terça-feira, 31 de agosto de 2021

LITURGIA DE LUZ E NUDEZ, de Autran Dourado

 


Fazia frio e lá fora ventava. Um vento manso e contínuo. A casa toda apagada, todos com certeza dormindo. A solidão e o silêncio pesavam enormes sobre ele. Se cansara de ler, se cansara do caderno em que de uns tempos para cá dera para escrever. O cinzeiro cheio, de tanto que fumara. A garganta ardendo, a língua grossa, o pigarro.

Olhou com nojo o cinzeiro cheio até às bordas, se arrependeu de ter fumado tanto. com certeza ia passar mal a noite, custaria mais a dormir. Na insônia aquelas lembranças todas, a dor. A luz acesa, sem se dispor a deitar, demorando de pé o mais que podia, ainda era capaz de dominar a angústia e manter a onça de longe.

Deitado no escuro, um outro João parecia nascer de dentro dele. Um João que ele vinha tentando afogar na memória, enterrar na paradeza do tempo, desde aquela sua primeira noite no internato.

Mergulhado nas névoas da lembrança, na imensidão infinita do tempo, na mornidão opaca, na modorra das horas, ele neutro e silencioso, só então reparou que o quarto estava embaciado, o ar pesado demais. Assim, o cinzeiro fedendo a sarro, ia ser difícil respirar, impossível dormir. Abriu a janela, respirava fundo o ar fininho e frio da noite. Tão frio, mas era um friozinho seco, penetrante, gostoso. Cheirava a dama-da-noite. Um cheiro bom de resina de mangueira, de mato, de terra. O canto persistente dos grilos furando de miúdas estrelas o silêncio encorpado da noite. A noite pálida coalhada de estrelas, era lua cheia. A lua que nascera vermelhona e escandalosa na boca da noite, agora estava alta no céu: pálida, fria, branca, brilhante, nua, longe demais. A noite clara, a lua cheia, os grilos, cheiros e estrelas.

As mangueiras brilhantes, cobertas da poalha esbranquiçada, o chão pintado de manchas brancas de lua.

Ah, lua, disse ele frio, mais por dizer. Ah, Endemião, disse ele já literário. Respirava o cheiro macio e fino da noite, enchia o peito insaciável de luar e de estrelas.

Uma doce e fria paz descia sobre ele na noite subitamente estagnada. Se sentia miúdo, pequenino demais. Mesmo assim apaziguado, estranhamente feliz. Naquela imensidão de noite estrelada, inundado pela luz alvacenta do luar, gostaria de descansar o coração na mão espalmada de Deus, dissolver-se na luz distante, parada, fria, serena (tudo envolvia a doce brisa macia), serena e eterna de Deus. Aquele Deus de sua infância, que ele agora, na sua desesperada suficiência, na sua insegura e violenta certeza, na sua angústia de viver, na sua busca, na sua sede nunca satisfeita, na sua fome total, entre lágrimas palmilhando o caminho da dor, do deserto, procurava negar.

O cinzeiro na mão, jogou fora as baganas secas e fedidas. Respirou ainda mais fundo a paradeza da noite de estrelas e lua cheia, a brancura fria, o ar manso e cheiroso.

Ia caindo sobre ele uma doce paz, o imenso silêncio de cujo oco podia nascer a voz de Deus.

Só então reparou que havia luz em outro quarto da casa. Não era só ele, tia Margarida também estava acordada. Que estaria fazendo tia Margarida àquela hora de noite com a luz acesa, a janela aberta? Ela era tão friorenta e medrosa. Será que não sentia frio, não tinha medo? Ou ela também sentia o ar abafado, irrespirável, a prisão do quarto, precisava da brisa fria da noite? Ela também não podia dormir? Ou dormia de janela aberta, esquecera a luz acesa? Tia Margarida dormindo de luz acesa, descoberta. Esquecido do frio, de que se ela estivesse dormindo estaria toda encolhidinha debaixo das cobertas, começou a vê-la descuidadamente deitada. Os braços abertos, o corpo largado, a camisola arregaçada pelo movimento no sono, as coxas brancas e quentes à mostra. Aquele corpo quente e branco dormindo. O cheiro que deitava fundas raízes no menino. Ele não era um menino, alguma coisa cantou forte dentro dele. Podia surpreendê-la dormindo, não a acordaria. Mesmo dormindo, era capaz dela perceber a sua presença no quarto e acordar. Ela não grita, afoga o susto, finge que ainda continua dormindo, mas ele percebe tudo pelo movimento das pálpebras, pelo pulsar das narinas na respiração apressada. Como aquela vez na mesa da sala, ela deixaria. O peito incendiado, a garganta apertada, mal podia respirar.

