sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

NÃO ME NEGUES, de Mary Castilho


Não me negues a fruta do reino

doce

redonda

com grãos de ouro

no seu ventre fecundo.

Não me negues a faca

que há de partir

em metades iguais

que nos deliciarão

como merecem

dois viventes salvos

desta tragédia

que castigará os ímpios.

Não me negues o sumo

da fruta colhida

na tarde silente

que me afasta dos homens

enclausurados

com medo

dos sortilégios ciganos

sem agonia

por merecer-te.

 

(Há um porto a cada noite de abril)

 

(Ilustração: escultura de Henry Moore (1898-1986): reclining figure)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

O ETERNO RETORNO DO LIVRO, de Gilles Lapouge

 


Naquela noite, como não conseguia dormir, fui a Caracórum, na Mongólia. Não foi como ir à casa do vizinho, principalmente porque Caracórum desapareceu há séculos. Onde existiu a cidade, hoje só existe areia. Felizmente, eu tinha O Livro das Maravilhas, de Marco Polo. Bastou virar umas páginas para ir ao século 12 e me deparar com milhares de funcionários, soldados de capacete pontudo, artesãos usando bonés com a cor amarela, vermelha ou azul correspondente a seu ofício, mulheres tímidas e provocantes, dromedários, cachorros, porcos, cavaleiros, trovadores, bandos de monges com túnicas cor de açafrão. Passeei por duas horas. Em seguida, fechei meu Marco Polo e dormi.

Um livro é uma usina, a menor de todas, mas não há nada mais forte do que essa coisinha. Perto do livro, Volta Redonda ou Cabo Canaveral são frágeis, pequeninos, uma brincadeira. Já o livro, ou o pergaminho, ou o in-fólio, se comparados a elas são verdadeiros hércules.

Guarde-se um livro de poesias num sótão, num porão, numa urna. Esqueça-se da situação por alguns milênios, tempo em que dez impérios desaparecem e centenas de milhares de humanos nascem e morrem. Voltando ao local, encontraremos tudo coberto de detritos e poeira. Mas, ao soprar o pó, começa-se a ouvir ruídos tênues, como suspiros. É o livro que renasce. Pistões e bielas põem-se a funcionar. Lembra um coração que volta a pulsar. O livro é um relógio em que os deuses informam as horas. Remontado o pequeno mecanismo, a morte desaparece.

Essa estranha usina não se contenta em sobreviver. Aproveita seus longos sonos para instalar novos programas no disco rígido. A Odisseia ou a Ilíada podem ser as mesmas do tempo da Grécia antiga, mas foram enriquecidas com sentidos antes desconhecidos, ganharam melodias secretas. O livro jamais descansa. Na biblioteca ou na poeira, os anos passam por ele como sonhos, mas, indiferente, ele segue seu caminho. Resiste a tudo – aos séculos, aos leitores, aos críticos, aos que escrevem prefácios. Sai sempre vencedor. Alimenta-se das artimanhas do tempo.

Quando criança, eu colhia limões para fazer tinta transparente, a “tinta invisível”. Escrevia poemas com essa tinta. Com o papel exposto ao calor, os poemas surgiam do vazio. Depois, voltavam a desaparecer lentamente – os primeiros volumes de minhas “obras completas” não seriam nunca lidos. Mas isso não me assustava. Desde muito pequeno, sabia que as palavras, uma vez escritas, continuam a executar nas sombras seu teatro mágico.

Há muito não uso essa tinta invisível. Sua familiaridade, porém, deixou marcas em meu espírito. Atribuo a ela meu gosto pelo palimpsesto. E o que é um palimpsesto? Voltemos à Idade Média. Um escriba redige textos. Um dia, ele constata que não há mais pergaminhos no convento. Pega então um pergaminho usado, raspa seu conteúdo e, no pergaminho de novo virgem, escreve um novo texto.

Essa técnica era usada primeiramente para suprir a penúria de pergaminhos ou de velinos (pergaminhos mais finos, feitos de couro de bezerro). Mas também permitia censurar. Na guerra teológica, o palimpsesto era uma arma. Para abrir espaço aos grandes textos cristãos (Evangelhos, Pais da Igreja, Salmos, etc), apagavam-se do pergaminho textos originais que pudessem ser considerados perigosos, mandando-se para o inferno, ou seja, para o silêncio e a ausência, grandes autores pagãos – gregos, latinos e hereges em geral.

Os monges irlandeses do século 12, discípulos de São Columbano, eram eles próprios grandes santos. Do alvorecer à noite, no frio terrível dos conventos, copiavam os Evangelhos, os Cânticos, as Epístolas de São Paulo em pergaminhos antes ocupados por Cícero, Virgílio, Platão, Tácito ou Xenofonte. Algumas obras primas da Antiguidade desapareceram assim.

Na verdade, os textos destruídos ou expulsos não desaparecem. Mesmo lavados, raspados, ilegíveis, continuam lá. Mexem-se. Murmuram. Debaixo do discurso oficial está a voz desaparecida. Ela emerge balbuciante, embora às vezes incompreensível ou inaudível. Como não pensar aqui na psicanálise? Há em cada um de nós um discurso do inconsciente sufocado nas profundezas, que foi repelido ou apagado para dar lugar à fala autorizada do consciente. A psicanálise sabe como reencontrar e fazer ouvir essa palavra mutilada.

O mesmo ocorre com os livros. Por exemplo, dois discursos de Arquimedes, o Tratado dos Corpos Flutuantes e o Método e Teorema Mecânicos, foram escritos no século 10. Duzentos anos depois, um monge de Constantinopla, que estava sem pergaminho, lavou o texto de Arquimedes para escrever em seu lugar uma oração. Esse homem, inocentemente, infligiu uma terrível mutilação à Biblioteca do Mundo.

Mas no século 20, depois de oito séculos de vazio total, o discurso de Arquimedes e seus desenhos, dos quais não possuímos mais nenhum exemplar, ressurgem das profundezas da noite graças a recursos científicos. Assim, podemos esperar que uma grande parte do pensamento humano que se perdeu no caminho possa ser salva. Na verdade, é do extravagante diálogo entre o texto que se permite ler livremente e o texto oculto, o texto proibido, que nasce a força e a nobreza do pensamento humano.

