quinta-feira, 18 de julho de 2019

IDEOLOGIA E TERROR: UMA NOVA FORMA DE GOVERNO, de Hannah Arendt





Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. Os governos totalitários do nosso tempo evoluíram a partir de sistemas unipartidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, passavam a operar segundo um sistema de valores tão radicalmente diferente de todos os outros que nenhuma das nossas tradicionais categorias utilitárias — legais, morais, lógicas ou de bom senso — podia mais nos ajudar a aceitar, julgar ou prever o seu curso de ação. 

Se é verdade que podemos encontrar os elementos do totalitarismo se repassarmos a história e analisarmos as implicações políticas daquilo que geralmente chamamos de crise do nosso século, chegaremos à conclusão inelutável de que essa crise não é nenhuma ameaça de fora, nenhuma consequência de alguma política exterior agressiva da Alemanha ou da Rússia, e que não desaparecerá com a morte de Stálin, como não desapareceu com a queda da Alemanha nazista. Pode ser até que os verdadeiros transes do nosso tempo somente venham a assumir a sua forma autêntica — embora não necessariamente a mais cruel — quando o totalitarismo pertencer ao passado. 

Com relação a essas reflexões, podemos indagar se o governo totalitário, nascido dessa crise e, ao mesmo tempo, o seu mais claro sintoma, o único inequívoco, é apenas um arranjo improvisado que adota os métodos de intimidação, os meios de organização e os instrumentos de violência do conhecido arsenal político da tirania, do despotismo e das ditaduras, e deve a sua existência apenas ao fracasso, deplorável mas talvez acidental, das tradicionais forças políticas — liberais ou conservadoras, nacionais ou socialistas, republicanas ou monarquistas, autoritárias ou democratas. Ou se, pelo contrário, existe algo que se possa chamar de natureza do governo totalitário, se ele tem essência própria e pode ser comparado com outras formas de governo conhecidas do pensamento ocidental e reconhecidas desde os tempos da filosofia antiga, e definido como elas podem ser definidas. Se a segunda suposição for verdadeira, então as formas inteiramente novas e inauditas da organização e do modo de agir do totalitarismo devem ter fundamento numa das poucas experiências básicas que os homens podem realizar quando vivem juntos e se interessam por assuntos públicos. Se existe uma experiência básica que encontre expressão no domínio totalitário, então, dada a novidade da forma totalitária de governo, deve ser uma experiência que, por algum motivo, nunca antes havia servido como base para uma estrutura política, e cujo ânimo geral — embora conhecido sob outras formas — nunca antes permeou e dirigiu o tratamento das coisas públicas. 

Em função da história das ideias, isso parece extremamente improvável. Pois as formas de governo sob as quais os homens vivem são muito poucas; foram descobertas cedo, classificadas pelos gregos, e demonstraram rara longevidade. Se aplicarmos esses dados, cuja ideia fundamental, a despeito de muitas variações, não mudou nos dois milênios e meio que vão de Platão a Kant, somos imediatamente tentados a interpretar o totalitarismo como forma moderna de tirania, ou seja, um governo sem leis no qual o poder é exercido por um só homem. De um lado, o poder arbitrário, sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados; e, de outro, o medo como princípio da ação, ou seja, o medo que o povo tem pelo governante e o medo do governante pelo povo — eis as marcas registradas da tirania no decorrer de toda a nossa tradição. 

Em vez de dizer que o governo totalitário não tem precedentes, poderíamos dizer que ele destruiu a própria alternativa sobre a qual se baseiam, na filosofia política, todas as definições da essência dos governos, isto é, a alternativa entre o governo legal e o ilegal, entre o poder arbitrário e o poder legítimo. Nunca se pôs em dúvida que o governo legal e o poder legítimo, de um lado, e a ilegalidade e o poder arbitrário, de outro, são aparentados e inseparáveis. No entanto, o totalitarismo nos coloca diante de uma espécie totalmente diferente do governo. É verdade que desafia todas as leis positivas, mesmo ao ponto de desafiar aquelas que ele próprio estabeleceu (como no caso da Constituição Soviética de 1936, para citar apenas o exemplo mais notório) ou que não se deu ao trabalho de abolir (como no caso da Constituição de Weimar, que o governo nazista nunca revogou). Mas não opera sem a orientação de uma lei, nem é arbitrário, pois afirma obedecer rigorosa e inequivocamente àquelas leis da Natureza ou da História que sempre acreditamos serem a origem de todas as leis. 

A armação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é que, longe de ser “ilegal”, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma superior de legitimidade que, por inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores. A legalidade totalitária pretende haver encontrado um meio de estabelecer a lei da justiça na terra — algo que a legalidade da lei positiva certamente nunca pôde conseguir. A discrepância entre a legalidade e a justiça nunca pôde ser corrigida, porque os critérios de certo e errado nos quais a lei positiva converte a sua fonte de autoridade — a “lei natural” que governa todo o universo, ou a lei divina revelada na história humana, ou os costumes e tradições que representam a lei comum para os sentimentos de todos os homens — são necessariamente gerais e devem ser válidos para um número sem conta e imprevisível de casos, de sorte que cada caso individual concreto, com o seu conjunto de circunstâncias irrepetíveis, lhes escapa de certa forma. 

