quinta-feira, 13 de abril de 2023

JULGAR OU COMPREENDER?, de Marc Bloch

 


A fórmula do velho Ranke é célebre: o historiador propõe apenas descrever as coisas “tais como aconteceram, wie es eigentlich gewesen”. Heródoto o dissera antes dele, “ta eonta legein, contar o que foi”. O cientista, em outros termos, é convidado a se ofuscar diante dos fatos. Como muitas máximas, esta talvez deva sua fortuna apenas à sua ambiguidade. Podemos ler aí, modestamente, um conselho de probidade: este era, não se pode duvidar, o sentido de Ranke. Mas também um conselho de passividade. De modo que eis, colocados de chofre, dois problemas: o da imparcialidade histórica; o da história como tentativa de reprodução ou como tentativa de análise.

Mas haverá então um problema da imparcialidade? Ele só se coloca porque a palavra, por sua vez, é equívoca.

Existem duas maneiras de ser imparcial: a do cientista e a do juiz. Elas têm uma raiz comum, que é a honesta submissão à verdade. O cientista registra, ou melhor, provoca o experimento que, talvez, inverterá suas mais caras teorias. Qualquer que seja o voto secreto de seu coração, o bom juiz interroga as testemunhas sem outra preocupação senão conhecer os fatos, tais como se deram. Trata-se, dos dois lados, de uma obrigação de consciência que não se discute.

Chega um momento, porém, em que os caminhos se separam. Quando o cientista observou e explicou, sua tarefa está terminada. Ao juiz resta ainda declarar sua sentença. Calando qualquer inclinação pessoal, pronuncia essa sentença segundo a lei? Ele se achará imparcial. Sê-lo-á, com efeito, no sentido dos juízes. Não no sentido dos cientistas. Pois não se poderia condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua de valores, que não depende de nenhuma ciência positiva. Que um homem tenha matado um outro é um fato eminentemente suscetível de prova. Mas castigar o assassino supõe que se considere o assassino culpado: o que, feitas as contas, é apenas uma opinião sobre a qual todas as civilizações não entraram num acordo.

Ora, por muito tempo o historiador passou por uma espécie de juiz dos Infernos, encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos. Acreditamos que essa atitude corresponda a um instinto poderosamente enraizado. Pois todos os professores que tiveram de corrigir trabalhos de estudantes sabem o quão pouco esses jovens se deixam dissuadir de brincar, do alto de suas carteiras, de Minos ou Osíris. São, mais que nunca, as palavras de Pascal: “Todo mundo age como deus ao julgar: isto é bom ou ruim.” Esquecemos que um juízo de valor tem sua única razão como preparação de um ato e com sentido apenas em relação a um sistema de referências morais, deliberadamente aceito. Na vida cotidiana, as exigências do comportamento nos impõem essa rotulagem, geralmente bastante sumária. Ali onde nada mais podemos, ali onde os ideais comumente recebidos diferem profundamente dos nossos, ela é apenas um estorvo. Então estaríamos tão seguros sobre nós mesmos e sobre nossa época para separar, na trupe de nossos pais, os justos dos malditos? Elevando ao absoluto os critérios, todos relativos, de um indivíduo, de um partido ou de uma geração, que brincadeira infligir suas normas à maneira como Sila governou Roma ou Richelieu os Estados do rei Cristianíssimo! Como aliás nada é mais variável, por natureza, que semelhantes decretos, submetidos a todas as flutuações da consciência coletiva ou do capricho pessoal, a história, ao permitir muito frequentemente que o quadro de honra prevaleça sobre a caderneta de experiências, gratuitamente deu-se ares da mais incerta das disciplinas: às ocas acusações sucedem as incontáveis vãs reabilitações. Robespierristas, antirrobespierristas, nós vos imploramos: por piedade, dizei-nos simplesmente quem foi Robespierre.

