domingo, 22 de setembro de 2019

OS FREIRÁTICOS, de Ana Miranda





Houve um tempo em que o desejo sexual transpôs os limites da espiritualidade reclusa. Os homens procuraram profanar os conceitos de virtude que os oprimiam e aos quais se submetiam num próprio ato irreverente de maculação. Como poucas vezes, a interdição sexual teve a função de afrodisíaco. Era preciso degradar o fascínio do mal; espiritualizar o corpo e erotizar a alma. Para isso, nada como buscar o prazer na escuridão das celas dos conventos. 

O demônio, que é um espírito, e espírito soberbo, sem reverência pelos lugares sagrados, entrava nos claustros religiosos, passeava nos corredores e dormitórios e, por mais fechadas que estivessem as celas, sem gazua, sem ser ladrão se metia e morava nelas. “Por sinal, senhoras, que muitas o deixastes na vossa cela, e o achareis lá quando tornardes”, pregou o jesuíta Antônio Vieira às freiras no convento de Odivelas, em 1654. 

Antes de Cristo e um pouco depois, na Igreja primitiva, o sacerdócio feminino tinha assegurado o seu direito de batizar, predicar, oficiar, exorcizar. Mais tarde a Igreja realizou suas inclinações patriarcais na criação do dogma e da hierarquia eclesiástica. Numa tentativa de transcender os instintos do ser humano, adotou a repressão, realizada através das promessas de condenação da alma. O inferno era inevitável para aqueles que se entregassem aos prazeres sexuais. A mulher, encarnação da volúpia, foi lançada a uma posição irrelevante e oculta na sociedade, ela mesma objeto das imprecações para afastar o mal. Viu usurpada a legitimidade de suas funções naturais de sedução, de sua força mágica de amar; foram envilecidos os prazeres que dela irradiam. Então, a ambivalência erótica surgiu de maneira surpreendente: a execração da mulher e a sua redenção. 

Em resposta à demonização do sexo, os instintos de Eros se manifestavam dentro dos mosteiros através de alucinações e extravasamentos, como o refinamento cruel da autoflagelação do corpo, os desfalecimentos ambíguos, as convulsões eróticas do êxtase, a homossexualidade e a própria heterossexualidade, com o testemunho do nascimento de bastardos. “Os tormentos do corpo são inumeráveis, movidos de muitas maneiras por muitos demônios”, escreveu a mística italiana santa Ângela de Fulgino, que sentia os vícios se acenderem em seu corpo, ainda que os não tivesse experimentado. 

A vocação religiosa não era um dos motivos mais importantes para se mandar uma mulher para um convento em Portugal e no Brasil, nos séculos XVII e XVIII. A rebeldia, a sensualidade, o interesse intelectual, uma personalidade excessivamente romântica e apaixonada, um corpo demasiado atraente faziam com que se encerrassem moças nas celas úmidas dos mosteiros. Os homens mandavam para lá suas bastardas, suas amantes; também as filhas que perdiam a virgindade, as estupradas, as que se apaixonavam por um homem de condição inferior ou de má reputação. Ali reuniam-se virginais predestinadas e as arrebatadas jovens das famílias. Distanciadas da companhia dos pais opressores, desfrutavam de liberdade intelectual. 

Privadas da presença dos homens, floresciam em sonhos românticos e fantasias sexuais. Nos conventos surgiram escritoras, como Mariana de Alcoforado, supostamente a autora das apaixonadas Cartas portuguesas; ou soror Violante do Céu, a dominicana intelectualizada; ou a sensível poetisa soror Maria do Céu; ou soror Maria Madalena Eufêmia da Glória. Nos conventos também surgiram amantes e cortesãs. 

Não era necessário grande beleza para se tornar uma preferida conventual nas artes do amor. Bastava uma certa doçura, malícia, sensualidade e as roupas religiosas, detrás de portas de ferro e janelas gradeadas, para arrebatar o coração de um homem. Porque, dentre eles, eram poucos os que não se tornavam “freiráticos”. 

Os verdadeiros adoradores de freiras eram platônicos. 

