quinta-feira, 17 de abril de 2025
COMO NASCEU O CAJÓN COMO INSTRUMENTO MUSICAL, de Mario Vargas Llosa
O cajón é uma grande invenção da música peruana cuja origem se perde na noite dos séculos, embora provavelmente tenha surgido no tempo da Conquista, já que muitos negros e mestiços — escravizados ou livres — vieram com os espanhóis. Nos livros de história há um grande silêncio a respeito dessa população de gente de pele escura que chegava ao Peru desde o final do século junto com os conquistadores — a começar por Cristóvão Colombo — e participou ativamente da tomada de Tahuantinsuyo. Naqueles primórdios distantes, os negros e mestiços chegaram a constituir algumas vezes um terço dos membros das expedições espanholas ao país. E muitos escravizados eram recompensados com a alforria por sua bravura e pelos serviços prestados durante a conquista. O historiador Porras Barrenechea afirma que, apesar das proibições da Inquisição, muitas músicas, cantos e danças africanas se filtraram população adentro desde aquele promissor alvorecer do Peru, em que a população escura vinda da Espanha desempenhou um papel tão importante. Muitos desses negros ou mestiços eram muçulmanos que tinham se convertido ao catolicismo na pátria-mãe, de modo que o islamismo também tem sua participação nas intensas misturas raciais que originaram os peruanos. Em nossas fotografias mais antigas há conjuntos musicais em que o cajón e o cajonista aparecem ocupando um lugar de destaque.
O cajón é indissociável da pobreza e do engenho daqueles que não tinham nenhum dinheiro para comprar uma gaita, uma viola de mão nem, muito menos, um violão. Por isso inventaram esse instrumento musical que acompanha, como se fosse uma sombra, a marinera, a valsa, o huainito e, de modo geral, toda a música criada país afora desde que a independência culminou todas as conspirações dos peruanos buscando se emancipar da tutela estrangeira e o exército do general San Martín chegou do Chile para consagrá-la.
Foi assim que nasceu o cajón como instrumento musical. Quem o inventou? Os historiadores lembram os nomes dos grupos musicais mais antigos — apontam sobretudo os negros — que já o usavam. Mas, embora mencionem muitos nomes, o fato é que ninguém sabe ao certo. E eu penso que, diante da dúvida, devemos designar o cajón como o que ele realmente é: um símbolo do que são capazes os peruanos mais necessitados e amantes da música que, por falta de recursos, recorreram a esse instrumento de percussão para acompanhar os cantores de música criolla.
O cajón é qualquer caixote, claro. Mas, de preferência, feito de madeira dura e envelhecida — o cedro florestal, por exemplo, mas também há muitos de alfarrobo —, porque é a madeira que soa melhor, obediente à mão e ao ritmo. Mais tarde, já nos dias de hoje, as lojas de música inventaram os “cajones de fábrica”, que, como você, leitor, há de imaginar, não costumam ser os melhores, e muitas vezes são bem piores que os outros, os de rua. O som desse instrumento é fascinante. Certa vez uns cantores espanhóis, chegando a Lima direto da Andaluzia, se apaixonaram pelo cajón e o levaram à Espanha, onde parece que se tornou, pelo que me contaram músicos mais viajados, um instrumento típico, em especial no sul do país, ao lado das castanholas e do violão, elementos substanciais do flamenco.
Para ser um bom cajonista é preciso ter mãos endurecidas e calejadas e um bom ouvido — mais nada. E uma voz que não desafine muito. Hoje em dia também se ensina a tocar o instrumento em escolas e conservatórios de música, mas todos dizem que os melhores percussionistas são os de rua, que aprenderam a tocar de ouvido e nunca cometem erros. E é uma maravilha para os olhos e para os ouvidos — sei por que estou dizendo — ver esses artistas populares, às vezes analfabetos, especialistas em tocar cajón, produzindo aqueles sons que, com os dedos e a palma das mãos, vão espalhando pelas melodias que ouvimos da valsa. Dizem que é por isso que os cantores de valsa e marinera sempre exigem que haja um cajonista nos grupos musicais que os acompanham. É verdade que os melhores executantes e cultores do instrumento, em geral incorporados à bateria, são homens, mas já existem algumas mulheres que tocam também, em especial entre as andaluzas e limenhas, e o fazem com a mesma elegância e bom ouvido. É com prazer que cito aqui alguns exemplos de cajonistas famosos de Lima; todos os que atuam em grupos mais ou menos conhecidos o são.
Dizem, por exemplo, que o pai da famosa Lala Solórzano, o sr. Juanito Solórzano, era um grande cajonista que até morrer, de pura velhice, quando estava prestes a completar cem anos, ainda era um astro tocando esse instrumento no cortiço de Morones, onde morava com sua multidão de netos, bisnetos e achegados.
Atualmente o cajón se espalhou pelo mundo inteiro e muitos países reivindicam o crédito por tê-lo descoberto. Mas o fato é que é peruano. Nasceu aqui, para orgulho da nossa música. E aqui temos os melhores cajonistas, para nosso orgulho. Não só em Lima, claro. Também em todas as províncias do litoral e da montanha. E até na Amazônia. Sem o cajón, a música peruana não seria o que é. Seu som tem um gostinho especial, uma alma de madeira. Nossa marinera, nossas polcas, nossas valsas não seriam as mesmas sem esse perfume das árvores e das plantas das nossas florestas, sobretudo da Amazônia. É isso que o cajón nos proporciona. E quanto mais velho, melhor. Por isso os nossos cajonistas mantêm seus instrumentos até literalmente se desmancharem.