No Brasil, há cerca de 40 anos, vi um palimpsesto bizarro. Foi em Ouro Preto. Ali, no século 18, os escravos negros que trabalhavam nas minas de ouro às vezes preparavam fogos de artifício. Obtinham a pólvora raspando o salitre de cavernas. Em seguida, embalavam essa pólvora em partituras de música barroca que recolhiam do lixo. Bem mais tarde, já em nossa época, um músico teve a ideia de decifrar uma dessas velhas partituras reencontradas. Por acaso assisti a essa ressurreição. Foi comovente.

Em determinados momentos, a música era inaudível ou inexistia, substituída por silêncios. Eu me lembrava de que esses silêncios eram antigos, de 300 anos. No entanto, quase que se podia adivinhar sua forma.

O escritor russo Leon Tolstoi, autor de Guerra e Paz, em 1910, já com 82 anos, cansado da mulher e de uma parte dos 13 filhos, fugiu. Foi durante um inverno brutal. Ao deixar seu castelo em Isnaïa Poliana, Tolstoi teve uma bronquite. Queimando de febre, foi obrigado a descer do trem em uma estação, Astapovo. A notícia se espalhou. Como Tolstoi era a figura mais célebre do mundo, imediatamente afluiu a essa modesta estação uma horda de jornalistas, embaixadores, dignitários do czar. O chefe da estação cedeu o próprio quarto ao escritor. No pátio, a multidão cobrava notícias. A mulher de Tolstoi, Sophie, chegou e quis ver o marido. Tolstoi se recusou a vê-la. Fora, na neve, a multidão acompanhava a agonia do gênio. Tentava vislumbrar através dos vitrais embaçados pelo frio seus últimos instantes. Tolstoi, deitado, respirava penosamente. Com a ponta dos dedos, “escreveu” alguma coisa nos lençóis enrugados em que morria – seu último manuscrito, sua derradeira palavra antes de cruzar o portal do desconhecido. Era, porém, um manuscrito ilegível, inexistente, como a parte apagada de um palimpsesto. O que Tolstoi escreveu permanece oculto no nada.



(Estadão)


(Tradução de Roberto Muniz)



(Ilustração: Vanessa Bell: Lady with a Book, 1946; a pintora é irmã de Virginia Wolf)

sábado, 22 de fevereiro de 2025

NOME, de Marcelo Tapia


  

o Parthenon é um nome

intacto

de um objeto

em pedaços

o nome e a ideia

sobrepõem-se aos

cacos

do tempo

 

(Expirais; 2017)

 

(Ilustração: Philip Tsiaras - Parthenon)

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

FALA AOS MOÇOS, de Darcy Ribeiro

 


Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.

Tudo que diz respeito ao humano, suas vidas, suas criações, me importam supremamente. Dentro do humano, o povo brasileiro, seu destino é o que mais me mobiliza. Nele, a ínvia indianidade brasileira, que consegue milagrosamente sobreviver. Mas, sobretudo, a massa de gente nossa, ainda em fusão, esforçando-se para florescer numa nova civilização tropical, mestiça e alegre.

Acho que aprendi isso, ainda muito jovem, com os antigos comunistas.

Imbatíveis em sua predisposição generosa de se oferecerem à luta, por qualquer causa justa, sem mais querer que o bem geral. Estou certo de que a dignidade, e até o gozo de viver que tenho, me vêm dessa atitude básica de combatente de causas impessoais. Tanto, que me atrevo a recomendar duas coisas aos jovens de hoje.

Primeiro, que não respeitem seus pais, porque estão recebendo, como herança, um Brasil muito feio e injusto, por culpa deles. Minha também, é claro. Segundo, que não se deixem subornar por pequenas vantagens em carreirinhas burocráticas ou empresariais pelo dinheirinho ou dinheirão que poderiam render.

Mais vale ser um militante cruzado, acho eu.

Vejo os jovens de hoje esvaziados de juventude, enquanto flama, combatividade e indignação. Deserdados do sentimento juvenil de solidariedade humana e de patriotismo e de orgulho por nosso povo.

Incapacitados para assumir as carências dos brasileiros como defeitos próprios e sanáveis de todos nós. Ignorantes de que o atraso, a fome e a pobreza só existem e persistem, entre nós, porque são lucrativos para uma elite infecunda e cobiçosa de patrões medíocres e de políticos corruptos.

Afortunadamente, podemos nos orgulhar de muitos jovens brasileiros que são o sémen de nosso povo sofredor. Sem eles, nossa Pátria estaria perdida. É indispensável, porém, ganhar a totalidade da juventude brasileira para si mesma e para o Brasil. O dano maior que nos fez a ditadura militar, perseguindo, torturando e assassinando aos jovens mais ardentemente combativos da última geração, foi difundir o medo, promover a indiferença e a apatia. Aquilo de que o Brasil mais necessita, hoje, é de uma juventude iracunda, que se encha de indignação contra tanta dor e tanta miséria. Uma juventude que não abdique de sua missão política de cidadãos responsáveis pelo destino do Brasil, porque sua ausência é imediatamente ocupada pela canalha.

Talvez eu veja tanto desencantamento, onde o que há é apenas o normal das coisas ou o sentimento do mundo que corresponde às novas gerações. Talvez seja assim, mas isso me desgosta muito. Desgosta, principalmente, porque sinto no fundo do peito que é obra da ditadura militar tamanha juventude abúlica, despolitizada e desinteressada de qualquer coisa que não corresponda ao imediatismo de seus interesses pessoais. É por isso que não me canso de praguejar e xingar, exaltado, dizendo e repetindo obviedades.

Sobretudo, quando falo à gente jovem em pregações sobre valores que considero fundamentais e que não ressoam neles como eu quisera.

Primeiro de tudo, o sentimento profundo de que esse nosso paísão descomunal e esse povão multitudinário, que temos e somos, não nos caiu ao acaso, nem nos veio de graça. É fruto e produto de séculos de lutas e sacrifícios de incontáveis gerações. O território brasileiro é do tamanho que é graças à obsessão portuguesa de fronteira, impressa neles por um milênio de resistência, para não serem absorvidos pela Espanha, como ocorreu com todos os outros povos ibéricos. Desde os primeiros dias de nosso fazimento estava o lusitano preocupadíssimo em marcar posses, gastando nesse esforço gerações de índios e caboclos que nem podiam compreender que nos faziam.

Meu apego apaixonado pela unidade nacional começa pela preservação desse território como a base física em que nosso povo viverá seu destino. Encho-me da mais furiosa indignação contra quem quer que manifeste qualquer tendência separatista. Acho até que não poderia nunca ser um ditador, porque mandaria fuzilar quem revelasse tais pendores.