E de repente um touro feroz acordou dentro dele. Agora era só narinas respirando apressado. Um touro de chifres vermelhos, saltando, mugindo no labirinto escuro, sanguinolento.

Apagou a luz do quarto, pulou a janela. Foi deslizando pela parede da casa, pisando cuidadosamente, na macieza de um gato, para não fazer nenhum barulho. Vovô Tomé, apesar de dormir tarde, tinha o sono muito leve. Se agachou, prendia a respiração, pisava nas pontas dos pés quando passou pela janela do avô. Na quina da casa parou. Respirava fundo, descansando, como se tivesse dado uma longa corrida. Agora tinha de tomar distância, se afastar do corpo da casa, correr para detrás daquele tronco de mangueira.

Poderia ver melhor dali, de frente para a janela acesa. Tinha de fazer tudo muito rápido, ser mais ligeiro e silencioso que um gato, correndo para que ela, ninguém pudesse perceber que tinha gente na horta. Deu uma corrida, se agachando, quase de quatro. Era ligeiro e elástico feito um gato, comparou mais uma vez. Mesmo assim cuidou que tivesse feito barulho. Se encostou no tronco da mangueira, respirava em pequenos fôlegos - um cachorrinho bebendo água, o coração batia agitado no peito, na goela. Vovô Tomé podia acordar assustado, abrir a janela, pensando que era ladrão, capanga, bandido empreitado para matá-lo. Os meninos do colégio saltavam o muro para roubar fruta na horta de tio Maximino. Corriam apavorados, o velho esbravejando, a espingarda na mão. Chumbo ou sal, o efeito era quase o mesmo, dizia.

Só que vovô Tomé atirava era com o trabuco de matar até onça. Uma onça miava farejando a lua, os olhos lumeando na escuridão do mato. bom na pontaria, mesmo no escuro, só pelo barulhinho era capaz de acertá-lo. Se encostou no tronco da mangueira, foi se deixando cair devagarinho. Ficou assentado, encolhidinho, protegido pela árvore, à espera.

Assim algum tempo. Até que teve a certeza de que ninguém tinha reparado a sua corrida, voltou a ouvir os grilos. Quando viu que não vinha ninguém, foi se levantando, e protegido pela árvore, pôde ver a janela acesa. A janela aberta, a luz acesa, ela não aparecia. com certeza dormindo, como tinha primeiro imaginado. Se afastou da mangueira, foi avançando, pé-ante-pé. Por mais cuidado que tomasse, as folhas secas estalavam. Se aparecesse alguém, a janela de vovô Tomé abrindo de repente, estaria perdido a meio caminho entre a mangueira e a janela aberta. Parou, as pernas bambas, trêmulo. Agora tinha medo de avançar ou recuar.

Paralisado, trêmulo, alguma coisa devia acontecer.

Súbito viu: tia Margarida apareceu no quadro iluminado da janela. A camisola de rendas abo toada até o pescoço, as mangas compridas. Toda branca, ela parecia mais branca do que realmente era. Os cabelos compridos, soltos e pretos, lustrosos, brilhavam, caindo em ondas sobre os ombros. Ele fascinado pela aparição diáfana e branca. Ela parecia envolta num halo de luz, uma luz que irradiava dela mesma. Linda, ele achava-a linda. Os olhos enormes, havia nela alguma coisa estranha e misteriosa.

Andava lentamente, descalça certamente. Era como uma figura nascida do fundo da noite, que vinha varando as névoas do sonho. Irreal, como uma

Verônica de cabelos soltos numa procissão noturna. Só que ela estava de branco, a cabeça descoberta. Agora de costas. Embora com medo que ela pudesse vê-lo, queria que ela se voltasse.

Ela se voltou, estava no meio do quarto. Agora podia vê-la, os pés descalços como tinha sonhado.

Fascinado pela aparição, se esquecia de tudo. O silêncio se espraiando apagava os grilos, os cheiros, as estrelas. Só os olhos viviam plenamente. E de novo viu que ela era linda, assim de cabelos soltos. Muito mais nova do que na verdade era. Muito mais linda e mais nova do que quando nas suas noites de urutau no internato.

Ele não esperava que mais nada acontecesse. Só aquela visão lhe bastava.

Quando aconteceu. Aconteceu que ela, antes letárgica, começou a se mover. E foi desabotoando a camisola em gestos suavíssimos: primeiro os punhos, depois a gola, o trespasse. Ele fechou os olhos, com medo de ver. Queria ser surpreendido pela visão com que sempre sonhou, que sempre temia. As ramagens de um roupão de cetim, um roupão vermelho, as chinelinhas cor-derosa, os cabelos pingando água do banho.