Além disso, se o julgamento apenas acompanhava a explicação, o leitor estará livre para pular a página. Por infelicidade, à força de julgar, acaba-se, quase fatalmente, por perder até o gosto de explicar. Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos partis pris do presente, o olhar se turva sem remédio e, assim como o mundo dos maniqueus, a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco. Montaigne já nos chamara a atenção: “A partir do momento em que o julgamento pende para um lado, não se pode evitar de contornar e distorcer a narração nesse viés.” Do mesmo modo, para penetrar uma consciência estranha separada de nós pelo intervalo das gerações, é preciso quase se despojar de seu próprio eu. Para lhe dizer algumas verdades, basta permanecer o que se é. O esforço é certamente menos rude. Assim como é muito mais fácil escrever pró ou contra Lutero do que escrutar sua alma; acreditar que o papa Gregório VII está acima do imperador Henrique IV ou Henrique IV acima de Gregório VII do que desemaranhar as razões profundas de um dos grandes dramas da civilização ocidental! Vejam ainda, fora do plano individual, a questão dos bens nacionais. Rompendo com a legislação anterior, o governo revolucionário resolve vendê-los em parcelas e sem licitação. Era, incontestavelmente, comprometer gravemente os interesses do Tesouro. Certos eruditos, em nossos dias, ergueram-se veementemente contra essa política. Que coragem caso, presentes na Convenção, ali tivessem ousado falar nesse tom! Longe da guilhotina, essa violência sem perigo diverte. Mais vale investigar o que queriam, realmente, os homens do ano III. Almejavam, antes de tudo, favorecer a aquisição da terra por seu pequeno povo da província; ao equilíbrio do orçamento, preferiam consolar os camponeses pobres, garante de sua fidelidade a uma nova ordem. Estavam errados? Ou tinham razão? Quanto a isso, o que me importa a decisão retardatária de um historiador? Apenas lhe pedimos que não se deixe hipnotizar por sua própria escolha a ponto de não mais conceber que uma outra, outrora, tenha sido possível. A lição do desenvolvimento intelectual da humanidade é no entanto clara: as ciências sempre se mostraram mais fecundas e, por conseguinte, muito mais proveitosas, enfim, para a prática, na medida em que abandonavam mais deliberadamente o velho antropocentrismo do bem e do mal. Hoje riríamos de um químico que separasse os gases ruins, como o cloro, dos bons, como o oxigênio. Mas se a química, em seus primórdios, tivesse adotado essa classificação, teria corrido o sério risco de nela chafurdar, em grande detrimento do conhecimento dos corpos.

Resguardemo-nos, contudo, de precipitar a analogia. A nomenclatura de uma ciência dos homens terá sempre seus traços específicos. A das ciências do mundo físico exclui o finalismo. Palavras como sucesso ou acaso, inabilidade ou habilidade, apenas seriam capazes de desempenhar aí, no melhor dos casos, o papel de ficções, sempre prenhes de perigos. Elas pertencem, ao contrário, ao vocabulário normal da história. Pois a história lida com seres capazes, por natureza, de fins conscientemente perseguidos.

Podemos admitir que um comandante de exército que trava uma batalha empenhe-se, ordinariamente, em vencê-la. Caso a perca, sendo as forças, de ambos os lados, aproximadamente iguais, será perfeitamente legítimo dizer que manobrou mal. Era-lhe habitual um acidente assim? Tampouco escaparemos do mais escrupuloso julgamento de fato observando que este não era provavelmente um estratagema muito bom. Seja ainda uma mudança monetária, cujo objeto era, suponhamos, favorecer os devedores à custa dos credores. Qualificá-la de excelente ou deplorável seria tomar partido em favor de um dos dois grupos; por conseguinte, transportar arbitrariamente, para o passado, uma noção toda subjetiva do bem público. Mas imaginemos que, casualmente, a operação destinada a aliviar o peso das dívidas tenha desembocado, na prática — isso foi visto —, em um resultado oposto. “Fracassou”, dizemos, sem nada fazer com isso senão constatar, honestamente, uma realidade. O ato falho é um dos elementos essenciais da evolução humana. Assim como de toda psicologia.

E mais. Nosso general, por acaso, conduziu voluntariamente suas tropas à derrota? Ninguém hesitará em declarar que traiu: porque, sem rodeios, é assim que a coisa se chama. Mostrar-se-ia, por parte da história, uma delicadeza algo pedante em recusar o socorro do simples e correto léxico do uso comum. Restará depois investigar o que a moral comum da época ou do grupo pensava de tal ato. A traição pode ser, a seu modo, um conformismo: como testemunham os condottieri da antiga Itália.

Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: “compreender”. Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta. Palavra, não dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de esperanças. Palavra, sobretudo, carregada de benevolência. Até na ação, julgamos um pouco demais. É cômodo gritar “à forca!”. Jamais compreendemos o bastante. Quem difere de nós — estrangeiro, adversário político — passa, quase necessariamente, por mau. Inclusive, para travar as inevitáveis lutas, um pouco mais de compreensão das almas seria necessário; com mais razão ainda para evitá-las, enquanto ainda há tempo. A história, com a condição de ela própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve nos ajudar a curar esse defeito. Ela é uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro dos homens. A vida, como a ciência, tem tudo a ganhar se esse encontro for fraternal.



(Apologia da história ou o ofício do historiador; tradução de André Telles)



(Ilustração: Karl Brullov - The Last Day of Pompeii - 1827-1833)

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