quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

CARTA DE NETTIE PARA SUA IRMÃ CELIE, NA QUAL NARRA SUA CHEGADA À ALDEIA DOS OLINKAS, NA ÁFRICA, de Alice Walker (*)




“Querida Celie: Um africano da aldeia para onde vamos foi ter conosco ao barco. O nome dele depois de ser baptizado é Joseph. É baixo e gordo e as mãos parece que não têm ossos. Quando me tocou a mão, parecia que ia cair qualquer coisa macia e úmida e eu quase que tentei apanhá-la. Fala um bocado de inglês, o que eles chamam pidgin. É muito diferente da maneira como falamos, mas de certa maneira não nos é estranho. Ajudou-nos a descarregar as nossas coisas do barco para os outros que vinham buscar-nos. Eram apenas canoas escavadas em troncos de árvores, como têm os índios, como as que aparecem nas gravuras. Enchemos três delas com todos os nossos pertences e na quarta metemos os remédios e os artigos para a escola. No barco fomos entretidos pelas canções dos nossos barqueiros enquanto tentavam passar uns à frente dos outros até à praia. Ligavam-nos muito pouco assim como ao nosso carregamento. Quando chegamos à praia não se ralaram nada a ajudar-nos e até atiraram algumas coisas para a água. Logo que pobre do Samuel lhes deu uma gorjeta, que o Joseph disse que era grande demais, começaram a gritar para outro grupo de gente que estava à espera à beira da água para ir para o barco. O porto é bonito, mas muito pouco fundo para os navios grandes que utilizamos. Assim é um bom negócio para os barqueiros, durante a estação em que os barcos atracam. Estes barqueiros são todos bastante maiores do que o Joseph e têm músculos, embora eles, como o Joseph, sejam cor de chocolate escuro. Não são negros, como os Senegaleses. E, Celie, têm os dentes mais fortes, mais limpos, mais brancos do mundo! Pensei muito em dentes na viagem, porque tive dores quase todo o tempo. Sabes que os meus dentes não prestam para nada. E em Inglaterra fiquei pasmada com os dentes dos Ingleses. Tão tortos, geralmente, e escuros por se estragarem. Penso se será da água inglesa. Mas os dentes dos Africanos fazem-me lembrar os dos cavalos, tão bem formados, direitos e fortes. A «cidade» do porto é do tamanho da loja de ferragens dum grande armazém da nossa cidade. Lá dentro há quiosques cheios de tecidos, lanternas-à-prova-de-vento e petróleo, mosquiteiros, camas de campismo, camas de rede, machados, enxadas, catanas e outros utensílios. A zona toda é dirigida por um branco, mas alguns dos quiosques que vendem mantimentos estão arrendados a africanos. O Joseph apontou coisas que precisávamos comprar. Uma grande panela de ferro para ferver água e uma bacia de zinco para a roupa. Mosquiteiros. Pregos. Martelo e serra e picareta. Petróleo e candeeiros. Como no porto não se podia dormir, o Joseph contratou para carregadores alguns rapazes que andavam pelo entreposto comercial e largamos direitos a Olinka, que fica a perto de quatro dias de marcha pela floresta. Selva, para ti. Ou talvez não. Sabes o que é uma selva? Bom. árvores e mais árvores e ainda mais árvores. E grandes. Tão grandes que parece que alguém as fez. E trepadeiras. E fetos. E animaizinhos. Rãs. Também serpentes, segundo o Joseph. Mas graças a Deus não vimos nenhuma, apenas lagartos corcundas, tão grandes como o teu braço, que as pessoas aqui apanham e comem. Adoram carne. Toda a gente da aldeia. Às vezes, se não se consegue que façam qualquer coisa doutra maneira qualquer, começa-se a falar em carne, seja um pedaço pequeno que se tem a mais ou então, se a gente quiser algo de mais importante, fala-se em barbecue. Sim, em barbecue. Fazem-me lembrar as pessoas lá da terra! Bom, chegamos aqui. E pensei que nunca mais me livrava das rugas nas ancas por ter sido trazida numa rede todo o caminho. Toda a gente da aldeia se juntou à nossa volta. Vinham de pequenas cabanas redondas com qualquer coisa no topo que julguei que era