Já ouviram o Manco Lañas tocando? O Manco Lañas nunca quis entrar num grupo musical, apesar das muitas propostas que recebeu. De vez em quando aparece em algum palco ou numa boate, com a irregularidade dos boêmios, quando sabe que vai encontrar um conjunto que aprova. E então começa a tocar.
Deus do céu, que ouvidos e que mãos. Lañas é um homenzinho insignificante, teve poliomielite na infância, mas quando toca ele cresce, engorda e parece até que se levanta. É uma espécie de Lalo Molfino do cajón. E hoje ninguém tenta mais contratá-lo. Já se cansaram. Todos os grupos ficam apenas à espera de que ele apareça e os acompanhe. Há muitos cajonistas magníficos no Peru. Outro grande é o que acompanhava Chabuca Granda em suas turnês internacionais: Carlos “Caitro” Soto, majestoso com seu famoso cajón.
Em seu interessante livro sobre a valsa peruana (intitulado El Waltz y el valse criollo), César Santa Cruz Gamarra, irmão de Victoria, a ilustre folclorista, diz que na década de 1950 havia três grandes cajonistas no país: Francisco Monserrate, Víctor Arciniega, o “Gancho”, e Juan Manuel Córdova, apelidado de “Pibe Piurano”, especialista em tonderos, sobretudo. E também que esses bateristas participavam dos programas de rádio, quase sempre ao final, pois costumavam encerrar com alguma marinera ou tondero do Norte. E que foi Yolanda Vigil, dona do mais belo apelido, “a Peruana”, quem introduziu a música criolla com seu show no Embassy, em Lima e no grande espaço nacional, e o fez com a graça e a brejeirice típicas da mulher do litoral. Segundo ele, só a partir de então a música criolla rompeu a carapaça que a restringia aos cortiços e se espalhou por todo o país.
Sem desmerecer a sabedoria do ilustre Cruz Gamarra, creio que foi um pouco antes disso que a música criolla começou a ganhar terreno e foi se impondo em todos os setores do Peru, com diversos coletivos sociais adotando o cajón e os cajonistas como um fato essencial do gênero, inseparável dele, como mais tarde seria reconhecido.
Por outro lado, César Santa Cruz Gamarra não parece ser de todo simpático a essa expansão da música criolla na década de 1950, que se deveu sobretudo aos programas de rádio. Pelo contrário, manifesta seu descontentamento, como se a valsa, ao se espalhar pelos estratos sociais, tivesse perdido algo da sua qualidade, da sua originalidade, e, mais que isso, houvesse empobrecido. Eu não concordo com ele, é claro. Para mim, essa ruptura do pequeno círculo em que a música peruana estivera confinada até então foi a melhor coisa que nos aconteceu como país. Foi um grande mérito dessa arte, com a qual enfim puderam nascer as canções que os peruanos, de qualquer classe social, passaram a reconhecer como próprias.
César Santa Cruz Gamarra chegou a ter um grande destaque em nosso país, primeiro como intérprete e compositor de canções, depois como decimero, isto é, como autor de décimas, que improvisava com uma facilidade enorme perante diversos públicos, retomando uma antiquíssima tradição nacional cuja origem se perde nos anos da colônia. Ele ressuscitou essa tradição e se tornou muito popular, apesar dos preconceitos que marginalizavam os negros na época. Embora fosse um negro retinto, não fazia parte dos setores mais pobres do país. Nasceu na classe média, passou a infância no bairro de La Victoria, em Lima, e vários de seus parentes — em especial sua irmã Victoria — contribuíram com muito talento para enriquecer o folclore nacional, tanto pelas informações divulgadas em artigos, conferências e livros como pela prática do canto e da dança, que trouxe fama a todos os membros dessa família. Mas foi César Santa Cruz Gamarra, com as suas décimas, que ficou célebre em todo o país. Depois partiu para a Espanha, onde, provavelmente com menos sucesso que aqui, divulgou a música criolla e se tornou bastante conhecido. Creio que morreu lá, onde sem dúvida deixou um bom número de admiradores.
Como decimero, ele era insubstituível e foi muito amado e respeitado. É verdade que sabia de cor muitas das décimas que declamava e já as tinha usado em diferentes circunstâncias, mas outras vezes realmente improvisava, em resposta aos estímulos que ia recebendo, e o fazia de forma maravilhosa. Tive oportunidade de ouvi-lo diversas vezes, em apresentações públicas ou em programas de rádio, e não se pode negar que recitava com uma facilidade extraordinária, de uma forma inesquecível, muito pessoal, que desencadeava aplausos formidáveis. Era figura popular em todos os ambientes peruanos, e talvez sua ida para a Espanha o tenha prejudicado, porque em Madri perdeu o clamor da pátria e nunca gozou da enorme celebridade que tinha no Peru. Essa posição de destaque, infelizmente, César Santa Cruz Gamarra não conseguiria ter entre os espanhóis.
(Dedico a você meu silêncio; tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman)
(Ilustração:grupo de percussionistas negros peruanos; foto da internet, sem indicação de autoria)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário