sábado, 15 de junho de 2024

DENTRO DA NOITE VELOZ, de Ferreira Gullar

 






I

Na quebrada do Yuro

eram 13,30 horas

(em São Paulo era mais tarde;

em Paris anoitecera;

na Ásia o sono era seda)

Na quebrada do rio Yuro

a claridade da hora

mostrava seu fundo escuro:

as águas limpas batiam

sem passado e sem futuro.

Estalo de mato, pio

de ave, brisa nas folhas

era silêncio o barulho

a paisagem

(que se move)

está imóvel, se move

dentro de si

(igual que uma máquina de lavar

lavando sob o céu boliviano, a paisagem

com suas polias e correntes de ar)

Na quebrada do Yuro

não era hora nenhuma

só pedras e águas

II

Não era hora nenhuma

até que um tiro

explode em pássaros

e animais até que passos

vozes na água rosto nas folhas

peito ofegando a clorofila

penetra o sangue humano

e a história se move a paisagem

como um trem começa a andar

Na quebrada do Yuro eram 13,30 horas

III

Ernesto Che Guevara

teu fim está perto

não basta estar certo

para vencer a batalha

Ernesto Che Guevara

Entrega-te à prisão

não basta ter razão

pra não morrer de bala

Ernesto Che Guevara

não estejas iludido

a bala entra em teu corpo

como em qualquer bandido

Ernesto Che Guevara

por que lutas ainda?

a batalha está finda

antes que o dia acabe

Ernesto Che Guevara

é chegada a tua hora

e o povo ignora

se por ele lutavas

IV

Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora

é mais intenso, o inimigo avança

e fecha o cerco.

Os guerrilheiros

em pequenos grupos divididos

aguentam a luta, protegem a retirada

dos companheiros feridos.

No alto,

grandes massas de nuvens se deslocam lentamente

sobrevoando países

em direção ao Pacífico, de cabeleira azul.

Uma greve em Santiago. Chove

na Jamaica. Em Buenos Aires há sol

nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.

Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima

de Montevidéu. À beira da estrada

muge um boi da Swift. A Bolsa

no Rio fecha em alta ou baixa.

Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato

castigam o avanço dos rangers .

Urbano tomba, Eustáquio

Che Guevara sustenta

o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe

o joelho, no espanto

os companheiros voltam

para apanhá-lo. É tarde. Fogem.

A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.

V

Não está morto, só ferido

Num helicóptero ianque

é levado para Higuera

onde a morte o espera

Não morrerá das feridas

ganhas no combate

mas de mão assassina

que o abate

Não morrerá das feridas

ganhas a céu aberto

mas de um golpe escondido

ao nascer do dia

Assim o levam pra morte

(sujo de terra e de sangue)

subjugado no bojo

de um helicóptero ianque

É seu último voo

sobre a América Latina

sob o fulgir das estrelas

que nada sabem dos homens

que nada sabem do sonho,

da esperança, da alegria,

da luta surda do homem

pela flor da cada dia

É seu último voo

sobre a choupana de homens

que não sabem o que se passa

naquela noite de outubro

quem passa sobre seu teto

dentro daquele barulho

quem é levado pra morte

naquela noite noturna

VI

A noite é mais veloz nos trópicos

(com seus na vertigem das folhas na explosão

monturos) das águas sujas

surdas

nos pantanais

é mais veloz sob a pele da treva, na

conspiração de azuis

e vermelhos pulsando

como vaginas frutas bocas

vegetais (confundidos com sonhos)

ou um ramo florido feito um relâmpago

parado sobre uma cisterna d´água

no escuro

É mais funda

a noite no sono

do homem na sua carne

de coca e de fome

e dentro do pote uma caneca

de lata velha de ervilha

da Armour Company

A noite é mais veloz nos trópicos

com seus monturos

e cassinos de jogos

entre as pernas das putas

o assalto a mão armada

aberta em sangue a vida.

É mais veloz (e mais demorada)

nos cárceres

a noite latino-americana

entre interrogatórios

e torturas (lá fora as violetas)

e mais violenta (a noite)

na cona da ditadura

Sob a pele da treva, os frutos

crescem

conspira o açúcar

(de boca para baixo) debaixo

das pedras, debaixo

da palavra escrita no muro

ABAIX

e inacabada Ó Tlalhuicole

as vozes soterradas da platina

Das plumas que ondularam já não resta

mais que a lembrança

no vento

Mas é o dia (com seus monturos)

pulsando dentro do chão

como um pulso

apesar da South American Gold and Platinum

é a língua do dia

no azinhavre

Golpeábamos en tanto los muros de adobe

y era nuestra herencia una red de agujeros

é a língua do homem

sob a noite

no leprosário de San Pablo

nas ruínas de Tiahuanaco

nas galerias de chumbo e silicose

da Cerro de Pasço Corporation

Hemos comido grama salitrosa

piedras de adobe lagartijas ratones

tierra en polvo y gusanos

até que

(de dentro dos monturos) irrompa

com seu bastão turquesa

VII

Súbito vimos ao mundo

E nos chamamos Ernesto

Súbito vimos ao mundo

e estamos

na América Latina

Mas a vida onde está

nos perguntamos

Nas tavernas?

nas eternas tardes tardas?

nas favelas

onde a história fede a merda?

no cinema?

na fêmea caverna de sonhos

e de urina?

ou na ingrata

faina do poema?

(a vida

que se esvai

no estuário do Prata)

Serei cantor

serei poeta?

Responde o cobre (da Anaconda Copper):

Serás assaltante

E proxeneta

Policial jagunço alcagueta

Serei pederasta e homicida?

serei o viciado?

Responde o ferro (da Bethlehem Steel):

Serás ministro de Estado

e suicida

Serei dentista

talvez quem sabe oftalmologista?

Otorrinolaringologista?

Responde a bauxita (da Kaiser Aluminium):

serás médico aborteiro

que dá mais dinheiro

Serei um merda

quero ser um merda

Quero de fato viver.

Mas onde está essa imunda

vida – mesmo que imunda?

No hospício?

num santo

ofício?

no orifício da bunda?

Devo mudar o mundo,

a República? A vida

terei de plantá-la

como um estandarte

em praça pública?

VIII

A vida muda como a cor dos frutos

lentamente

e para sempre

A vida muda como a flor em fruto

velozmente

A vida muda como a água em folhas

o sonho em luz elétrica

a rosa desembrulha do carbono

o pássaro da boca

mas

quando for tempo

E é tempo todo o tempo

mas

não basta um século para fazer a pétala

que um só minuto faz

ou não

mas

a vida muda

a vida muda o morto em multidão




(Ilustração: Che Guevara e as crianças - Santa Clara – Cuba)

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