecia um lenço vermelho vivo que antes eu não havia notado, porque a chalina o tapava. Como primeiro socorro, uma das mulheres trouxe cachaça e uns trapos queimados. O homem não estava pra explicações. A Lujanera olhava pra ele que nem perdida, com os braços pendentes. Todos estavam se perguntando com a cara, e ela conseguiu falar. Disse que, assim que saiu com o Curraleiro, foram a um campinho, e que nisso pinta um desconhecido que o chama desesperado pra briga e lhe enfia uma punhalada; ela jura que não sabe quem haveria de ser e que não era Rosendo. Quem ia acreditar nela?
O homem a nossos pés estava morrendo. Pensei que não havia tremido o pulso de quem o acertou. O homem, porém, era duro. Quando bateu a hora, a Julia tinha estado cevando uns mates e o mate deu a volta completa e voltou à minha mão, antes que ele falecesse. “Tapem meu rosto”, disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe restava o orgulho e não ia consentir que ficassem xeretando as caretas de sua agonia. Alguém pôs em cima dele um chapelão preto que era de copa por demais de alta. Morreu debaixo do chapelão, sem queixa. Quando o peito deitado parou de subir e descer, animaram-se a descobri-lo. Tinha aquele ar cansado dos defuntos; era um dos homens de mais coragem que houve naquele então, da Bateria até o Sul; quando o soube morto e sem fala, perdi o ódio dele.
— Para morrer basta estar vivo — disse uma do grupo, e outra, pensativa, também:
— Tanta soberba o homem, e agora só serve para juntar moscas.
Então os do Norte foram dizendo entre si uma coisa devagar, e dois ao mesmo tempo ficaram repetindo forte depois:
— A mulher o matou.
Um lhe gritou na cara se era ela, e todos a cercaram. Eu me esqueci que era preciso ter tino e me meti entre eles que nem a luz. Afobado, quase apelo pra faca. Senti que muitos me olhavam, pra não dizer todos. Disse quase com malícia:
— Prestem atenção nas mãos dessa mulher. Que pulso ou coração vai ter pra cravar uma punhalada?
Acrescentei, meio sem vontade, a bravata:
— Quem ia sonhar que o finado, que, conforme tem gente dizendo, era durão no bairro dele, fosse abotoar de forma tão bruta e num lugar tão completamente morto como este, onde nada acontece, se não vem alguém de fora para distrair a gente e fica pra cuspida depois?
O couro não ficou pedindo pancada a ninguém.
Nisso, ia crescendo na solidão um barulho de cavaleiros. Era a polícia. Uns mais, outros menos, todos tinham alguma razão pra não querer nada com ela, tanto que decidiram que o melhor era transladar o corpo do morto ao riacho. Os senhores devem estar lembrados daquela janela comprida por onde passou brilhando o punhal. Por lá passou depois o homem de preto. Foi erguido por muitos e de tudo quanto tinha em centavo e miudezas foi aligeirado por aquelas mãos e alguém lhe torou um dedo pra afanar um anel. Aproveitadores, senhor, que assim animavam um pobre defunto indefeso, depois que o acertou outro mais homem. Um empurrão e as águas correntosas e sofridas deram fim nele. Pra não boiar, não sei se lhe arrancaram as vísceras, porque preferi não olhar. O de bigode cinza não tirava os olhos de mim. A Lujanera aproveitou o aperto pra sair.
Quando os da lei vieram dar sua campana, o baile estava meio animado. O cego do violino sabia tirar umas habaneras das que não se ouvem mais. Lá fora estava querendo clarear. Uns postes de algarobo sobre um morro pareciam soltos, porque os fios fininhos não se deixavam avistar tão cedo.
Voltei quieto pro meu rancho, que ficava a umas três quadras. Ardia na janela uma luzinha, que se apagou logo em seguida. Deveras que me apressei em chegar, quando me dei conta. Então, Borges, tornei a puxar a faca curta e afiada que eu sabia carregar aqui, no colete, junto do sovaco esquerdo, e dei outra revisada nela devagar; estava como nova, inocente, e não restava nem um pingo de sangue.