palha mas que é afinal umas folhas que crescem por todo o lado. Cortam-nas e põem-nas em camadas umas em cima das outras, de forma a terem telhados onde a chuva não entre. Isto é trabalho das mulheres. Os homens espetam as estacas para a cabana e às vezes ajudam a construir as paredes com lama e pedras dos cursos de água. Nunca viste pessoas com caras tão cheias de curiosidade como as dos aldeães que nos rodeavam. Primeiro só olhavam. Depois uma ou duas mulheres tocaram na minha roupa e na da Corrine. O meu vestido estava tão sujo na bainha por ser arrastado pelo chão durante três noites em que cozinhamos em volta de uma fogueira que até tive vergonha de mim. Mas então olhei para a roupa que traziam. A maior parte parecia que tinha sido arrastada através do pátio pelos porcos. E não lhes servia. Então mexeram-se um bocado-ninguém tinha dito ainda uma palavra - e tocaram no meu cabelo. Depois olharam para os nossos sapatos. Nós olhamos para o Joseph. Ele disse-nos que faziam aquilo porque os missionários antes de nós eram brancos, e vice-versa. Os homens tinham estado no porto, alguns deles, e tinham visto o comerciante branco, portanto sabiam que os brancos podiam fazer também outras coisas. Mas as mulheres nunca tinham ido ao porto e a única branca que conheciam era a missionária que sepultaram havia um ano. O Samuel perguntou se tinham visto alguma vez a missionária branca que vivia a trinta quilômetros, e ele disse que não. Trinta quilômetros pela selva é uma viagem muito comprida. Os homens podiam caçar até quinze quilômetros em redor da aldeia, mas as mulheres ficavam nas cabanas e nos campos. Então uma das mulheres fez uma pergunta. Nós olhámos para o Joseph. Ele disse que a mulher queria saber se as crianças eram minhas ou da Corrine ou de ambas. O Joseph explicou que eram da Corrine. A mulher olhou para nós as duas e disse mais qualquer coisa. Nós olhamos para o Joseph. Ele disse que a mulher tinha dito que ambas se pareciam comigo. Rimos todos com muita delicadeza. Depois outra mulher fez outra pergunta. Queria saber se eu também era mulher do Samuel. O Joseph disse que não que eu só era uma missionária como o Samuel e a Corrine. Então houve uma pessoa que disse que nunca tinha desconfiado que os missionários podiam ter filhos. E outro disse que nunca tinha sonhado que pudesse haver missionários negros. Então alguém disse que tinha sonhado, também na noite anterior, que os novos missionários eram negros e que dois eram mulheres. Por essa altura havia muita excitação. Cabecinhas começavam a aparecer por trás das saias das mães e por cima dos ombros das irmãs mais velhas. E quase fomos arrastados entre os aldeães, cerca de trezentos, até uma cabana sem paredes mas com um teto de folhas, onde nos sentamos todos no chão, com os homens na frente, as mulheres e as crianças atrás. Houve então muito bichanar que se ouvia entre vários anciães que pareciam os velhos da igreja da nossa terra com as calças que pareciam sacos e casacos cheios de brilho, mal enforcados: Os missionários negros bebem vinho de palma? A Corrine olhou para o Samuel e o Samuel olhou para a Corrine. Mas eu e as crianças já estávamos a beber, porque alguém já nos tinha metido nas mãos copinhos de barro castanho e estávamos demasiado nervosos para não começar a beberricá-lo. Chegamos ali perto das quatro horas e ficamos sentados por baixo do toldo de folhas até às nove. Foi ali que fizemos a nossa primeira refeição, galinha e um estudo de amendoins que comemos com as mãos. Mas a maior parte do tempo ouvimos canções e vimos danças que levantavam montes de poeira. Mas a parte mais importante da cerimônia de boas-vindas foi acerca das folhas do teto, que o Joseph foi traduzindo enquanto um dos aldeães recitava a história que falava disso. As pessoas daqui julgam que sempre viveram neste local onde fica agora a aldeia. E que tem sido um local bom