Uma dor verrumava fundo, varando. Tinha medo de abrir os olhos e ver. Os olhos fechados, dentro dele espocavam gritos, foguetes na escuridão. Eram palavras gritadas por bocas vermelhas, de dentro de negros labirintos. Nudez, mistério, brancura, morte! Êxtase, transe, fascínio, agonia, ressurreição! Todo ele eletrizado, à espera de morrer.

Quando abriu os olhos viu que ela, na brancura de sua nudez, explodia iodarem luz, luar. Toda ela nudez e luz: diáfana, pura, leitosa. Ela podia morrer agora, morreria no seu mais alto momento de luz e glória. A nudez que via era maior do que toda nudez que sonhara.

Os braços abertos, a cabeça erguida, ela se dava em espetáculo e agonia.

Para quem aquela liturgia de luz e nudez? Aqueles passos que agora eram dança? Os passos de pura música não eram para ele nem para ninguém. Para um deus desconhecido que mera na lua talvez.

Era para a lua que agora dançava, oferecendo os seios brancos e luminosos, o ventre redondo, as coxas firmes e arqueadas, toda ela um arco na mão do deus. O corpo esticado em arco, segurava os seios como se desse leite a alguém. Toda ela um só estremecimento, um só estertor. Feito em gozo, os olhos fechados, parecia balbuciar.

Como se estivesse sendo possuída, flechada. Ela podia desmaiar naquele paroxismo, podia mesmo naquele sacrifício morrer.

Ele sentia um medo tão forte, um estremecimento tão grande, uma dor tão funda, que cuidou também não resistir.

Foi quando, sem perceber, avançou. Os pés bateram numa pedra, caiu. O barulho que fez, ela ouviu. Viu-o. Na cara, nada - o terror branco. Sem poder se afastar, a boca aberta com que procurava articular um grito: ele cuidou ouvir, ela na verdade não gritou. Não se afastou nem se cobriu. Quem teve de fugir foi ele, como se ele é que estivesse nu.



(O risco do bordado)



(Ilustração: Edward Hopper - 1882-196 - solidão)

sábado, 28 de agosto de 2021

ILÍADA – CANTO I – A EPIFANIA DE ATENA, de Homero

 



ὣς φάτο: Πηλεί̈ωνι δ' ἄχος γένετ', ἐν δέ οἱ ἦτορ

στήθεσσιν λασίοισι διάνδιχα μερμήριξεν,

ἢ ὅ γε φάσγανον ὀξὺ ἐρυσσάμενος παρὰ μηροῦ 190

τοὺς μὲν ἀναστήσειεν, ὃ δ' Ἀτρεί̈δην ἐναρίζοι,

ἦε χόλον παύσειεν ἐρητύσειέ τε θυμόν.

ἧος ὃ ταῦθ' ὥρμαινε κατὰ φρένα καὶ κατὰ θυμόν,

ἕλκετο δ' ἐκ κολεοῖο μέγα ξίφος, ἦλθε δ' Ἀθήνη

οὐρανόθεν: πρὸ γὰρ ἧκε θεὰ λευκώλενος Ἥρη 195

ἄμφω ὁμῶς θυμῷ φιλέουσά τε κηδομένη τε:

στῆ δ' ὄπιθεν, ξανθῆς δὲ κόμης ἕλε Πηλεί̈ωνα

οἴῳ φαινομένη: τῶν δ' ἄλλων οὔ τις ὁρᾶτο:

θάμβησεν δ' Ἀχιλεύς, μετὰ δ' ἐτράπετ', αὐτίκα δ' ἔγνω

Παλλάδ' Ἀθηναίην: δεινὼ δέ οἱ ὄσσε φάανθεν:



Tradução de Carlos Alberto Nunes:



Enfurecido com essas palavras ficou o Pelida

o coração a flutuar, indeciso, no peito veloso,

sobre se a espada cortante, ali mesmo, do flanco arrancasse

e, dispersando os presentes, o Atrida, desta arte, punisse,

ou se o furor procurasse conter, dominando a alma nobre.

Enquanto no coração e no espírito assim refletia,

e a grande espada de bronze arrancava, do Céu baixou prestes

Palas Atena, mandada por Hera, de braços muito alvos,

que a ambos prezava e cuidava dos dois por maneira indistinta.

Por trás de Aquiles postando-se, os louros cabelos lhe agarra,

a ele visível somente; nenhum dos presentes a via.

