domingo, 30 de junho de 2024

TEMPO DE PAGAR O FORO À IGREJA, de Itamar Vieira Junior


 

Março era um mês de aflição para as famílias da Tapera. Era o tempo de pagar o foro à Igreja. A cobrança não era feita pelos monges, mas por vizinhos com posição privilegiada na comunidade. Os homens chegavam às casas com um carnê em branco, e o preenchiam com a caligrafia precária de quem era pouco escolarizado. Esse recibo com o carimbo de pago se tornava um documento valioso guardado pelas famílias. Tinha a importância de uma escritura, ainda que não tivesse de fato valor algum.

Em nossa casa não era diferente. Era momento de tensão, em especial para Luzia. Observávamos afastados o debate acalorado entre nosso pai e o cobrador. O cobrador — gente da própria Tapera com prestígio junto do abade por cerrar fileiras na igreja, como Matias, Almir, Mãozinha e Chico da Colmeia — vinha seguidas vezes à nossa porta à procura de meu pai. Queria saber se ele tinha deixado o pagamento do foro. Luzia gaguejava, inventava uma história para omitir a resistência do velho contra a cobrança. Mentia que ele havia esquecido, mesmo diante da contestação do cobrador. “Todo ano é a mesma coisa. Mundinho é sempre o último a pagar”, ouvíamos, “um dos poucos que me faz voltar muitas vezes.” A celeuma se arrastava durante vários dias. O cobrador retornava para então encontrar meu pai picando fumo ou amolando o facão para capinar a roça, em geral, aos domingos, quando ele saía mais tarde para trabalhar, permanecendo na tarefa de terra debaixo do sol até o meio-dia. A tensão escalava ainda mais, porque meu pai não se justificava como Luzia. O cobrador começava a dizer a que tinha vindo e meu pai escutava sem olhar para o vizinho. Eu e Luzia ficávamos em algum canto da casa tentando ouvir o que diziam, os sons de suas vozes competindo com a batida dos nossos corações acelerados.

Primeiro, meu pai dizia que não tinha como pagar, o que decerto era verdade. A produção era pequena e supria a casa na maior parte das vezes para livrá-la da fome. Depois as sobras eram embarcadas nos saveiros para serem vendidas nas feiras da cidade. Sem disfarçar a indignação, dizia que a Igreja era rica. Seus avós haviam nascido naquelas terras antes de a Ordem chegar — essa confusão entre tempo e história sempre embaralhava a todos. Pelo que sabia, nunca precisaram pagar imposto algum. “A velha dona dessas terras não exigia”, retrucava. Em seguida, mandava o homem passar um dia qualquer, sempre numa data distante, enquanto amolava o facão mais gasto do que o do cobrador, guardado na bainha em sua cintura. O homem ia embora, mas não sem antes ameaçar de cercar a roça para impedir o trabalho, caso o foro não fosse pago. Meu pai respondia sem medo: “Tá pra nascer o homem que vai me impedir de trabalhar na terra”.

A arrecadação se arrastava por semanas e a aflição para o pagamento não era apenas da nossa família, mesmo que o cobrador quisesse nos fazer acreditar no contrário. Na Tapera, não se falava em outra coisa: dos orgulhosos, que pagaram sacrificando muitas vezes o bem-estar da família, aos desassistidos, que não tinham como quitar de imediato a cobrança. Os pescadores complementavam o sustento com suas pequenas lavouras, mas como a atividade principal era a venda dos pescados, conseguiam pagar no devido tempo. As casas das viúvas e das poucas mulheres solteiras eram as que mais atrasavam. Nos dias de cobrança, o povo da Tapera se gabava, vaidoso, dos que podiam pagar sem maiores sacrifícios, diferente dos que faziam das tripas coração. Ano após ano Luzia retirou do colchão, depois de descosturar uma pequena abertura, o dinheiro minguado que ganhava da própria igreja como lavadeira. Era a quantia dada ao cobrador, para pôr fim à cobrança e termos paz. O recibo, às vezes com algumas cédulas de troco, era guardado dentro do colchão de palha, porque ela sabia que se Mundinho visse o pagamento a casa viria abaixo por ter contrariado sua autoridade. Conhecíamos bem nosso pai e sabíamos que não recusaria um conflito para exibir sua valentia. A certeza de que o respeitavam pela rudeza era tanta que considerava a não continuidade da cobrança uma vitória. Acreditava dever-se ao respeito que lhe restava.

Lá pela quinta ou sexta visita do cobrador, já adentrando abril, era certo que Luzia pagaria. Ainda ouviria de qualquer um deles que a Igreja era muito generosa em não cobrar juros. Ela pagava sem ressalvas, como se nosso pai a tivesse incumbido da tarefa. Eu queria ver onde guardava tudo, mas Luzia me enxotava quando a seguia até o quarto: “Ande, menino, corre, o que veio fazer atrás de mim?”. Apenas eu sabia que ela pagava com o dinheiro do trabalho. Apenas eu via o braço de Luzia estendido no ar depois de dar o dinheiro até que o recibo estivesse na mão. Só eu sabia que ela depositaria o recibo e o troco no colchão, se certificando antes se estava sendo observada, temerosa do nosso pai. À espreita, a observava alinhavar o tecido recobrindo as palhas, compenetrada em sua tarefa de salvar a terra de trabalho da família.

Luzia foi nossa valência durante os anos; sem cobradores à porta, nosso pai se ocupava do trabalho e sua inquietação parecia encontrar o sossego nunca sentido por seus pais e avós, contrariando o que ele mesmo contava. Não sei se era mentira deliberada ou se meu pai acreditava piamente na farsa de uma paz nas terras da Tapera. O fato era que ele prosseguia com sua vida, caminhava de cabeça erguida, a enxada no ombro e o facão na cintura, como se não tivesse qualquer dívida. Trabalhava o pedacinho de chão escolhido a cada chuva, sempre próximo à última fração que, por fim, entrava em pousio. Trabalhava com esmero e o corpo agitado deixava a roupa molhada de suor, da mesma maneira que o orvalho brotava na terra vermelha dos canaviais do passado e do presente, úmida o bastante para fazer nascer qualquer semente que o chão encontrasse.

Mas nem todos conseguiam pagar. Acumulando dívidas ano após ano, algumas famílias iam sucumbindo ao destino de serem excluídas do convívio de sua gente. Nos sermões proferidos nas missas, e mesmo diante do orgulho dos bons pagadores, se enchiam de uma vergonha que tornava a convivência cada vez mais difícil. Por fim, quando não morriam de velhice ou de doença, deixavam a Tapera pelo rio, nos saveiros, ou pela estrada, nos velhos ônibus, como um dia aconteceria comigo.



(Salvar o fogo)



(Ilustração : Pieter Brueghel theYounger - The taxcollectors office)

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