Outro valor supremo, e até sagrado, que quero comunicar à juventude, é o sentimento de responsabilidade pelo atroz processo de fazimento de nosso povo, que custou a vida e a felicidade de tantos milhões de índios caçados nas matas e de negros trazidos de África, para serem desgastados no moinho brasileiro de gastar gente. Nós viemos dos zés-ninguém gerados pela índia prenhada pelo invasor ou pela negra coberta pelo amo ou pelo feitor. Aqueles caboclos e mulatos, já não sendo índios nem africanos e não sendo também admitidos como europeus, caíram na ninguendade. A partir desta carência de identificação étnica é que plasmaram nossa identidade de brasileiros.

Fizeram-no um século depois, quando, através dos insurgentes mineiros, tomamos consciência de nós brasileiros como um povo em si, aspirando existir para si.

Surgimos, portanto, como um produto “inesperado e indesejado do empreendimento colonial que só pretendia ser uma feitoria. A empresa Brasil se destinava era a prover o açúcar de adoçar boca de europeu, o ouro de enricá-los e, depois, minerais e quantidades de gêneros de exportação.

Éramos, ainda somos, um proletariado externo aqui posto para servir ao mercado mundial. Criá-lo foi a façanha e a glória das classes dominantes brasileiras, cujo empenho maior consistia, e ainda consiste, em nos manter nessa condição.

Foi sobre esse Povo-Nação, já constituído e levado à independência com milhões de caboclos e mulatos, que se derramou a avalancha européia quando seus trabalhadores se tornaram descartáveis e disponíveis para a exportação como imigrantes. Os melhores deles se identificaram com o povo antigo da terra e até se tornaram indistinguíveis de nós, por sua mentalidade, língua, cultura e identificação nacional. Ajudaram substancialmente a modernizar o país e a fazê-lo progredir, gerando uma prosperidade ampliada, a inda que muito restrita, e que beneficiou principalmente aos recém-vindos.

É de lamentar, porém, que vez por outra surja, entre eles, uns idiotinhas alegando orgulhos de estrangeiridade. O fazem como se isso fosse um valor, mas principalmente porque estão predispostos seja a quebrar a unidade nacional em razão de eventuais vantagens regionais, seja a retornarem eles mesmos para outras terras, como fizeram seus avós. Afortunadamente, são uns poucos. Com um pito se acomodam e se comportam.

Compreendem, afinal, que não há nesse mundo glória maior que participar da criação, aqui, da civilização bela e justa que havemos de ser.

Tal como ocorreu com nossos antepassados, hoje, o Brasil é nossa tarefa, essencialmente de vocês, meus jovens. A história está a exigir de nós que enfrentemos alguns desafios cruciais que, em vão, tentamos superar há décadas. Primeiro que tudo, reformar nossa institucionalidade para criar aqui uma sociedade de economia nacional e socialmente responsável, a fim de alcançarmos uma prosperidade generalizada a todos os brasileiros. O caminho para isso é desmonopolizar a propriedade da terra, tirando-a das mãos de uma minoria estéril de latifundiários que não plantam nem deixam plantar. Eles são responsáveis pelo êxodo rural e o crescimento caótico de nossas cidades e, conseqüentemente, pela Fome do povo brasileiro. Fome absolutamente desnecessária, que só existe e só se amplia porque se mantém uma ordem social e um modelo econômico compostos para enriquecer os ricos, com total desprezo pelos direitos e necessidades do povo.

Simultaneamente, teremos de derrubar o corpo de interesses que nos quer manter atados, servilmente, ao mercado mundial, exigindo privilégios aos estrangeiros e a privatização das empresas que dão ser e substância à economia nacional, para manter o Brasil como o paraíso dos banqueiros. Não se trata de criar aqui nenhuma economia autárquica, mesmo porque nascemos no mercado mundial e só nele sobreviveremos.

Trata-se é de deixar de ser um reles proletariado externo para ser um povo que exista para si mesmo, ocupado primacialmente em promover sua própria felicidade.

Essas lutas só podem ser travadas com chance de vitória desmontando a ordem política e o sistema econômico vigentes. Seu objetivo expresso é preservar o latifúndio improdutivo e aprofundar a dependência externa para manter uma elite rural esfomeadora e enriquecer um empresariado urbano servil a interesses alheios. Todos eles estão contentes com o Brasil tal qual é. Se não anularmos seu poderio, eles farão do Brasil do futuro o país que corresponda aos interesses dos países que nos exploram.

Nestas singelas proposições se condensa para mim o que é substancial da ideologia política que faz dos brasileiros, brasileiros dignos. Tais são o zelo pela unidade nacional, o orgulho de nossa identidade de povo que se fez a si mesmo pela mestiçagem da carne e do espírito; a implantação de uma sociedade democrática onde imperem o direito e a justiça para todos; a democratização do acesso à terra para quem nela queira morar ou cultivar; a criação de uma economia industrial autônoma como o são todas as nações desenvolvidas.

Eis o que peço a cada jovem brasileiro: repense estas ideias, reavalie estes sentimentos e assuma, afinal, uma posição clara e agressiva no quadro político brasileiro.





(Carta: falas, reflexões, memórias. Brasília, 1994)


(Ilustração: Bob Dylan - The Brazil Series)

domingo, 16 de fevereiro de 2025

BELZEBUTH / BELZEBUTH, de Teresa Wilms Montt

 





Mi alma, celeste columna de humo, se eleva hacia

la bóveda azul.

Levantados en imploración mis brazos, forman la puerta

de alabastro de un templo.

Mis ojos extáticos, fijos en el misterio, son dos lámparas

de zafiro en cuyo fondo arde el amor divino.

Una sombra pasa eclipsando mi oración, es una sombra

de oro empenachado de llamas alocadas.

Sombra hermosa que sonríe oblicua, acariciando los sedosos

bucles de larga cabellera luminosa.

Es una sombra que mira con un mirar de abismo,

en cuyo borde se abren flores rojas de pecado.

Se llama Belzebuth, me lo ha susurrado en la cavidad

de la oreja, produciéndome calor y frío.

Se han helado mis labios.

Mi corazón se ha vuelto rojo de rubí y un ardor de fragua

me quema el pecho.

Belzebuth. Ha pasado Belzebuth, desviando mi oración

azul hacia la negrura aterciopelada de su alma rebelde.

Los pilares de mis brazos se han vuelto humanos, pierden

su forma vertical, extendiéndose con temblores de pasión.