A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer diretamente o reino da justiça na terra, executa a lei da História ou da Natureza sem convertê-la em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual. Aplica a lei diretamente à humanidade, sem atender à conduta dos homens. Espera que a lei da Natureza ou a lei da História, devidamente executada, engendre a humanidade como produto final; essa esperança — que está por trás da pretensão de governo global — é acalentada por todos os governos totalitários. A política totalitária afirma transformar a espécie humana em portadora ativa e inquebrantável de uma lei à qual os seres humanos somente passiva e relutantemente se submeteriam. Se é verdade que os monstruosos crimes dos regimes totalitários destruíram o elo de ligação entre os países totalitários e o mundo civilizado, também é verdade que esses crimes não foram consequência de simples agressividade, crueldade, guerra e traição, mas do rompimento consciente com aquele consensus iuris que, segundo Cícero, constitui um “povo”, e que, como lei internacional, tem constituído o mundo civilizado nos tempos modernos, na medida em que se mantém como pedra fundamental das relações internacionais, mesmo em tempos de guerra. Tanto o julgamento moral como a punição legal pressupõem esse consentimento básico; o criminoso só pode ser julgado com justiça porque faz parte do consensus iuris, e mesmo a lei revelada de Deus só pode funcionar entre os homens quando eles a ouvem e aceitam. 

A essa altura, torna-se clara a diferença fundamental entre o conceito totalitário de lei e de todos os outros conceitos. A política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, não estabelece o seu próprio consensus iuris, não cria, através de uma revolução, uma nova forma de legalidade. O seu desafio a todas as leis positivas, inclusive às que ela mesma formula, implica a crença de que pode dispensar qualquer consensus iuris e ainda assim não resvalar para o estado tirânico da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo. Pode dispensar o consensus iuris porque promete libertar o cumprimento da lei de todo ato ou desejo humano; e promete a justiça na terra porque afirma tornar a humanidade a encarnação da lei. 

Essa identificação do homem com a lei, que parece fazer desaparecer a discrepância entre a legalidade e a justiça que tanto atormentou o pensamento legal desde os tempos antigos, nada tem em comum com o lumen naturale ou com a voz da consciência, por meio dos quais a Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para o ius naturale ou para os históricos mandamentos de Deus, supostamente revela a sua autoridade no próprio homem. Esta nunca fez do homem uma encarnação viva da lei mas, pelo contrário, permaneceu separada dele com a autoridade que exige consentimento e obediência. A Natureza ou a Divindade, como fonte de autoridade para as leis positivas, eram tidas como permanentes e eternas; as leis positivas eram inconstantes e mudavam segundo as circunstâncias, mas possuíam uma permanência relativa em comparação com as ações dos homens, que mudavam muito mais depressa; e derivavam essa permanência da presença eterna da sua fonte de autoridade. As leis positivas, portanto, destinam-se primariamente a funcionar como elementos estabilizadores para os movimentos do homem, que são eternamente mutáveis. 

Na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis de movimento. Embora os nazistas falassem da lei da natureza e os bolchevistas falem da lei da história, natureza e história deixam de ser a força estabilizadora da autoridade para as ações dos homens mortais; elas próprias tornam-se movimentos. Sob a crença nazista em leis raciais como expressão da lei da natureza, está a ideia de Darwin do homem como produto de uma evolução natural que não termina necessariamente na espécie atual de seres humanos, da mesma forma como, sob a crença bolchevista numa luta de classes como expressão da lei da história, está a noção de Marx da sociedade como produto de um gigantesco movimento histórico que se dirige, segundo a sua própria lei de dinâmica, para o fim dos tempos históricos, quando então se extinguirá a si mesmo. 

A diferença entre a atitude histórica de Marx e a atitude naturalista de Darwin já foi apontada muitas vezes, quase sempre com justiça, a favor de Marx. Isso nos leva a esquecer o profundo e positivo interesse de Marx pelas teorias de Darwin; para Engels, o maior cumprimento à obra erudita de Marx era chamá-lo de “Darwin da história”.[1] Se considerarmos não a obra propriamente dita, mas as filosofias básicas de ambos, verificaremos que, afinal, o movimento da história e o movimento da natureza são um só. O fato de Darwin haver introduzido o conceito de evolução na natureza, sua insistência em que, pelo menos no terreno da biologia, o movimento natural não é circular, mas unilinear, numa direção que progride infinitamente, significa de fato que a natureza está, por assim dizer, sendo assimilada à história, que a vida natural deve ser vista como histórica. A lei “natural” da sobrevivência dos mais aptos é lei tão histórica — e pôde ser usada como tal pelo racismo — quanto a lei de Marx da sobrevivência da classe mais progressista. Por outro lado, a luta de classes de Marx como força motriz da história é apenas a expressão externa do desenvolvimento de forças produtivas que, por sua vez, emanam da “energia-trabalho” dos homens. O trabalho, segundo Marx, não é uma força histórica, mas natural-biológica — produzida pelo “metabolismo [do homem] com a natureza”, através do qual ele conserva a sua vida individual e reproduz a espécie.[2] Engels viu com muita clareza a afinidade entre as convicções básicas dos dois homens porque compreendia o papel decisivo que o conceito de evolução desempenhava nas duas teorias. A tremenda mudança intelectual que ocorreu em meados do século XIX consistiu na recusa de encarar qualquer coisa “como é” e na tentativa de interpretar tudo como simples estágio de algum desenvolvimento ulterior. Que a força motriz dessa evolução fosse chamada de natureza ou de história tinha importância relativamente secundária. Nessas ideologias, o próprio termo “lei” mudou de sentido: deixa de expressar a estrutura de estabilidade dentro da qual podem ocorrer os atos e os movimentos humanos, para ser a expressão do próprio movimento. 

