sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O GENERAL E O SAMBA QUE NASCE NO CORAÇÃO, de Ruy Castro

 



Às vésperas dos sessenta anos, em novembro de 1955, o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra do presidente Café Filho, era neuroticamente metódico — tinha hora marcada até para beber água. Acordava às quatro da manhã, fazia ginástica sueca, ia para o ministério na avenida Presidente Vargas, onde dava religioso expediente, voltava para sua casa em Copacabana, jantava uma sopa e se recolhia às 20h30. Por sorte, seu programa favorito de televisão ia ao ar mais cedo: As Aventuras de Rin-Tin-Tin. A ideia de transgredir a ordem depondo um presidente da República devia ser-lhe intolerável. A não ser que esse presidente estivesse ameaçando algo maior do que todos — a Constituição. No caso, era o presidente interino, Carlos Luz (o mesmo que, em 1946, induzira o presidente Dutra a fechar os cassinos), que conspirava para não dar posse ao presidente e vice-presidente eleitos em outubro, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Portanto, naquela madrugada de 11 de novembro, o general subverteu radicalmente os seus hábitos. Muito antes das quatro da manhã, vestiu a farda, espetou suas condecorações (não saía de casa sem elas), muniu-se de guarda-chuva (estava chovendo) e saiu para depor Carlos Luz.

Carlos Luz era presidente da Câmara e substituía o presidente Café Filho, internado com um infarto no Hospital dos Servidores do Estado. Para Café e Luz, aliados políticos de Carlos Lacerda, e para parte dos militares, Juscelino e Jango representavam a inaceitável volta do getulismo ao poder. Daí o clima de intranquilidade nos quartéis, com discursos pregando abertamente um golpe. Lott podia não simpatizar com os eleitos — porque tinham sido apoiados pelos comunistas —, mas, para ele, a quebra de hierarquia era inconcebível. Então, desde a noite anterior, em conluio com outros generais legalistas e comandantes de tropas, planejou um golpe preventivo — a tomada de pontos-chave, como o Palácio do Catete, os fortes, quartéis de polícia, centrais telefônicas e telegráficas, a Tribuna da Imprensa — e a deposição do presidente. Naquela madrugada, enquanto as boates do Leme e do Posto 6 desovavam na calçada seus primeiros clientes, o Rio, por ordens de Lott, tinha as ruas tomadas por 25 mil homens e centenas de tanques.

Lacerda não esperava de Lott uma atitude desse porte. Ele e o pessoal da UDN só o chamavam, com desprezo, de “Generalote” — ao contrário dos colegas de farda de Lott, que o conheciam muito bem e sempre se referiram a ele, com respeito, como “o Duffles”. Luz, Lacerda e seus correligionários podem tê-lo subestimado, mas, naquele momento, com o dia ainda amanhecendo, não demoraram a se convencer de que tinham perdido e sua situação era insustentável — se não fugissem, seriam presos. Às seis da manhã, refugiaram-se no Ministério da Marinha. Lá, foram aconselhados a deixar o Rio no cruzador Tamandaré, que os esperava no porto, e rumar para Santos, cujas forças navais estavam do seu lado — dali, poderiam articular a resistência. Embarcaram e, uma hora depois, o Tamandaré já estava passando ao largo da fortaleza de São João, no Leme, cujos canhões começaram a disparar tiros de advertência — para grande perplexidade de Ary Barroso e outros boêmios do bairro, que voltavam cambaleantes para casa, sem saber de nada. O navio prosseguiu em direção ao Posto 6, e os canhonaços, disparados agora pelo Forte de Copacabana (doze, em doze minutos), não pareciam de advertência. Ao contrário, caíam muito perto do navio, como se fossem para valer — só que com má pontaria. O Tamandaré poderia ter respondido aos tiros e, durante alguns minutos, essa opção foi perigosamente considerada.

Em sua encarnação anterior, o Tamandaré fora um navio americano, o St. Louis, veterano da Segunda Guerra, com serviços prestados em Pearl Harbor, sobrevivente de ataques aéreos, protagonista no afundamento de vários navios japoneses e vendido ao Brasil em 1952. Seu poder de fogo era incomparavelmente maior que o dos canhões da Guerra do Paraguai que agonizavam nos fortes do Leme e de Copacabana. Se tivesse revidado — e se a pontaria de seus artilheiros fosse condizente com a das fortalezas —, a vizinhança dos fortes se banharia em sangue, não mais em uísque.