Las lámparas de mis ojos destellan fulgores verdes encendidos

de amor, culpables y queriendo ofrecerse a Dios; siguen

ansiosos la sombra de oro envuelta en el torbellino refulgente

de fuego eterno.

Belzebuth, arcángel del mal, por qué turbar el alma

que se torna a Dios, el alma que había olvidado las fantásticas

bellezas del pecado original.

Belzebuth, mi novio, mi perdición...



Tradução de Sandra Santos:



A minha alma, celeste coluna de fumo, eleva-se até

à abóbada azul.

Levantados, implorando, os meus braços, formam a porta

de alabastro de um templo.

Os meus olhos extáticos, fixos no mistério, são duas lâmpadas

de safira em cujo fundo arde o amor divino.

Uma sombra passa eclipsando a minha oração, é uma sombra

de ouro ornado de chamas impetuosas.

Sombra formosa que sorri oblíqua, acariciando os sedosos

caracóis dos enormes cabelos luminosos.

É uma sombra que observa com um olhar de abismo,

em cuja margem se abrem as flores rubras de pecado.

Chama-se Belzebuth, sussurrou-mo na cavidade

da orelha, produzindo-me calor e frio.

Gelaram-me os lábios.

O meu coração converteu-se rubro de rubi e um ardor de frágua

me queima o peito.

Belzebuth. Passou Belzebuth, desviando a minha oração

azul até à negrura delicada da sua alma rebelde.

Os pilares de meus braços converteram-se humanos, perdem

a sua forma vertical, estendendo-se com tremores de paixão.

As lâmpadas de meus olhos reluzem fulgores verdes acesos

de amor, culpados e devotos a Deus; seguem

ansiosos a sombra de ouro envolta no torvelinho refulgente

de fogo eterno.

Belzebuth, arcanjo do mal, porquê turvar a alma

que se volta para Deus, a alma que havia esquecido as fantásticas

belezas do pecado original.

Belzebuth, o meu noivo, a minha perdição…



(Ilustração: William Blake: Paradise Lost - The Temptation andFall of Eve)

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

CIVILIZAÇÃO NA GRAÇA, de Luís de Sttau Monteiro


Não há nada como a gente ler os jornais para andar à moda e crescer depressa sim porque isto cá na Graça está velho como burro e quem manda é a velharia que ainda vive como se vivia no tempo do rei D. Afonso Henriques que era aquele que andava de espada na cintura para o caso de encontrar mouros na rua mas é claro que não se pode viver assim e que isto não é vida para ninguém e que se a gente não muda isto daqui a pouco os turistas deixam de vir à Graça e lá se vai o pilim que a gente ganha com o turismo quem fica a perder com isso é o sr. Lopes coitadinho que fuma cigarros feitos de beatas e que anda sempre atrás de estrangeiros para apanhar as beatas deles porque diz que elas têm um gostinho bestial que disfarça bestialmente o gosto dos cigarros pois eu resolvi ler os jornais para modernizar a Graça e fazer com que ela fique como Lisboa que é uma cidade grande e bestial tão boa como as que há lá fora mas que é portuguesa para conseguir isso fui até à paragem dos eléctricos que vão para a Baixa que é o sítio onde as pessoas deitam fora os jornais que compram para ler na viagem mas não julguem que é fácil apanhar lá jornais não é não senhor eu para arranjar alguns tive de andar à pancada com o filho da mulher das castanhas que está lá de serviço todo o dia a arranjar papel para a Mãe embrulhar as castanhas um jornal que dava muito gosto às castanhas era o Diário de Lisboa mas agora têm uma maneira nova de o fazer que não dá gosto nenhum palavra que é preciso não ter respeito nenhum pelos amadores de castanhas enfim fui até lá e consegui dois ou três jornais para ver como era a vida nos lugares mais bestiais de Lisboa a primeira notícia que vi foi uma duns que queimaram uma rapariga com pontas de cigarros por ela ter dois namorados e que se esses dos cigarros vierem até à Graça queimar as raparigas que têm dois namorados têm trabalho até ao fim da vida e nunca mais têm de dar os nomes no desemprego eu conheço uma que até tem quatro sim senhor quatro um que se chama António outro que se chama João outro que se chama Manuel e outro que é careca mas não sei o nome dele enfim como isso de queimar as pessoas que namoram muito fica bem às grandes cidades resolvi queimar um que anda cá chamado Alberto que não namora ninguém mas que é parvo esse Alberto é já a quarta vez que não me dá um rebuçado apesar de andar sempre com os bolsos cheios e por isso merece umas queimaduras e até merece ser afogado mas isso aqui na Graça é muito difícil porque o lago está à vista de toda a gente e se calhar é proibido afogar pessoas digo isto porque nesta terra é tudo proibido de maneira que os proibidores também são capazes de já ter proibido afogar pessoas enfim chamei a minha amiga Crista que é muito boa para estas coisas porque diz sempre que sim a tudo o que eu quero fazer expliquei-lhe o meu plano de queimar pessoas para modernizar a Graça e fomos ambas à caça de beatas o pior foi que encontrámos logo o sr. Lopes que começou aos berros a dizer que não tínhamos o direito de andar às beatas porque ele é que fumava não éramos nós e que os cigarros fazem cancros e mais isto e mais aquilo para o acalmar tivemos de lhe explicar que não queríamos as beatas para fumar que só as queríamos para queimar o Alberto e ele lá se calou a olhar para nós como se nunca tivesse visto ninguém e depois fugiu pela rua acima o taradinho que quem o visse até era capaz de julgar que éramos polícias mas isso é natural porque aqui a Graça anda muito atrasada e as pessoas ainda não sabem a diferença entre ser moderna e ser antiga enfim em menos de meia hora apanhámos uma data de beatas o sítio melhor é à porta da igreja porque como é proibido fumar lá dentro os homens que lá chegam a fumar têm de deitar os cigarros fora e alguns chegam a deitar fora os cigarros muito aproveitáveis o que é pena é irem tão poucos homens à igreja aqui na Graça é o que eu digo a Graça anda bestialmente atrasada em tudo até mesmo nestas coisas de religião que tanta falta fazem a quem precisa de beatas depois como o Alberto anda na escola primária sim porque apesar de já ter doze anos o palerma ainda não conseguiu tirar a quarta classe fomos até lá e escondemo-nos atrás do muro à espera de que acabassem as aulas e escondemos os cigarros daí a um bocado apareceu o Alberto e eu chamei-o e mostrei-lhe um rebuçado que tinha pedido emprestado à Crista a ver se ele vinha e ele como é burro que nem uma porta veio logo a correr e a Crista disse-lhe Abre a boca e fecha os olhos e o palerma obedeceu é claro que lhe meti logo na boca um cigarrinho aceso que foi uma limpeza e ele fechou a boca queimou-se mas é bem feito porque só um burro é que fecha a boca com um cigarro aceso lá dentro e desatou aos berros que nem um doido começámos a fazer-lhe festas e a perguntar o que é que ele tinha e se não tinha gostava dos rebuçados de fogo sim porque se há rebuçados de licor porque é que não há-de haver rebuçados de fogo? e dissemos-lhe que o melhor era ele sentar-se até aquilo lhe passar e com isto e com aquilo levámo-lo até ao degrau duma porta eu pus-lhe outra beata debaixo do sim senhor de maneira que quando ele se sentou deu outro berro e outro salto sem razão nenhuma que essa beata até era americana e os cigarros americanos são bestialmente chiques e levou a mão ao sim senhor a ver o que é que tinha e enfiei-lhe outro cigarro na mão e ele sem saber o que era apertou-a e deu um berro tão grande que houve quem o ouvisse é claro que as pessoas que o ouviram vieram logo a correr ver o que estava a acontecer sim porque aqui na Graça as pessoas são bestialmente bisbilhoteiras e querem saber tudo o que se passa nessa altura eu e a Crista resolvemos ir-nos embora por a Graça já estar suficientemente civilizada para um dia e fomos mesmo no meio disto tudo o Alberto sofreu um bocado lá isso é verdade mas para haver civilização alguém tem de sofrer e antes ele que eu.