“Freiráticos de Odivelas/ De mil flores entre as galas/ Entram só para cheirá-las/ Porém, não para colhê-las”, diz um verso anônimo, da época. Esses devotos, como mártires, arriscavam-se aos severos castigos dos meirinhos, do Ordinário, da Inquisição, pelo prazer de trocar olhares amorosos com a desejada. Numa voluptuosa tortura ansiavam pelo mistério e respeito, pela beleza oculta e inatingível, pela “comunhão imaterial de ânsias inconfessadas”, pelos sorrisos insuspeitos, pelos beijos incertos que o amor por uma monja poderia proporcionar. 

A sedução era longamente desfrutada; a aproximação se dava num clima de excitação. Eles compareciam às cerimônias religiosas, floridos, com seus quitós dourados, um lenço de holanda fina, um livro debaixo do braço. Quase sempre homens de natureza sonhadora, eles flertavam, lançavam olhares suplicantes; enamorados, suspiravam, entregavam-se ao sofrimento. Em seguida iniciavam uma correspondência amorosa. 

As freiras, no começo, não respondiam às cartas, e apenas os mais persistentes prosseguiam até receber uma resposta, um bilhete recortado com tesoura, salpicado com água de córdova ou outro perfume caro, dizendo que não podia amar, que era muito feia, coisas assim. Mais uma carta de lá, outra de cá, uma cena de ciúmes, de rivalidade, “Para que namorou sua mercê a soror Sicrana, que agora se vinga de sua mercê e a deixar de me querer bem a mim?”, e estava consumada a aproximação. 

“Já que tem de ser, que seja em segredo”, escrevia a freira ao pretendente. Ela o convidava, então, a assistir ao sermão. Recomendava-lhe que ficasse em pé para que pudessem olhar-se. Quando se abriam as cortinas do coro, as freiras entoavam suas belíssimas vozes respondendo às antífonas, e os olhos não se desprendiam. Elas fruíam a volúpia de serem desejadas e admiradas; eles, a da violação do pudor feminino e do dogma religioso. 

Os primeiros encontros se davam no ralo, quando podiam falar-se sem se ver. O freirático entregava-se à luxúria do amor impossível; com as mãos estendidas nas folhas de metal cheias de pequenos orifícios das janelas dos conventos, colava os lábios nas cruzes douradas. Depois se viam na escuridão do locutório, recinto dividido por grades, onde as religiosas recebiam visitas. Ele tremia com a visão escura de um vulto feminino atrás das barras de ferro, murmurava, num jogo de amor lírico, sem resultados garantidos. Muitas vezes isso era tudo. 

Mas nem sempre os freiráticos ficavam do lado de fora dos conventos. Mandavam presentes, imagens de santos, presépios, capelas aos que tinham as chaves das celas; subornavam abadessas, abriam suas bolsas aos padres, para desimpedir o caminho em direção ao objeto desejado. Havia padres residentes que usavam seu trânsito nos conventos a fim de levar e trazer a correspondência dos freiráticos, com os tratos ilícitos. De noite, portões se abriam para que os amantes entrassem furtivamente; muros eram escalados, fugas eram empreendidas com escândalo, abadessas que criassem obstáculos eram ameaçadas com facas. Alguns se disfarçavam em hábito feminino para se insinuar nos corredores em busca da eleita. 

As religiosas do convento de Santa Ana de Vila de Viana tinham nas proximidades várias casinhas aonde iam, fora de clausura, com pretexto de estarem ocupadas a cozinhar, e recebiam ali homens que entravam e saíam de noite, denunciou em 1700 o rei, em Lisboa. Nas celas os catres rangiam, os corpos alvos das freiras suavam sob o calor dos nobres, estudantes, desembargadores, provinciais, infantes. Os gemidos eram abafados com beijos. 