para eles. Plantam campos de mandioca e têm grandes colheitas. Plantam amendoins e é a mesma coisa. Plantam inhame e algodão e milho-mindo. Plantam tudo. Mas uma vez, há muito tempo, um homem da aldeia quis mais que a sua porção de terra para cultivar. Queria mais colheitas para vender o excedente aos brancos da costa. Como nesse tempo era chefe, a pouco e pouco foi ficando com mais terra da comunidade, e foi arranjando cada vez mais esposas para tratarem dela. Á medida que a sua cobiça crescia também começou a cultivar a terra onde cresciam as folhas para os telhados. Até as suas mulheres estavam preocupadas com aquilo e tentaram queixar-se, mas eram preguiçosas e ninguém lhes ligou nenhuma. Ninguém se conseguia recordar de uma época em que não existissem folhas para os telhados em grandes quantidades. Mas finalmente o ganancioso chefe ficou com tanta terra que até os anciães se começaram a preocupar. Então ele começou a comprá-los com machados e tecidos e panelas para cozinhar que arranjava nos negociantes da costa. Foi então que rebentou uma grande tempestade, durante a estação das chuvas, que destruiu todos os telhados de todas as cabanas da aldeia e as pessoas descobriram com desanimo que já não havia folhas. Onde dantes cresciam as folhas desde o princípio dos tempos, só havia mandioca. Milho-miúdo. Amendoins. Durante seis meses os céus e os ventos martirizaram o povo de Olinka. A chuva caía como flechas, rompendo a lama das suas paredes. O vento era tão violento que arrancava as pedras das paredes e as atirava para dentro das panelas de cozinhar. Depois pedras frias, do feitio de grãos de milho-miúdo, caíram do céu, maltratando toda a gente, homens, mulheres e crianças, e provocando febres. Primeiro adoeceram as crianças, depois os pais. De repente a aldeia começou a desaparecer. Perto do fim da estação das chuvas, já não existia metade da aldeia. As pessoas rezaram aos seus deuses e esperaram com impaciência pela estação seguinte. Logo que a chuva parou correram para os velhos campos de folhas e tentaram encontrar as antigas raízes. Mas, da ilimitada quantidade que ali sempre existira, apenas sobravam algumas dúzias. Só há cinco anos as folhas cresceram de novo com toda a força. Durante estes cinco anos muita gente morreu na aldeia. Muitos partiram, para não voltarem. Muitos foram devorados pelos animais. Muitos, muitos estiveram doentes. Deram ao chefe todos os utensílios comprados nas lojas e obrigaram-no a deixar a aldeia para sempre. As suas esposas foram dadas a outros homens. No dia em que todas as cabanas tiveram outra vez telhados feitos com as folhas, os aldeães comemoraram o acontecimento cantando e dançando e contando a história. Passaram a cultivar as folhas. Olhando sobre as cabeças das crianças no fim da história, vi aproximar-se de nós, devagar, uma coisa grande, castanha e cheia de picos, do tamanho de uma sala, com uma dúzia de pernas a andarem lentamente e cuidadosamente. Quando chegou ao nosso toldo, foi-nos apresentada. Era o nosso telhado. Quando se aproximava, as pessoas faziam reverências. O missionário branco antes de vocês não nos deixou pôr em prática esta cerimônia, disse o Joseph. Mas os Olinkas gostam muito dela. Sabemos que um telhado de folhas não é Jesus Cristo, mas à sua maneira humilde não é Deus? Portanto ali estávamos sentados, Celie, a olhar para o Deus dos Olinkas. E, Celie, eu estava tão cansada e cheia de sono e de galinha e de estufado de amendoins, com os ouvidos a tremerem por causa das canções, que tudo o que Joseph dizia era perfeitamente lógico para mim. Penso no que irás achar de tudo isto. Com amizade, A tua irmã, Nettie.”



(A cor púrpura; tradução de Paula Reis; edição portuguesa)



(*) Nota do blog: Os Olinkas não existem, são uma criação ficcional da autora.



(Ilustração: Elisha Ongere - Three Turkana Beauties)


Nenhum comentário:

Postar um comentário