(A Mosca, 23 Janeiro 1972; Redacções da Guidinha, 2003)



(Ilustração: Bairro da Graça: Lisboa, Portugal; foto da internet, autoria não identificada)

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

DE PROFUNDIS / DE PROFUNDIS, de Georg Trakl

 


 

Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt.

Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht.

Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist.

Wie traurig dieser Abend.

 

Am Weiler vorbei

Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein.

Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung,

Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams.

 

Bei der Heimkehr

Fanden die Hirten den süßen Leib

Verwest im Dornenbusch.

 

Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern.

Gottes Schweigen

Trank ich aus dem Brunnen des Hains.

 

Auf meine Stirne tritt kaltes Metall

Spinnen suchen mein Herz.

Es ist ein Licht, das in meinem Mund erlöscht.

 

Nachts fand ich mich auf einer Heide,

Starrend von Unrat und Staub der Sterne.

Im Haselgebüsch

Klangen wieder kristallne Engel.

 

(1912)

 

Tradução de Cláudia Cavalcanti:

 

Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.

Há uma árvore marrom, ali solitária.

Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.

Como é triste o entardecer

 

Passando pela aldeia

A terra órfã recolhe ainda raras espigas.

Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,

E seu colo espera o noivo divino.

 

Na volta

Os pastores acharam o doce corpo

Apodrecido no espinheiro.

 

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.

O silêncio de Deus

Bebi na fonte do bosque.

 

Na minha testa pisa metal frio

Aranhas procuram meu coração.

Há uma luz, que se apaga na minha boca.

 

À noite encontrei-me num pântano,

Pleno de lixo e pó das estrelas.

Na avelãzeira

Soaram de novo anjos cristalinos.

 

(1912)

 

 

(De profundis e outros poemas)

 

(Ilustração: Félix Valloton - Noite no Loire, 1923)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O JARDIM DE CIMENTO, de Ian McEwan


Não matei meu pai, mas às vezes tinha a impressão de que o havia ajudado a ir desta para a melhor. E, não fosse por ter coincidido com um evento marcante em minha evolução física, sua morte pareceu insignificante quando comparada ao que veio depois. Minhas irmãs e eu conversamos sobre ele na semana seguinte à sua morte, e Sue sem dúvida chorou quando os enfermeiros da ambulância o levaram envolto num cobertor de um vermelho muito vivo. Ele era um homem de saúde precária, irascível e obsessivo, com mãos e rosto amarelados. Só estou contando a historinha da morte dele para explicar como aconteceu de minhas irmãs e eu termos uma quantidade tão grande de cimento à nossa disposição. No começo do verão, quando eu tinha catorze anos, um caminhão parou diante de nossa casa. Eu estava sentado no degrau da frente relendo uma revista em quadrinhos. O motorista e outro homem se aproximaram. Ambos estavam cobertos de um pó fino e esbranquiçado que lhes dava uma aparência fantasmagórica. Assoviavam com estridência duas melodias totalmente distintas. Fiquei de pé e escondi a revista. Gostaria de estar lendo a página de turfe do jornal de meu pai ou os resultados do futebol.

"Cimento?", disse um deles. Enganchei os polegares nos bolsos da calça, transferi todo o peso do corpo para uma perna e apertei um pouco os olhos. Eu queria dizer algo curto e preciso, mas não tinha certeza de haver entendido bem a pergunta. Demorei demais, porque o sujeito que havia falado ergueu os olhos para o céu e, plantando as mãos nas cadeiras, concentrou sua atenção na porta da frente. Ela se abriu e meu pai saiu, mordendo o cachimbo e aparando uma prancheta contra o quadril.

"Cimento", o homem disse de novo, sua voz agora infletindo para baixo. Meu pai concordou com a cabeça. Enfiei a revista dobrada no bolso de trás da calça e segui os três até o caminhão. Meu pai ficou na ponta dos pés a fim de olhar para dentro, tirou o cachimbo da boca e sacudiu outra vez a cabeça num gesto afirmativo. O homem que ainda não havia falado golpeou violentamente com a mão um pino de aço que, ao se desprender, abriu a lateral com estrondo. Empilhados dois a dois, bem juntinhos, os sacos de cimento ocupavam todo o chão da caçamba. Meu pai os contou, olhou para a prancheta e disse: "Quinze". Os dois homens grunhiram. Eu gostava desse tipo de conversa. Também disse a mim mesmo: "Quinze". Cada um dos homens pôs um saco nas costas e voltamos pelo caminho em direção à casa, eu agora à frente, seguido por meu pai. Contornando a casa, ele apontou com o tubo molhado do cachimbo para a abertura por onde o carvão era entregue. Os homens levantaram com esforço os sacos dos ombros e os jogaram no porão, voltando ao caminhão para apanhar outros. Meu pai fez uma anotação na prancheta com um lápis preso a ela por um barbante. Ficou se balançando sobre os pés enquanto esperava. Encostei-me na cerca. Eu não sabia para que iria servir o cimento, mas não queria ser excluído daquele intenso trabalho coletivo caso demonstrasse minha ignorância. Também contei os sacos e, quando tudo acabou, me postei junto ao cotovelo de meu pai enquanto ele assinava o recibo de entrega. Então, sem dizer uma única palavra, ele voltou para dentro de casa.

