segunda-feira, 26 de maio de 2025

CANÇÃO, de Sóror Violante do Céu

 


Amante pensamento,

Núncio de amor, correio da vontade,

Emulação do vento,

Lisonja da mais triste soledade,

Ministro da lembrança,

Gosto na posse, alívio na esperança,

 

Já que de minhas queixas

A causa idolatrada vás seguindo,

Diz-lhe qual me deixas:

Diz-lhe que estou morta, mas sentindo,

Que pode mal tão forte

Fazer que sinta (ai triste!) a mesma morte.

 

Diz-lhe que é já tanto

O pesar de me ver tão dividida,

Que só me causa espanto

A sombra que me segue de üa vida

Tão morta para o gosto

Como via (ai de mi!) para o desgosto.

 

Diz-lhe que me mata

Quem, vendo-me morrer sem resistência,

De socorrer-me trata,

Pois para quem padece o mal de ausência

Que é só remédio entendo

Ver o que quer ou fenecer querendo.

 

Diz-lhe que a memória

Toma por instrumento do meu dano

A já passada glória,

Fazendo o mais suave tão tirano,

Que o bem mais estimado

Me passa o coração, porque é passado.

 

Diz-lhe que se sabe

O poder de üa ausência rigorosa,

Que a que começa acabe

Antes que ela me acabe poderosa,

Pois de tal modo a sinto,

Que julgo ter por eterno o mais sucinto.

 

Diz-lhe que se admite

Rogos de um coração que o segue amante,

Que ver-me solicite

Apesar do preciso e do distante,

E que tão cedo seja

Que toda a compaixão se torne inveja.

 

Diz-lhe que se acorde

De uns efeitos de amor que encarecia,

E que todos recorde,

Mas que seja um minuto cada dia,

Pois eu cada minuto

Infinitas lembranças lhe tributo.

 

Diz-lhe que até à morte

Assistência contínua lhe ofereces,

E que te invejo a sorte;

E enfim, se de meu mal te compadeces,

Ó pensamento amigo,

Diz-lhe tudo, ou leva-me contigo.

 

(Ilustração: Jean Despujols - la pensée, c.1929)

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