Cheio de espanto, o Pelida virou-se; porém pelo brilho

Que se lhe expande dos olhos, conhece que é Palas Atena.



(Ilustração:  O nascimento de Atena, pintura em trípode grega, c. 570-560 a.C.)



quarta-feira, 25 de agosto de 2021

PARRESÍA(*) - A CORAGEM DE DIZER A VERDADE, de Luciene Félix





Não são raras as ocasiões em que preferimos nos abster de dizer a verdade. Também não são infundadas as razões pelas quais optamos por proceder assim. De fato, se ousarmos manifestar o que pensamos, tornar-nos-emos, no mínimo, indesejáveis e, se considerarmos que uma das excelências humanas está justamente na capacidade de convívio, no cultivo de aprazíveis relações, nada mais coerente.

Parresía é o termo em grego para designar a coragem de se dizer a verdade, expor tudo, de se falar com franqueza. O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), em sua obra "O governo de si e dos outros", tratará desta antiquíssima noção e seu uso político desde os primórdios da politéia (constituição) e da democracia na Grécia.

A palavra certa, proferida no momento adequado (kairós - tempo oportuno) pode revelar injustiças, impor lucidez e também ferir. Metralhadora ou flecha certeira, dispará-las pode aniquilar moralmente um(a) poderoso(a).

Estar convicto é fundamental. Se se tratar de mero atrevimento, irresponsável, o dano pode ser irreversível, sobretudo se houver plateia. Mesmo que se tente remediar, a ardilosidade de se ofender em público e se retratar em particular é expediente inaceitável.

A parresía é uma virtude e seu emprego pode se dar tanto na esfera pública quanto na privada. Algumas características lhe são peculiares: uma delas é a de que o destemido que confrontar o poder com a verdade esteja em condição subalterna a seu interlocutor. Não há parresía quando um pai repreende um filho, um professor contesta seu aluno ou o patrão adverte o funcionário.

Há de se ter muita intimidade e confiança para que, sem magoar, sejamos autênticos. Quando a verdade é proferida sem malícia, não se guardam rancores. É delicado sermos parrésicos na vida privada e, salvo raras exceções, até dispensável.

Embora estejamos cônscios de que evitar o confronto, abstendo-se de uma corajosa franqueza implica numa fatura onde se discrimina hipocrisia, falsidade, fingimento e mentira, sobretudo no âmbito das relações familiares e de amizade, quem teria coragem de dizer assim, na lata, que o filho é um ingrato, os progenitores do cônjuge são inconvenientes ou maledicentes? Que o cunhado é um inútil e a cunhada lhe parece dissimulada, invejosa ou que, após a plástica, sua amiga a faz lembrar Sartre?

Ser parresiasta (parrésico ou Parresiázesthai) não é ser irônico, crítico, persuadir ou desafiar proferindo ofensas e insultos gratuitos. Isso é mera opinião (dóxa), não necessariamente uma opinião verdadeira (dóxa alethés).

Mais que uma recusa à mentira, à bajulação, peculiar da parresía é haver um alto preço a ser pago. Por isso, será no âmbito da vida profissional e cívica que optar por dizer a verdade pode acarretar implicações de alcance imprevisíveis: retaliações, demissões, exílio e até mesmo a morte.

Na vida privada em desavença (império de "futrica de comadres", território de desocupadas aves de rapina), as consequências de dizer a verdade podem ser relativamente mensuráveis e, dependendo do caso, mesmo que desconfortável, o máximo que pode acontecer é o rompimento de relações notadamente desarmoniosas e inautênticas, algo capaz de revelar-se até benéfico à saúde psíquica.

É no dizer público que a parresía é mais parresía. Foucault afirma que "as diferentes maneiras de dizer a verdade podem aparecer como formas" e analisa quatro delas: estratégia de demonstração, de persuasão, de ensino e de discussão.

Embora possa utilizar elementos de demonstração, a parresía não é uma maneira de demonstrar: "não é a demonstração nem a estrutura racional do discurso que vão definir a parresía".

Quanto à retórica, diz ele: "a parresía como técnica, como procedimento, como maneira de dizer as coisas, pode e muitas vezes deve efetivamente utilizar os recursos da retórica (...) a parresía se define fundamentalmente, essencialmente e primeiramente como o dizer-a-verdade, enquanto a retórica é uma maneira, uma arte ou uma técnica de dispor os elementos do discurso a fim de persuadir." Sem dúvida, a retórica não se ocupa com o fato de o discurso ser ou não verdadeiro e isso é essencial à parresía.