À noite meus pais brigaram por causa dos sacos de cimento. Minha mãe, que era uma pessoa pacata, estava furiosa. Queria que meu pai devolvesse tudo. Tínhamos acabado de jantar. Enquanto mamãe falava, meu pai raspava com o canivete a crosta preta do fornilho do cachimbo, deixando-a cair sobre o prato de comida que mal tocara. Ele sabia como usar o cachimbo contra ela. Ela estava dizendo como o dinheiro andava curto e que Tom em breve precisaria de roupas novas para começar a frequentar a escola. Ele recolocou o cachimbo entre os dentes como se fosse parte integral de sua anatomia e a interrompeu para dizer que a devolução dos sacos estava "fora de questão" e que chegava de conversa, lendo visto com meus próprios olhos o caminhão, os pesados sacos e os homens que os haviam trazido, tive a impressão de que papai estava certo. Mas como ele pareceu ridículo e arrogante ao tirar o cachimbo da boca e, segurando-o pelo fornilho, apontar o tubo negro na direção da minha mãe! Ela ficou ainda mais irritada, a voz embargada pela exasperação. Julie, Sue e eu escapamos para o quarto de Julio no andar de cima e fechamos a porta. Através do assoalho nos chegavam as variações no tom de voz de minha mãe, mas não conseguíamos distinguir as palavras.

Sue deitou-se na cama, sufocando uma risadinha com os nós dos dedos enfiados na boca, enquanto Julie empurrava uma cadeira contra a porta. Juntos, num instante tiramos as roupas de Sue, nossas mãos se tocando ao puxarmos para baixo suas calcinhas. Sue era bem magricela. A pele parecia grudada às costelas e a dura crista muscular das nádegas assemelhava-se curiosamente a suas escápulas. Uma tênue pelugem alourada crescia entre suas coxas. Na brincadeira, Julie e eu éramos cientistas examinando um espécime extraterrestre. De um lado e do outro do corpo nu, trocávamos breves comentários com sotaque alemão. Lá de baixo vinha o zumbido cansado e insistente da voz de nossa mãe. As maçãs protuberantes do rosto de Julie tornavam seus olhos mais fundos e lhe davam o ar de um raro animal selvagem. Sob a luz elétrica, os olhos eram negros e grandes. A linha suave de sua boca só era interrompida por dois dentes frontais, e ela precisava fazer beicinho para ocultar o sorriso. Eu morria de vontade de examinar minha irmã mais velha, mas a brincadeira não permitia isso.

"Porr favorr." Pusemos Sue de lado e depois de bruços. Passamos as unhas por suas costas e coxas. Com uma lanterna, olhamos dentro da sua boca e entre as pernas, lá encontrando a florzinha feita de pele.

"Que lhe parrece isto, Herr Doutor?" Julie acariciou a flor com um dedo molhado, e um pequeno tremor percorreu a espinha ossuda de Sue. Observei atentamente. Molhei meu dedo e o fiz deslizar por cima do dedo de Julie. "Nada de sério", ela disse finalmente, fechando a fenda com o indicador e o polegar. "Mas vamos observarr como vai evoluirr, ja?" Sue implorou que continuássemos. Julie e eu nos entreolhamos com ar de sabidos, sem saber nada.

"É a vez de Julie", eu disse.

"Não", disse ela como sempre. "Agora é você." Ainda deitada de costas, Sue nos implorou de novo. Atravessei o quarto, peguei sua saia e joguei para ela.

"Fora de questão", eu disse através de um cachimbo imaginário. "Fim de conversa." Tranquei-me no banheiro e sentei na borda da banheira com as calças caídas em volta dos tornozelos. Pensei nos dedos morenos de Julie entre as pernas de Sue enquanto fazia chegar minha breve e seca pontada de prazer. Continuei curvado sobre as pernas depois que o espasmo passou e me dei conta de que, fazia tempo, as vozes se tinham calado no andar de baixo.

Na manhã seguinte, fui ao porão com Tom, meu irmão mais novo. Era uma área grande, dividida em vários aposentos sem propósito definido. Tom grudou-se em mim enquanto descíamos os degraus de pedra. Ele ouvira falar dos sacos de cimento e agora queria vê-los. A entrada de carvão dava no aposento mais espaçoso, e os sacos estavam espalhados de qualquer maneira por cima do carvão que havia sobrado do inverno anterior. Encostado numa das paredes havia um maciço baú de folha de flandres, que tinha algo a ver com a curta passagem de meu pai pelo exército e fora usado durante algum tempo para guardar o coque separado do carvão. Tom queria ver o que havia dentro dele e por isso ergui a tampa. O interior estava vazio e enegrecido, tão escuro na luz empoeirada do porão que não se via o fundo. Acreditando que estava diante de um buraco profundo, Tom agarrou a beira do baú e gritou para dentro, esperando ouvir o eco. Como nada aconteceu, pediu para ver os outros aposentos. Levei-o ao que ficava mais próximo da escada. A porta estava presa precariamente às dobradiças e, quando a empurrei, soltou-se por completo. Tom riu e foi por fim agraciado com um eco vindo do aposento de que havíamos acabado de sair. Onde estávamos, acumulavam-se caixas de papelão com roupas emboloradas que eu nunca tinha visto. Tom descobriu alguns de seus antigos brinquedos. Desdenhosamente, virou-os de borco com o pé e disse que eram coisa de bebezinhos. Empilhado atrás da porta havia um velho berço de bronze em que todos nós havíamos dormido em algum momento. Como Tom queria que eu o armasse, disse-lhe que aquilo também era coisa de bebezinhos.

Ao pé da escada nos encontramos com meu pai, que descia. Queria que eu o ajudasse com os sacos. Fomos atrás dele de volta para o aposento maior. Tom tinha medo do pai e ficou bem atrás de mim. Julie me havia dito recentemente que, como papai era agora um semi-inválido, ele teria de competir com o Tom pelos cuidados da mamãe. Tratava-se de uma ideia extraordinária, e sobre ela refleti um bom tempo. Tão simples e tão estranho: um garotinho e um adulto competindo. Mais tarde, perguntei a Julie quem venceria e, sem hesitar, ela respondeu: "Tom, obviamente, e papai vai descontar nele".