Conventos de Portugal tomavam por modelo o de Odivelas, onde trezentas freiras belas e namoradeiras tinham, cada uma, um ou vários amantes, com os quais se distraíam. Essas religiosas eram tidas como as amantes mais atraentes dos portugueses nobres, nas palavras do general Demaurier, em 1755. Moravam em celas luxuosas, com as paredes recobertas de seda, cortinados nas janelas, lençóis de cetim; tomavam chá em xícaras de porcelana, levavam uma vida ociosa em que se entretinham a ler, pôr alcunhas, namorar e fazer doces. Chamavam a si mesmas de Caramelo, Pimentinha, Muleirinha, Caçarola, Vigairinha, Márcia Bela. Pregavam no rosto sinais de tafetá, os ferretes do inferno, usavam rendas nas camisas, luvas, leques, toalha açafroada, em irrequietos ademanes de mulheres disponíveis. Como descreveu Gongora, “Vio uma monja celebrada, tras la rexa el niño Amor, bien quebrada de color, y de amor bien requebrada”. 

Em certas manhãs elas armavam, do lado de fora do convento, um bufete de doces e pratos especiais que continham bilhetes convidando seus admiradores. Sevados, moletes, argolinhas, melindres, canelões, bolinhos do bispo, loiros, sequilhos das maltesas de Estremoz enchiam as mesas. Naquele dia, as ruas ficavam intransitáveis; as portas dos conventos, repletas de estifas, seges, carruagens. Os portões se abriam e entravam os freiráticos. Descerravam--se as cortinas da grade de proteção e perante os homens apaixonados surgiam as religiosas, com as mãos escondidas nas mangas do hábito, sérias, pálidas, belas como são as mulheres desejadas. Aos poucos elas iam abandonando o ar grave, cruzavam as pernas, tocavam violas e harpas, recitavam versos provocantes, riam, divertiam-se, diante da clientela fascinada que se empanturrava de papos de anjo, suspiros, peitos de freiras. Os doces eram trocados por prendas: um resplendor, uma cabeleira para a comédia, um casal de pombos, um cãozinho de regaço, um frasco de água da rainha da Hungria. 

Depois da grade de doces, os freiráticos podiam encontrar-se com suas musas nos locutórios, mas não a sós. Tinham de admitir a presença de uma gradeira com a missão de vigiar o que diziam e faziam. Antes do encontro, vinha uma monja confidenciar ao freirático que sua amada morria de paixão por ele. Depois entrava a desejada. Tocavam-se as pontas dos dedos; ele segurava-lhe o braço; ela mostrava-lhe o pé, o tornozelo ou, entre a alvura da toalha, desnudava o seio, que ele acariciava, sob o olhar descuidado da sentinela. 

Dentro do caráter escarninho e maldizente da tradição portuguesa, surgiu a poesia do amor freirático, ora satírica, ora lírica, mas sempre passional, em cuja liturgia afrodisíaca a obscenidade desempenhava uma função mágica, assim como de desmistificação e profanação da santidade. A adesão a uma prática libertina se realizava por meio da cumplicidade que o riso estabelece. Essa poesia tinha, também, um caráter político, pois atacava um ponto vulnerável do poder monárquico, sustentado pela autoridade da Igreja inquisitorial. 

“Quando eu estive em vossa cela / Deitado na vossa cama / Chupando nas vossas tetas / Então foi que me lembrei / Linhas brancas, linhas pretas”, escreveu um poeta anônimo, sobre mote que lhe dera uma freira. Os poemas obscenos de amores freiráticos, onde aparece a repressão ascética e aviltante do sexo e da mulher, são inúmeros. 

Neles, quase sempre, os trovadores vilipendiam em sádicos escárnios as suas companheiras de prazer. “Puta dum corno, dos diabos freira, / Eu me ausento por mais não aturar-te; / Tu cá ficas, cá podes esfregar-te / Com quem melhor te apague essa coceira”, escreveu o implacável Lobo da Mandragoa, o poeta satírico português Antonio Lobo de Carvalho. 

“Mostrem-me um homem que tratasse com freira que não saísse logrado, sevandijado, ultrajado, esfolado, arrastado, esfalfado, sacudido, consumido, vendido, aborrecido, caído, perseguido, desfavorecido, banido, tolhido”, diz o Advertências freiráticas, um manuscrito da época. Elas amavam sem amor, mentiam sem temor, pediam sem porquê, dizem as trovas populares do período, tantos eram os episódios de homens que se arruinavam para conquistar uma freira. 

