quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O NARRADOR: CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA DE NIKOLAI LESKOV[*], de Walter Benjamin (excerto)

 


Devemos imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios. Poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes - destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação.

Villemessant, o fundador do Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. "Para meus leitores", costumava dizer, "o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri”. Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível "em si e para si". Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio.

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A águia branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.

Leskov frequentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água. Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.

Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei egípcio e pergunta: por que ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele "já estava tão cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas". É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: "O destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino". Ou: "muitas coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era apenas um ator". Ou: "as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre uma distensão. O espetáculo do servidor foi essa distensão". Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso, essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas.

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria concisão que as salva da análise psicológica. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Esse processo de assimilação se dá em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual.



[*]  Nikolai Leskov nasceu em 1831 na província de Orjol e morreu em 1895, em S. Petersburgo. Por seus 'interesses e simpatias pelos camponeses, tem certas afinidades com Tolstoi, e por sua orientação religiosa, com Dostoievski. Mas os textos menos duradouros de sua obra são exatamente aqueles em que tais tendências assumem uma expressão dogmática e doutrinária - os primeiros romances. A significação de Leskov está em suas narrativas, que pertencem a uma fase posterior. Desde o fim da guerra houve várias tentativas de difundir essas narrativas nos países de língua alemã. Além das pequenas coletâneas publicadas pelas editoras Musarion e Georg Müller, devemos mencionar, com especial destaque, a seleção em nove volumes da editora C. H; Beck.



(Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução: Sergio Paulo Rouanet).



(Ilustração: Robert Teeling - irish writers)

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