Sobre ser uma maneira de ensinar, uma pedagogia, Foucault também refuta dizendo haver: "(...) toda uma brutalidade, toda uma violência, todo um lado abrupto da parresía, totalmente diferente do que pode ser um procedimento pedagógico. O parresiasta, aquele que diz a verdade dessa forma, pois bem, ele lança a verdade na cara daquele com quem dialoga ou a quem se dirige (...)".

E complementa dizendo que "(...) quem diz a verdade lança a verdade na cara desse interlocutor de maneira tão cortante e tão definitiva, que o outro em frente não pode fazer mais que calar-se, ou sufocar de furor (...)".

Seria a parresía uma maneira de discutir? Pertenceria à Erística? Éris é a deusa da discórdia (disputa, querela) e esse termo compreende "uma arte da controvérsia e do debate, desenvolvido principalmente pela Escola de Mégara (séc. V-IV)". Não. O parresiasta não tem por télos (finalidade) discutir, mas dizer: "Há, de um lado, um dos interlocutores que diz a verdade, e que se preocupa, no fundo, com dizer a verdade o mais depressa, o mais alto, o mais claro possível; e depois, em face, o outro que não responde, ou que responde por outra coisa que não são discursos".

Michel Foucault afirma que a parresía é uma certa maneira de se dizer a verdade, mas que esta maneira não pertence à erística (arte de discutir), nem à pedagogia (arte de ensinar), nem à retórica (arte da persuasão) nem tampouco a uma arte da demonstração: "Não a encontramos no que poderíamos chamar de estratégias discursivas".

Pode-se servir da parresía para emitir lições, aforismos, réplicas, opiniões, juízos etc., mas o que mais a caracteriza, onde há verdadeiramente parresía, é quando não se fica impune ao pronunciá-la.

Ele diz crer que, se quisermos analisar a parresía, não devemos nos ater ao "lado da estrutura interna do discurso, nem do lado da finalidade que o discurso verdadeiro procura atingir o interlocutor, mas do lado do locutor, ou antes, do lado do risco que o dizer-a-verdade abre para o próprio interlocutor".

Arriscado, proferir a verdade é encontrar a fúria: "é abrir para quem diz a verdade um certo espaço de risco, é abrir um perigo em que a própria existência do locutor vai estar em jogo." De fato, é se expor pelo que o Homem mais preza: liberdade. Corajosos, Parresiázesthai estão dispostos a morrer por ela.



(*) Parresía é pronúncia grega; em português, se diria “parrésia”, conforme está nos dicionários.


(Ilustração: Jacques-Louis David - A Morte de Sócrates – 1787)


domingo, 22 de agosto de 2021

DOWN BY THE STATION, EARLY IN THE MORNING / PELA ESTAÇÃO, DE MANHÃ CEDO, de John Ashbery

 




It all wears out. I keep telling myself this, but

I can never believe me, though others do. Even things do.

And the things they do. Like the rasp of silk, or a certain

Glottal stop in your voice as you are telling me how you

Didn’t have time to brush your teeth but gargled with Listerine

Instead. Each is a base one might wish to touch once more



Before dying. There’s the moment years ago in the station in Venice,

The dark rainy afternoon in fourth grade, and the shoes then,

Made of a dull crinkled brown leather that no longer exists.

And nothing does, until you name it, remembering, and even then

It may not have existed, or existed only as a result

Of the perceptual dysfunction you’ve been carrying around for years.

The result is magic, then terror, then pity at the emptiness,

Then air gradually bathing and filling the emptiness as it leaks,

Emoting all over something that is probably mere reportage

But nevertheless likes being emoted on. And so each day

Culminates in merriment as well as a deep shock like an electric one,



As the wrecking ball bursts through the wall with the bookshelves

Scattering the works of famous authors as well as those

Of more obscure ones, and books with no author, letting in

Space, and an extraneous babble from the street

Confirming the new value the hollow core has again, the light

From the lighthouse that protects as it pushes us away.



Tradução de Adriano Scandolara:



Tudo desgasta. Vivo me dizendo isso, mas

Nunca acredito em mim, embora os outros o façam. Até as coisas o fazem.

E as coisas que fazem. Como a raspa da seda, ou certa

Oclusiva glotal em sua voz ao me dizer que você

Não teve tempo de escovar os dentes e fez gargarejo com Listerine

Em vez disso. Cada uma é uma base que se pode desejar tocar outra vez



Antes de morrer. Há o momento, anos atrás, na estação em Venice,

A tarde escura e chuvosa na quarta série, e os sapatos assim

Feitos de um couro marrom embotado rugoso que não existe mais

E nada existe, até que você o nomeie, lembrando, e, ainda assim,

Pode não ter existido, ou existido só como resultado

Da disfunção perceptual que você tem carregado por anos a fio.