Os casos se tornavam públicos. Não eram os freiráticos apenas rapazes descomprometidos, mas homens revestidos de altos cargos, na magistratura, na milícia, na Igreja, na nobreza. O conde do Rio era amante de soror Catarina de Trindade; Dom Luís da Silveira escalava o muro do convento do Salvador para encontrar sua amante; Dom Martinho de Mascarenhas visitava a Gamarra em sua cela; o conde de Valadares vestia manto e touca para visitar sua leiga de Santa Clara; o arcediago de Braga foi descoberto à noite na cela da abadessa de São Bento de Barcelos. O marquês de Gouvêa, o conde de Tarouca, o morgado de Oliveira tinham suas freiras. O famoso conde de Ericeira, Dom Fernando de Menezes, fez uma poesia a uma freira que estava a borrifar a grade do coro com água de licor-flagrante. 

Tantos foram os escândalos em mosteiros, os bastardos, as fugas, as sátiras, que Dom João V iniciou uma feroz perseguição aos freiráticos. As cadeias se encheram de homens flagrados em seus amores proibidos. Freiráticos foram desterrados para Angola, para o Brasil, foram espancados ou açoitados pelos alcaides, tosquiados de multas pelo Desembargo, presos em hospícios ou agrilhoados no Aljube. 

Mas Dom João V não teria sido o mais autorizado para essa caça aos pecadores dos conventos, não fosse ele o rei de Portugal. Era ele quem descia de seu coche em Odivelas para fazer leituras com freiras sentadas em seu colo. Frequentava as grades de doces e o chamavam de o Galo de Odivelas e de Via Longa. Teve amantes em conventos, e até mesmo filhos bastardos, chamados de “os meninos de Palhavã”, de sua amada Paula, bela madre de origem napolitana. 

Após receber críticas de seus ministros quanto ao fato de entrar pecaminosamente em lugar sagrado, o rei construiu uma casa para seus encontros, ligada ao mosteiro por uma passagem secreta. Com o ouro chegado das minas coloniais, decorou a alcova de madre Paula: tetos lavrados de talha dourada, vênus nuas pintadas por Negreiros e Quillard, silhares e cabeceiras de azulejos, leitos entalhados, relógios que tangiam minuetes, uma espineta cor-de-rosa, tapetes de damasco, baixelas, louças e dois bispotes de prata da Alemanha para que a freira urinasse suntuosamente, desenhados com figuras em baixos-relevos sobre as quais “nenhuma mulher podia debruçar-se sem corar”. 

O Brasil adotava os mesmos costumes de sua metrópole, era “espelho de Portugal, seara de vícios sem emenda”. Tanto em conventos masculinos como em femininos, pareciam incontroláveis as maquinações do instinto. Desde os tempos do padre Manoel da Nóbrega os clérigos tinham “mais ofícios de demônios”. Além dos pecados de natureza pecuniária, herética, filosófica, padres viviam concubinados com índias e negras; freiras recebiam homens em suas celas. Há raras informações sobre os freiráticos no Brasil, mas o poeta Gregório de Matos deixou depoimentos de suas aventuras nos nossos mosteiros, assim como nos de Portugal, e das aventuras de outros frequentadores. Foi recebido por uma freira que se vestia com peles preciosas de marta; amou a que se apelidava Urtiga; descreveu sua ardorosa paixão por uma monja cantora a quem “de ver fiquei sem sentido e de ouvir sem pensamentos”. A mais bela de suas histórias amorosas com as “cortesãs enclausuradas” é quando a cama de uma delas se incendeia de noite, e ele diz que foi o seu amor que queimava os corpos através dos espíritos. Era o gosto sensual do mundo, na dimensão profunda dos que têm seus pensamentos e apetites numa mesma região de prazer e dor. 

Os freiráticos partiram em mil pedaços a divisão do corpo da mulher entre céu e inferno, abrindo caminho para que se iluminassem as “trevas pecaminosas com que o platonismo cristão assombrara o paraíso dos amantes”. O verso libertino foi atenuado e depois substituído pela romântica possibilidade do amor carnal e espiritual em comunhão. A mulher pôde, assim, tratar de recuperar sua natureza feminina, atingir a plenitude de seu poder sagrado. 



(Ilustração: Clovis Trouille)


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