* Espécie de echarpe de lã que os homens usam sobre os ombros.
(História universal da infâmia, tradução de Davi Arrigucci Jr.)
(Ilustração : Carolus Duran - l'assassiné ou souvenir de la campaigne romaine)
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Jorge Luis Borges - Homem da esquina rosada
sábado, 7 de junho de 2025
PASSÉ COMPOSÉ, de Ana Guadalupe
subiu as escadas
para perguntar sobre as palavras
derrubadas pelo meu sotaque
afirmei que meu amor é
enorme, um móbile
perdido entre arandelas;
disse que meu amor é
firme, retorna com maçãs
e canela das pernas;
se perguntasse sobre a
fertilidade, os perni-
longos, a falta de sorte,
responderia que meu amor é
forte, chacoalha as árvores
sempre que parte.
(Ilustração : Alfedo López - poule bienveillant)
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Ana Guadalupe - Passé composé
quarta-feira, 4 de junho de 2025
TAÇA DE WARREN: CÁLICE ENCONTRADO PROVAVELMENTE EM BITTIR, PERTO DE JERUSALÉM, 5 -15 D.C., de Neil MacGregor
Há dois mil anos, membros da elite de grandes impérios como o de Roma não se preocupavam apenas com poder e conquista. Como todas as elites, também encontravam tempo para o prazer e para a arte. Este objeto incorpora as duas coisas. É uma taça de prata feita na Palestina, por volta de 10 d.C. Antes de chegar ao British Museum, esteve na coleção de Edward Warren, o ricaço americano que encomendou a versão mais famosa da escultura O beijo, de Rodin, e nos revela quase tanto sobre as atitudes do século XX em relação ao sexo como sobre as dos romanos.
A Taça de Warren mostra cenas de união sexual entre homens adultos e rapazes adolescentes. Esta peça de prataria romana, de dois mil anos de idade, é um cálice que parece capaz de comportar o conteúdo de uma taça muito grande de vinho. Tem a forma de um troféu esportivo moderno, com uma pequena base, e já teve duas asas, que se perderam. É possível perceber logo de imediato que se trata de uma obra de supremo artesanato. As cenas da taça são esculpidas em relevo, produzido a marteladas de dentro para fora. Deve ter sido usada em festas particulares, e, levando em conta o tema, certamente atraía a atenção e despertava a admiração de todos os presentes.
Comer e beber abundantemente eram rituais importantes do mundo romano. Em todo o império, funcionários romanos e mandachuvas locais usavam banquetes para azeitar as engrenagens da política e dos negócios e para ostentar riqueza e status. As mulheres romanas costumavam ser excluídas de eventos como as bebedeiras das quais nossa taça faria parte, e talvez seja lícito supor que nosso objeto se destinava a festas com listas de convidados compostas apenas por pessoas do sexo masculino.
Imaginemos um homem chegando a uma grande vila perto de Jerusalém por volta do ano 10. Escravos conduzem-no por uma opulenta área de jantar, onde ele descansa com outros convidados. A mesa está servida, com bandejas de prata e taças enfeitadas. É nesse contexto que nossa taça seria passada de um convidado para outro. Nela duas cenas de sexo entre homens são ambientadas numa residência particular suntuosa. Os amantes são mostrados em sofás forrados, semelhantes àqueles em que repousariam os convidados de nosso jantar imaginário. E veem-se uma lira e flautas prontas para começarem a tocar quando os participantes se instalarem para desfrutar seus prazeres sensuais. Bettany Hughes, historiadora e apresentadora, discorre a respeito:
A taça mostra duas variedades de ato homossexual. Na frente há um homem mais velho — sabemos que é mais velho porque tem barba; sentado sobre ele, de pernas abertas, está um jovem muito bonito. É tudo muito vigoroso e viril, muito realista — não é uma visão idealizada da homossexualidade. Mas se olharmos a parte de trás veremos uma representação mais tradicional. Mostra dois belos jovens — sabemos que são jovens porque cachos de cabelos lhes caem pelas costas. Um está deitado de costas, e o outro, um pouco mais velho, afasta o olhar. É muito mais lírica, uma visão bastante idealizada do que era a homossexualidade.