E de fato ele era muito rigoroso com Tom, sempre o repreendendo. Usava mamãe contra ele assim como usava o cachimbo contra ela, "Não fale desse jeito com sua mãe", ou "Sente-se direito quando sua mãe estiver falando com você". Ela aturava tudo isso em silêncio. Se papai se afastasse, ela dava um breve sorriso para Tom ou passava os dedos por seu cabelo. Tom agora se postara longe da porta, observando enquanto nós dois arrastávamos cada saco pelo chão e os arrumávamos cuidadosamente em duas fileiras ao longo da parede. Devido a seu ataque cardíaco, papai estava proibido de fazer esse tipo de trabalho, mas me certifiquei de que ele pegava tanto peso quanto eu.

Quando nos curvávamos para pegar as extremidades do saco, eu sentia que ele se demorava, esperando que eu fizesse mais força. Mas eu dizia "Um, dois, três..." e só começava a me esforçar de verdade quando via seu braço retesado. Eu só concordaria em fazer mais se ele me pedisse com todas as letras.

Ao terminarmos, demos um passo para trás e, como fazem todos os trabalhadores, contemplamos o serviço. Papai apoiou-se com uma das mãos na parede, respirando com dificuldade. De propósito, respirei tão levemente quanto pude através do nariz, embora isso me deixasse algo tonto. Mantive as mãos nos quadris num gesto blasé. "Para que você quer tudo isso?", senti-me então no direito de perguntar.

Entre uma e outra respiração ofegante, ele conseguiu dizer: "Para... o... jardim". Aguardei maiores esclarecimentos, mas, após uma pausa, ele se voltou para ir embora. Na porta, pegou o braço de Tom. "Olhe como estão suas mãos", reclamou, sem se dar conta da sujeira que a mão dele estava fazendo na camisa do menino. "Suba, trate de ir Subindo." Piquei para trás um momento e comecei a apagar as luzes. Ao ouvir os cliques, meu pai parou ao pé da escada e, em tom severo, me mandou apagar todas as luzes antes de subir.

"Já estava apagando", disse com irritação. Mas ele tossia alto ao galgar os degraus da escada.

Ele não havia cultivado seu jardim, e sim o construído segundo planos que certas noites abria sobre a mesa da cozinha enquanto nós espiávamos por cima de seus ombros. Caminhos estreitos de lajes faziam curvas intrincadas para visitar canteiros de rosas que ficavam a poucos metros de distância. Uma trilha subia em espiral um morrinho de pedras como se fosse uma estrada alpina. Certo dia, ele se irritou ao ver Tom subir em linha reta o morrinho usando a trilha como degraus de uma pequena escada.

"Suba direito", ele gritou da janela da cozinha. No topo de uma pilha de pedras, que não media mais de um metro de altura, havia um gramado do tamanho de uma mesa de jogo em volta do qual havia espaço para uma única fileira de cravos-de-defunto. Só ele chamava aquilo de jardim suspenso. Em seu centro erguia-se uma estátua de plástico de Pã dançando. Espalhavam--se pelo jardim degraus surpreendentes, alguns subindo, outros descendo. Havia também um laguinho com fundo de plástico azul. Certa vez ele trouxe para casa num saquinho transparente dois peixinhos dourados, comidos pelos pássaros no mesmo dia. Os caminhos eram tão estreitos que se corria o risco de perder o equilíbrio e cair nos canteiros de flores. Ele escolhia as flores mais simples e simétricas. Preferia as tulipas, que plantava com grande espaçamento. Não gostava de arbustos, heras ou roseiras. Não admitia nada que se entrelaçasse. Todas as casas de ambos os lados da nossa tinham sido demolidas e, no verão, os terrenos baldios se cobriam de ervas daninhas e suas flores. Antes de sofrer o primeiro ataque cardíaco, ele tencionava construir um alto muro em torno de seu mundinho especial.

Havia algumas piadas recorrentes na família, lançadas e perpetuadas por papai. Sobre Sue, por ela ter sobrancelhas e cílios quase invisíveis; sobre Julie, por sua ambição de ser uma atleta famosa; sobre Tom, por fazer pipi às vezes na cama; sobre minha mãe, por ser ruim em aritmética; sobre mim, por causa das espinhas que começaram a pipocar nessa época. Certa noite, no jantar, eu lhe passei um prato e ele disse que não queria que sua comida chegasse perto demais do meu rosto. A risada de todos foi instantânea e ritual. Como as piadinhas desse tipo eram controladas por meu pai, nenhuma era dirigida contra ele. Naquela noite, Julie e eu nos trancamos no quarto dela e nos dedicamos a preencher páginas e páginas com piadas grosseiras e já bem batidas. Tudo que nos ocorria parecia engraçado. Rolamos da cama para o chão, com dor no peito de tanto rir, urrando de alegria. Do lado de fora, Tom e Sue esmurravam a porta pedindo para entrar. Chegamos à conclusão de que nossas melhores piadas eram do tipo que envolvia uma pergunta e uma resposta. Muitas faziam referência à prisão de ventre do papai. Mas sabíamos qual era o verdadeiro alvo. Selecionamos a melhor e, após aperfeiçoá-la e treinar sua execução, esperamos um ou dois dias. Então, no jantar, ele se saiu com outra caçoada sobre minhas espinhas. Aguardamos até que Tom e Sue parassem de rir. Meu coração batia tão forte que era difícil falar com naturalidade, num tom de conversa, como havíamos ensaiado. "Vi uma coisa hoje no jardim que me chocou", eu disse.

"É mesmo?", perguntou Julie.

"O que foi?"

"Uma flor."

Ninguém pareceu nos ter ouvido. Tom falava consigo próprio, mamãe pôs um pouco de leite na xícara e papai continuou a passar manteiga cuidadosamente numa fatia de pão. Quando a manteiga ia além da beirada do pão, ele a trazia de volta com um rápido movimento da faca. Pensei que talvez devêssemos repetir tudo em voz mais alta e olhei para Julie por cima da mesa. Ela evitou meu olhar. Papai acabou seu pão e foi embora. "Isso foi totalmente desnecessário", disse mamãe.