O resultado é mágica, depois terror, depois dó do vazio,

O ar gradualmente banhando e preenchendo o vazio enquanto vaza,

Se comovendo sobre algo que é provavelmente mera reportagem

Mas de qualquer modo gosta que se comovam. E, assim, cada dia

Culmina em regozijo, bem como o profundo choque como se elétrico,



Conforme a bola de demolição estoura a parede com as estantes

Espalhando as obras de autores famosos, bem como aquelas

Dos mais obscuros, e livros sem autor, deixando entrar

Espaço, e um balbucio estranho da rua

Confirmando o valor novo que o centro oco tem outra vez, a luz

Do farol que protege enquanto nos distancia.



(Ilustração: 
 Kurt Schwitters - Glass Flower - 1931)




quinta-feira, 19 de agosto de 2021

A PICADA DA VÍBORA, de Friedrich Nietzsche

  




Um dia, estava Zaratustra a dormitar sob uma figueira, porque fazia calor, e tinha tapado o rosto com o braço. Nisto chegou uma víbora, mordeu-lhe o pescoço, e ele soltou um grito de dor. Afastando o braço do rosto, olhou a serpente; ela reconheceu os olhos de Zaratustra, contorceu-se vagarosamente e quis se retirar. “Não — disse Zaratustra: — espera, ainda não te agradeci! Despertaste-me a tempo, pois o meu caminho ainda é longo”.

— “O teu caminho é curto — disse tristemente a víbora: — o meu veneno mata”. Zaratustra pôs-se a rir. “Quando foi que o veneno de uma serpente matou um dragão? — disse — reabsorve o teu veneno! Não és rica demais para me fazeres presente dele”. Então a víbora tornou a enlaçar-lhe o pescoço e lambeu-lhe a ferida.

Quando um dia Zaratustra contou isto aos seus discípulos, eles perguntaram-lhe: “E qual é a moral do teu conto?” Zaratustra respondeu:

“Os bons e os justos chamam-me o destruidor da moral: o meu conto é imoral.

Se tendes, porém, um inimigo, não lhe devolvais bem por mal porque se sentiria humilhado; demonstrai-lhe, pelo contrário, que vos fez um bem.

E a ter que humilhar preferi encolerizar-vos. E quando se vos amaldiçoe, não me agrada que vós abençoeis. Amaldiçoai também.

E se vos fizeram uma grande injustiça, fazei vós imediatamente cinco injustiças pequenas.

Horroriza ver o que por si só sofre o peso da injustiça.

Já sabeis isto? Injustiça repartida é semidireto. E aquele que pode trazer a injustiça deve levá-la.

Uma pequena vingança é mais humana do que nenhuma. E se o castigo não é somente um direito e uma honra para o transgressor, eu não quero o vosso castigo.

É mais nobre condenarmos do que teimar, mormente quando temos razão. Somente é preciso ser rico bastante para isso.

Não me agrada a vossa fria injustiça: nos olhos dos vossos juizes transparece sempre o olhar do verdugo e seu gelado cutelo.

Dizei-me: onde se encontra a justiça que é amor com olhos perspicazes?

Inventai-me, pois, o amor que suporta, não só todos os castigos, mas também todas as faltas.

Inventai-me a justiça que absolve todos, exceto aquele que julga!

Quereis ouvir mais? No que quer ser verdadeiramente justo, a mentira muda-se em filantropia.

Mas, como poderia eu ser verdadeiramente justo? Como poderia dar a cada um o seu?

Basta-me isto: eu dou a cada um o meu.

Enfim, irmãos, livrai-vos de ser injustos com os solitários. Como poderia um solitário esquecer? Como poderia devolver?

Um solitário é como um poço profundo. É fácil lançar nele uma pedra; mas se a pedra vai ao fundo quem se atreverá a tirá-la?

Livrai-vos de ofender o solitário; mas se o ofendestes então, matai-o também!”

Assim falava Zaratustra.



(Assim falava Zaratustra; tradução de José Mendes de Souza)



(Ilustração: Edward Hopper)


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A ORGIA DOS DUENDES, de Bernardo Guimarães

 

     

I

Meia-noite soou na floresta

No relógio de sino de pau;

E a velhinha, rainha da festa,

Se assentou sobre o grande jirau.

Lobisome apanhava os gravetos

E a fogueira no chão acendia,

Revirando os compridos espetos,

Para a ceia da grande folia.