Embora as cenas homossexuais na taça hoje nos pareçam explícitas — para alguns, chocantes e proibidas —, a homossexualidade era parte integrante da vida romana. Mas era uma parte complicada, tolerada, e não inteiramente aceita. A linha de conduta-padrão entre os romanos sobre o que era admissível em uniões entre pessoas do mesmo sexo foi definida com clareza pelo teatrólogo Plauto na comédia Caruncho: “Ame o que lhe aprouver, desde que fique longe de mulheres casadas, viúvas, virgens, jovens rapazes e meninos de família.”[*]
Portanto, se quiséssemos mostrar sexo entre homens e jovens que não fossem escravos, faria sentido buscar inspiração nos tempos da Grécia Clássica, em que era normal homens mais velhos ensinarem meninos sobre a vida em geral, numa relação de mentor-pupilo que incluía sexo. O império romano em seus primórdios tinha idealizado a Grécia e adotado boa parte de sua cultura, e a taça mostra o que é, sem dúvida, uma cena grega. Seria uma fantasia sexual romana sobre uma união sexual entre homens na Grécia Clássica? É possível que, situando-a em um passado grego, qualquer desconforto moral seja mantido a uma distância segura, ao mesmo tempo que dá um tempero extra à excitação do proibido e do exótico. E talvez todo mundo ache que o melhor sexo sempre acontece em outro lugar. O professor James Davidson, autor de The Greek and Greek Love [Os gregos e o amor grego], explica:
Embora esta taça se volte para o período clássico, os pintores de vasos gregos, que não eram de forma alguma pudicos ou modestos quando se tratava de representar sexo, ainda assim evitavam cuidadosamente cenas de cópula homossexual, pelo menos cópula com penetração. Assim, os romanos estão mostrando o que não poderia ser mostrado quinhentos anos antes. O mundo grego fornecia um álibi que permitia às outras sociedades pensar sobre a homossexualidade, falar sobre a homossexualidade, representar a homossexualidade, como ocorreu a partir do século XVIII e mesmo durante a Idade Média. Isso fez dela uma peça de arte, mais do que uma peça de pornografia.
O outro lado da taça mostra dois jovens
Não há dúvida sobre onde esses encontros ocorrem. Os instrumentos musicais, a mobília, as roupas e os penteados dos amantes — tudo aponta para o passado, a Grécia Clássica de séculos antes. Curiosamente, podemos saber, pela taça, que os dois jovens mostrados aqui não são escravos. O estilo dos penteados, com um longo cacho caindo pelas costas, é típico de meninos gregos nascidos livres. Entre os dezesseis e os dezoito anos, o cabelo era cortado e dedicado aos deuses, como parte da passagem para a idade adulta. Portanto, ambos os meninos mostrados na taça são livres e de boas famílias. Mas também podemos ver outra figura, que pode ter participado do banquete romano no qual a taça era usada. Está ao fundo, espiando uma das cenas de sexo atrás de uma porta — só vemos parte de seu rosto. É, sem dúvida, um escravo, embora seja impossível saber se está apenas se entregando a um ato de voyeurismo ou se atende, muito apreensivo, a um pedido de “serviço de quarto”. Seja como for, nos faz lembrar que o que ele e nós testemunhamos são atos a serem praticados apenas em particular, a portas fechadas. Bettany Hughes comenta:
Em Roma havia a noção de que os homens tinham boas esposas e não deveriam recorrer ao sexo com outros homens. Mas sabemos, pela poesia, pelas leis, por referências a relações homossexuais, que isso de fato acontecia em todo o mundo romano. A Taça de Warren é um bom fragmento de indício material que comprova isso. Ele nos diz o que de fato ocorria, nos conta que a atividade homossexual era algo que acontecia em altos círculos aristocráticos.