"O que é que foi desnecessário?" Mas ela não me disse mais nada. Não se faziam piadas com meu pai porque elas não eram engraçadas. Ele ficava amuado. Sentime culpado no momento em que desejava desesperadamente me sentir exultante. Tentei convencer Julie de nossa vitória para que ela, por sua vez, me convencesse disso. Naquela noite deitamos Sue entre nós, mas a brincadeira não nos deu o menor prazer. Sue ficou entediada e se foi. Julie era favorável a que pedíssemos desculpas, que encontrássemos alguma forma de agradá-lo. Eu não conseguia me ver fazendo isso, porém fiquei muito aliviado quando, dois dias mais tarde, ele falou comigo pela primeira vez. Depois disso, o jardim não foi mencionado por um longo tempo e, quando ele cobria a mesa da cozinha com seus planos, ninguém mais o acompanhava. Após o primeiro ataque ele nunca mais trabalhou no jardim. As ervas começaram a surgir nas fissuras das lajes, parte do morrinho de pedras desabou, o laguinho secou. O Pã dançarino tombou de lado, partiu-se em dois e nada foi dito. A possibilidade de que Julie e eu fôssemos responsáveis pela desintegração me enchia de horror e alegria.

Pouco depois do cimento chegou a areia. Um montículo amarelo-claro ergueu-se num canto do jardim da frente. Ficamos sabendo, provavelmente por minha mãe, que a ideia era circundar a casa com uma superfície de concreto. Meu pai confirmou isso certa noite.

"Vai ficar mais limpo", ele disse. "A partir de agora não vou poder cuidar do jardim" (tocou no lado esquerdo do peito com o cachimbo) "e isso vai impedir que os assoalhos de sua mãe fiquem sujos de lama." Ele estava tão convencido da sensatez de sua idéia que, mais por constrangimento que por medo, ninguém questionou o projeto. Na verdade, a possibilidade de contar com uma vasta área de concreto em volta da casa me atraía. Seria um bom lugar para jogar futebol. Imaginei helicópteros descendo ali. Acima de tudo, misturar o concreto para cobrir o jardim depois de nivelado era uma transgressão fascinante. Minha excitação cresceu quando papai falou em alugar uma betoneira.

Mamãe deve tê-lo dissuadido disso, porque começamos a trabalhar num sábado de junho com duas pás. Abrimos no porão um dos sacos e enchemos um balde de zinco com o pó fino e cinza claro. Meu pai então saiu para que eu lhe passasse o balde pela abertura do carvão. Ao se abaixar, sua silhueta ficou recortada contra o céu esbranquiçado e sem nuvens. Ele despejou o cimento no caminho e me devolveu o balde para que eu o reenchesse. Quando já tínhamos a quantidade suficiente de cimento, enchi de areia um carrinho de mão na frente da casa e a juntei ao montinho. Ele havia decidido fazer um caminho cimentado ao lado da casa para facilitar o transporte de areia da frente para os fundos. Exceto pelas curtas e infrequentes instruções que me passou, não trocamos uma só palavra. Fiquei satisfeito em ver que não havia necessidade de nos falarmos porque sabíamos exatamente o que fazer e o que o outro estava pensando. Pela primeira vez me senti à vontade junto dele. Enquanto fui buscar água, ele ajeitou o montinho de cimento e areia, fazendo um buraco no topo. Fiquei encarregado de preparar a mistura enquanto ele ia acrescentando água. Mostrou-me como apoiar o antebraço na coxa para ganhar mais potência no movimento. Fingi que já sabia. Quando a mistura ficou consistente, a espalhamos no chão. Papai então se pôs de joelhos e alisou a superfície com uma pequena tábua. Fiquei de pé atrás dele, apoiado na pá. Ele levantou-se e se encostou na cerca, fechando os olhos. Quando os abriu, piscou como se surpreso de ainda estar lá, e disse: "Bem, então vamos em frente". Repetimos a operação, o balde transitando pela abertura do carvão, o carrinho de mão, a mistura espalhada pelo chão e alisada. Na quarta vez, a monotonia e meus desejos contumazes começaram a me tornar mais lento. Bocejava com frequência e sentia as pernas fracas atrás dos joelhos. No porão, enfiei as mãos nos bolsos da calça. Onde estariam minhas irmãs? Por que não estavam ajudando? Entreguei um balde cheio a meu pai e então, dirigindo-me ao contorno de seu corpo, disse que precisava ir ao banheiro. Ele soltou um suspiro ao mesmo tempo que estalava a língua contra o céu da boca. No andar de cima, sabendo de sua impaciência, me masturbei rapidamente. Como de hábito, tinha diante de mim a imagem da mão de Julie entre as pernas de Sue. Lá de baixo chegava o som da pá raspando no chão. Papai estava misturando o cimento. E então aconteceu, de repente a coisa espirrou no meu pulso e, embora eu soubesse daquilo por causa das piadas e dos livros de biologia na escola, e viesse aguardando que acontecesse havia muitos meses na esperança de não ser diferente dos outros, naquele momento me senti surpreso e emocionado. Contra os cabelinhos macios, junto a uma mancha acinzentada de concreto, brilhava uma pequena quantidade de líquido, não leitoso como eu havia imaginado, mas incolor. Dei uma lambida e não senti gosto de nada. Fiquei olhando um tempão bem de perto, procurando ver aqueles trocinhos com as longas caudas ondulantes. Enquanto eu olhava, o líquido secou e se transformou numa crosta brilhante, mas quase invisível, que se rompeu quando dobrei o pulso. Decidi não lavar o lugar.

Lembrei-me de que papai estava esperando e desci correndo a escada. Minha mãe, Julie e Sue conversavam de pé quando passei por elas na cozinha. Não pareceram ter notado minha presença. Papai estava deitado de bruços no chão, a cabeça descansando sobre o concreto recém-espalhado. Segurava ainda a tábua de alisar. Aproximei-me devagar, sabendo que teria de correr para pedir ajuda. Durante vários segundos não consegui me afastar. Fiquei olhando, absorto como estivera alguns minutos antes. Uma leve aragem agitou uma ponta solta de sua camisa. Logo depois houve muita atividade e barulho. Veio uma ambulância e mamãe seguiu com meu pai, que foi envolto num cobertor vermelho e posto numa maca. Na sala de visitas, Sue chorava e Julie a consolava. O rádio continuava a tocar na cozinha. Depois que a ambulância partiu, fui lá fora ver nosso caminho. Minha cabeça estava totalmente vazia de pensamentos quando peguei a tábua e cuidadosamente alisei a marca que ele havia deixado no concreto fresco e macio.



(O jardim de cimento; tradução de Jorio Dauster)



(Ilustração: Amedeo Modigliani, 1884 -1920: cypress houses)