Junto dele um vermelho diabo

Que saíra do antro das focas,

Pendurado num pau pelo rabo,

No borralho torrava pipocas.

Taturana, uma bruxa amarela,

Resmungando com ar carrancudo,

Se ocupava em frigir na panela

Um menino com tripas e tudo.

Getirana com todo o sossego

A caldeira da sopa adubava

Com o sangue de um velho morcego,

Que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas

Que tirou do cachaço de um frade

Adubado com pernas de aranha,

Fresco lombo de um frei dom abade.

Vento sul sobiou na cumbuca,

Galo-Preto na cinza espojou;

Por três vezes zumbiu a mutuca,

No cupim o macuco piou.

E a rainha co’as mãos ressequidas

O sinal por três vezes foi dando,

A corte das almas perdidas

Desta sorte ao batuque chamando:

"Vinde, ó filhas do oco do pau,

Lagartixas do rabo vermelho,

Vinde, vinde tocar marimbau,

Que hoje é festa de grande aparelho.

Raparigas do monte das cobras,

Que fazeis lá no fundo da brenha?

Do sepulcro trazei-me as abobras,

E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra

Que me deu minha tia Marselha,

E que aos ventos da noite sussura,

Pendurada no arco-da-velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,

Esqueleto gamenho e gentil?

Eu quisera acordar-te c’um beijo ]

Lá no teu tenebroso covil.

Galo-preto da torre da morte,

Que te aninhas em leito de brasas,

Vem agora esquecer tua sorte,

Vem-me em torno arrastar tuas asas.

Sapo-inchado, que moras na cova

Onde a mão do defunto enterrei,

Tu não sabes que hoje é lua nova,

Que é o dia das danças da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,

Não deplores o suco das uvas;

Vem beber excelente restilo

Que eu do pranto extraí das viúvas.

Lobisome, que fazes, meu bem

Que não vens ao sagrado batuque?

Como tratas com tanto desdém,

Quem a c’roa te deu de grão-duque?”

 

 

II

Mil duendes dos antros saíram

Batucando e batendo matracas,

E mil bruxas uivando surgiram,

Cavalgando em compridas estacas.

Três diabos vestidos de roxo

Se assentaram aos pés da rainha,

E um deles, que tinha o pé coxo,

Começou a tocar campainha.

Campainha, que toca, é caveira

Com badalo de casco de burro,

Que no meio da selva agoureira

Vai fazendo medonho sussurro.

Capetinhas, trepados nos galhos

Com o rabo enrolado no pau,

Uns agitam sonoros chocalhos,

Outros põem-se a tocar marimbau.

Crocodilo roncava no papo

Com ruído de grande fragor:

E na inchada barriga de um sapo

Esqueleto tocava tambor.

Da carcaça de um seco defunto

E das tripas de um velho barão,

De uma bruxa engenhosa o bestunto

Armou logo feroz rabecão.

Assentado nos pés da rainha

Lobisome batia a batuta

Co’a canela de um frade, que tinha

Inda um pouco de carne corruta.

Já ressoam timbales e rufos,

Ferve a dança do cateretê;

Taturana, batendo os adufos,

Sapateia cantando — o le rê!

Getirana, bruxinha tarasca,

Arranhando fanhosa bandurra,

Com tremenda embigada descasca

A barriga do velho Caturra.

O Caturra era um sapo papudo

Com dous chifres vermelhos na testa,

E era ele, a despeito de tudo,

O rapaz mais patusco da festa.

Já no meio da roda zurrando

Aparece a mula-sem-cabeça,

Bate palmas, a súcia berrando

— Viva, viva a Sra. Condessa!...

E dançando em redor da fogueira

vão girando, girando sem fim;

Cada qual uma estrofe agoureira

Vão cantando alternados assim:

 

III

TATURANA

Dos prazeres de amor as primícias,

De meu pai entre os braços gozei;

E de amor as extremas delícias

Deu-me um filho, que dele gerei.

Mas se minha fraqueza foi tanta,

De um convento fui freira professa;

Onde morte morri de uma santa;

Vejam lá, que tal foi esta peça.

   

GETIRANA

Por conselhos de um cônego abade

Dous maridos na cova soquei;

E depois por amores de um frade

Ao suplício o abade arrastei.

Os amantes, a quem despojei,

Conduzi das desgraças ao cúmulo,

E alguns filhos, por artes que sei,

Me caíram do ventre no túmulo.

 

GALO-PRETO

Como frade de um santo convento

Este gordo toutiço criei;

E de lindas donzelas um cento

No altar da luxúria imolei.