Um menino escravo atrás da porta espia os amantes
Taças de prata dessa data são hoje excepcionalmente raras, pois muitas foram derretidas, e poucas das que restaram se comparam à virtuosística habilidade da Taça de Warren. Para comprar uma dessas, era preciso ser rico, pois custaria em torno de 250 denários — e com esse dinheiro dava para comprar 25 jarras do melhor vinho, um terreno de mais de dois mil metros quadrados ou até mesmo um escravo não qualificado, como o que vemos espiando atrás da porta. Assim, esta tolerante peça de jantar situa seu dono firmemente nas altas camadas da sociedade, o mundo que São Paulo condenava com eloquência pela embriaguez e fornicação.
Não temos certeza, mas achamos que a Taça de Warren foi encontrada no subsolo perto de Bittir, cidade poucos quilômetros a sudoeste de Jerusalém. Como ela chegou àquele lugar é um mistério, mas temos um palpite. É possível datar a fabricação desta taça em por volta do ano 10. Mais ou menos cinquenta anos depois, a ocupação romana de Jerusalém provocou entre os governantes e a comunidade judaica um clima de forte tensão, que explodiu no ano 66. Os judeus tomaram a cidade de volta à força. Houve confrontos violentos, e o proprietário de nossa taça talvez a tenha enterrado nessa época antes de fugir da briga.
Depois disso, a taça desapareceu por quase dois mil anos, até ser comprada por Edward Warren em Roma em 1911. Durante anos após sua morte, em 1928, foi impossível vendê-la: o tema era chocante demais para qualquer colecionador em potencial. Em Londres, o British Museum recusou-se a comprá-la, assim como o Museu Fitzwilliam, de Cambridge, e a certa altura a taça chegou a ser impedida de entrar nos Estados Unidos, quando a natureza explícita de suas imagens ofendeu um funcionário da alfândega. Só em 1999, bem depois de as atitudes públicas em relação à homossexualidade terem mudado, o British Museum comprou a Taça de Warren — até então a aquisição mais cara de sua história. Um cartum da época mostrou um barman romano perguntando insolentemente a um freguês: “Vai uma taça hétero ou uma taça gay?”
Cem anos depois de Warren tê-la comprado, a taça está em exposição permanente no museu e cumpre um objetivo de grande utilidade. Não é apenas uma magnífica peça de metalurgia imperial romana: de taça de festa a cálice escandaloso e, finalmente, icônica peça de museu, este objeto nos lembra que a atitude das sociedades para com as relações sexuais nunca é rígida.
Nota:
[*] PLAUTUS. Curculio. Traduzido em WILLIAMS, Dyfri. The Warren Cup. Londres: British Museum Press, 2006.
(A história do mundo em 100 objetos; tradução de Ana Beatriz Rodrigues, Berilo Vargas e Cláudio Figueiredo)
(Ilustrações do livro)
domingo, 1 de junho de 2025
AS ROSAS TÊM PRESSA, de Abel Silva
querem explodir
pois é breve
a glória da flor.
O colibri também sabe
que começa a minar
de leve,
no fundo do cálice perfumado,
o néctar de seus dias.
Se as plantas, os bichos,
os ventos, as águas,
se tudo sabe,
por que em meu peito
ainda cabe
o agasalho
da melancolia?
Se já tenho as milhagens
da fria viagem,
se já é setembro no Rio
enfim, caralho!
Por que o inverno
insiste em mim
com seus dedos crispados
de arrepios?
(O gosto dos dias)
(Ilustração: Edouard Manet - Sur la plage)
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Abel Silva - As rosas têm pressa
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