No Leme, correriam risco o Sacha’s, o Drink, o Arpège, o Bambu e o Plaza, próximos da orla, sem falar no Mocambo, no Sirocco e no La Conga, na área da avenida Prado Junior e já reduzidos a inferninhos. Além de restaurantes recém-inaugurados e também redutos da boemia: a Fiorentina, de Silvio e Zélia Hoffman, na avenida Atlântica; o Cabeça Chata, de Manezinho Araújo, no começo da rua Barata Ribeiro; o Chez Ruffin e a Cantina Sorrento, na praia. Nas imediações do Forte de Copacabana, sofreriam o Ranchinho do Posto 6 (onde até pouco antes ficava o Stud do Theo), o Posto 5, o Tudo Azul, o Farolito e o restaurante La Crémaillère, também com música ao vivo — lá cantavam Dick Farney, Inezita Barroso e o Trio Irakitan. Mas a grande baixa no Posto 6, em caso de retaliação do Tamandaré, seria o Marimbás, o clube no fim da avenida Atlântica, colado ao forte. Àquela hora, alguns de seus principais associados já estariam a postos: os campeões brasileiros de caça submarina, habituados a pegar meros e robalos gigantes, os antigos Cafajestes em peso e boêmios avulsos e qualificados, como Rubem Braga, Oscar Niemeyer e Di Cavalcanti.

A depender do comandante Silvio Heck, o Tamandaré teria promovido o strike de fortes e mandado as boates para o beleléu. Quem o dissuadiu foi o almirante Penna Boto. Carlos Luz o secundou, e o Tamandaré, assim que se viu fora do alcance das armas do forte, apontou seus canhões para cima, sinalizando que não iria responder. E nem adiantaria porque, ao saber que Santos também estava em poder dos legalistas, Luz e os outros reconheceram a derrota e se renderam.

Mas uma boate sofreu de verdade os efeitos do 11 de novembro: o Casablanca, na Praia Vermelha, já fora das mãos de Carlos Machado, que devolvera o imóvel à prefeitura. Cinco meses antes, o produtor Zilco Ribeiro, que o arrendara, estreara o show O samba nasce no coração, com uma constelação de nomes da velha guarda: Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Bide, J. Cascata, Ismael Silva, Vadico, Ataulpho Alves e suas pastoras, passistas, vedetes, dançarinos, comediantes e muitos mais. Era a volta triunfal daqueles fundadores do samba, depois de anos de esquecimento. O texto era de Meira Guimarães, sobre uma ideia de Sergio Porto.

Na primeira noite, assim que Pixinguinha entrou em cena com seu sax-tenor, Benedito Lacerda, velho amigo, levantou-se na primeira fila, já de flauta em punho, e tocou em dueto com ele, como faziam nos anos 40. Delírio na plateia. Lucio Rangel, ao entrar, arrancara a caricatura de Pixinguinha por Lan, pregada na porta, e passou a noite beijando-a e atirando beijos para o palco. Os irmãos Marinho (Roberto, Rogério e Ricardo), de O Globo, aplaudiam em uníssono. Almirante tomava notas. Ary Barroso apenas chorava. Ao fim do show, Paulo Bittencourt, do Correio da Manhã, também beijou respeitosamente as mãos de Pixinguinha. Todos os artistas sentiam-se reconhecidos — era como se a Praia Vermelha de 1955 fosse de novo a praça Onze de 1917 ou o Estácio de 1927, e “Pelo telefone” e “Se você jurar” estivessem sendo ouvidos pela primeira vez.

Seguiram-se meses de casa cheia e comentários empolgados na imprensa. Sergio Porto inventava diariamente um pretexto para falar do show no Diário Carioca, mas adaptando o título: “Em cartaz no Casablanca, O samba nasce no coração — e morre na voz de...”. Só mudava o nome do cantor: Francisco Carlos, João Dias, Ivon Curi — o que não era justo, porque nenhum desses cantores se dizia sambista.

Mas, então, Lott pôs os tanques na rua e depôs Carlos Luz. Desde as primeiras horas da manhã, a Praia Vermelha, sob a jurisdição da Marinha, tornara-se uma praça de guerra, com baterias antiaéreas, sacos de areia e soldados embalados. Já naquela noite do dia 11, apesar de os ânimos terem aparentemente serenado, ninguém foi ao Casablanca. Zilco Ribeiro esperou mais de uma hora na esperança de que o público chegasse. Em vão. Mas o elenco fez o show assim mesmo, para um único espectador: o próprio Zilco, sentado sozinho a uma mesa no centro do salão onde cabiam quatrocentas pessoas.

Nos dias seguintes, o público começou a voltar, mas em menor número, porque a situação política continuava conturbada, com novos lances todos os dias — Nereu Ramos, presidente do Senado, assumira o Catete e era o terceiro presidente da República em duas semanas; Café Filho deixara o hospital e ameaçara reassumir; Lott pôs de novo o pé na porta e confinou Café em seu apartamento em Copacabana; Carlos Luz renunciou à presidência da Câmara; Lacerda fugiu para Cuba, onde se exilou; Café sofreu impeachment pelo Congresso; Nereu continuou no Catete; e decretou-se o estado de sítio até a posse de Juscelino, em janeiro de 1956. Nunca se vira tanto entra e sai — mal as tropas desocupavam a Praia Vermelha e já tinham de voltar.

Delicado, como toda arte, O samba nasce no coração não aguentou esperar e morreu entre os tanques e canhões.



(A noite de meu bem – a história e as histórias do samba-canção)



(Ilustração: Heitor dos Prazeres - sarau)



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