Mas na vida beata de ascético

Mui contrito rezei, jejuei,

Té que um dia de ataque apoplético

Nos abismos do inferno estourei.

  

ESQUELETO

Por fazer aos mortais crua guerra

Mil fogueiras no mundo ateei;

Quantos vivos queimei sobre a terra,

Já eu mesmo contá-los não sei.

Das severas virtudes monásticas

Dei no entanto piedosos exemplos;

E por isso cabeças fantásticas

Inda me erguem altares e templos.

  

MULA-SEM-CABEÇA

Por um bispo eu morria de amores,

Que afinal meus extremos pagou;

Meu marido, fervendo em furores

De ciúmes, o bispo matou.

Do consórcio enjoei-me dos laços,

E ansiosa quis vê-los quebrados,

Meu marido piquei em pedaços,

E depois o comi aos bocados.

Entre galas, veludo e damasco

Eu vivi, bela e nobre condessa;

E por fim entre as mãos do carrasco

Sobre um cepo perdi a cabeça.

  

CROCODILO

Eu fui papa; e aos meus inimigos

Para o inferno mandei c’um aceno;

E também por servir aos amigos

té nas hóstias botava veneno.

De princesas cruéis e devassas

Fui na terra constante patrono;

Por gozar de seus mimos e graças

Opiei aos maridos sem sono.

Eu na terra vigário de Cristo,

Que nas mãos tinha a chave do céu,

Eis que um dia de um golpe imprevisto

Nos infernos caí de boléu.

  

LOBISOME

Eu fui rei, e aos vassalos fiéis

Por chalaça mandava enforcar;

E sabia por modos cruéis

As esposas e filhas roubar.

Do meu reino e de minhas cidades

O talento e a virtude enxotei;

De michelas, carrascos e frades

Do meu trono os degraus rodeei.

Com o sangue e suor de meus povos

Diverti-me e criei esta pança,

Para enfim, urros dando e corcovos,

Vir ao demo servir de pitança.

  

RAINHA

Já no ventre materno fui boa;

Minha mãe, ao nascer, eu matei;

E a meu pai, por herdar-lhe a coroa

Eu seu leito co’as mãos esganei.

Um irmão mais idoso que eu,

C’uma pedra amarrada ao pescoço,

Atirado às ocultas morreu

Afogado no fundo de um poço.

Em marido nenhum achei jeito;

Ao primeiro, o qual tinha ciúmes,

Uma noite co’as colchas do leito

Abafei para sempre os queixumes.

Ao segundo, da torre do paço

Despenhei por me ser desleal;

Ao terceiro por fim num abraço

pelas costas cravei-lhe um punhal.

Entre a turba de meus servidores

Recrutei meus amantes de um dia;

Quem gozava meus régios favores

Nos abismos do mar se sumia.

No banquete infernal da luxúria

Quantos vasos aos lábios chegava,

Satisfeita aos desejos a fúria,

Sem piedade depois os quebrava.

Quem pratica proezas tamanhas

Cá não veio por fraca e mesquinha,

E merece por suas façanhas

Inda mesmo entre vós ser rainha.

  

IV

Do batuque infernal, que não finda,

Turbilhona o fatal rodopio;

Mais veloz, mais veloz, mais ainda

Ferve a dança como um corrupio.

Mas eis que no mais quente da festa

Um rebenque estalando se ouviu,

Galopando através da floresta

Magro espectro sinistro surgiu

Hediondo esqueleto aos arrancos

Chocalhava nas abas da sela;

Era a Morte, que vinha de tranco

Amontada numa égua amarela.

O terrível rebenque zunindo

A nojenta canalha enxotava;

E à esquerda e à direita zurzindo

Com voz rouca desta arte bradava:

"Fora, fora! esqueletos poentos,

Lobisomes, e bruxas mirradas!

Para a cova esses ossos nojentos!

Para o inferno essas almas danadas!”

Um estouro rebenta nas selvas,

Que recendem com cheiro de enxofre;

E na terra por baixo das relvas

Toda a súcia sumiu-se de chofre.

  

V

E aos primeiros albores do dia

Nem ao menos se viam vestígios

Da nefanda, asquerosa folia,

Dessa noite de horrendos prodígios.

E nos ramos saltavam as aves

Gorjeando canoros queixumes,

E brincavam as auras suaves

Entre as flores colhendo perfumes.

E na sombra daquele arvoredo,

Que inda há pouco viu tantos horrores,

Passeando sozinha e sem medo

Linda virgem cismava de amores.

 

(Ilustração: Francisco de Goya - Le Sabbat)