A política totalitária, que passou a adotar a receita das ideologias, desmascarou a verdadeira natureza desses movimentos, na medida em que demonstrou claramente que o processo não podia ter fim. Se é lei da natureza eliminar tudo o que é nocivo e indigno de viver, a própria natureza seria eliminada quando não se pudessem encontrar novas categorias nocivas e indignas de viver; se é lei da história que, numa luta de classes, certas classes “fenecem”, a própria história humana chegaria ao fim se não se formassem novas classes que, por sua vez, pudessem “fenecer” nas mãos dos governantes totalitários. Em outras palavras, a lei de matar, pela qual os movimentos totalitários tomam e exercem o poder, permaneceria como lei do movimento mesmo que conseguissem submeter toda a humanidade ao seu domínio. 

Por governo legal compreendemos um corpo político no qual há necessidade de leis positivas para converter e realizar o imutável ius naturale ou a eterna lei de Deus, em critérios de certo e errado. Somente nesses critérios, no corpo das leis positivas de cada país, o ius naturale ou os Mandamentos de Deus atingem realidade política. No corpo político do governo totalitário, o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total, que se destina a converter em realidade a lei do movimento da história ou da natureza. Do mesmo modo como as leis positivas, embora definam transgressões, são independentes destas — a ausência de crimes numa sociedade não torna as leis supérfluas, mas, pelo contrário, significa o mais perfeito domínio da lei —, também o terror no governo totalitário deixa de ser um meio para suprimir a oposição, embora ainda seja usado para tais fins. O terror torna-se total quando independe de toda oposição; reina supremo quando ninguém mais lhe barra o caminho. Se a legalidade é a essência do governo não tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania, então o terror é a essência do domínio totalitário. 

O terror é a realização da lei do movimento. O seu principal objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea. Como tal, o terror procura “estabilizar” os homens afim de liberar as forças da natureza ou da história. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre, de oposição ou de simpatia, interfira com a eliminação do “inimigo objetivo” da História ou da Natureza, da classe ou da raça. Culpa e inocência viram conceitos vazios; “culpado” é quem estorva o caminho do processo natural ou histórico que já emitiu julgamento quanto às “raças inferiores”, quanto a quem é “indigno de viver”, quanto a “classes agonizantes e povos decadentes”. O terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu tribunal todos os interessados são subjetivamente inocentes: os assassinados porque nada zeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não assassinaram, mas executaram uma sentença de morte pronunciada por um tribunal superior. Os próprios governantes não afirmam serem justos ou sábios, mas apenas executores de leis históricas ou naturais; não aplicam leis, mas executam um movimento segundo a sua lei inerente. O terror é a legalidade quando a lei é a lei do movimento de alguma força sobre-humana, seja a Natureza ou a História. 

O terror, como execução da lei de um movimento cujo fim ulterior não é o bem-estar dos homens nem o interesse de um homem, mas a fabricação da humanidade, elimina os indivíduos pelo bem da espécie, sacrifica as “partes” em benefício do “todo”. A força sobre-humana da Natureza ou da História tem o seu próprio começo e o seu próprio fim, de sorte que só pode ser retardada pelo novo começo e pelo fim individual que é, na verdade, a vida de cada homem. 

No governo constitucional, as leis positivas destinam-se a erigir fronteiras e a estabelecer canais de comunicação entre os homens, cuja comunidade é continuamente posta em perigo pelos novos homens que nela nascem. A cada nascimento, um novo começo surge para o mundo, um novo mundo em potencial passa a existir. A estabilidade das leis corresponde ao constante movimento de todas as coisas humanas, um movimento que jamais pode cessar enquanto os homens nasçam e morram. As leis circunscrevem cada novo começo e, ao mesmo tempo, asseguram a sua liberdade de movimento, a potencialidade de algo inteiramente novo e imprevisível; os limites das leis positivas são para a existência política do homem o que a memória é para a sua existência histórica: garantem a preexistência de um mundo comum, a realidade de certa continuidade que transcende a duração individual de cada geração, absorve todas as novas origens e delas se alimenta. 

Confundir o terror total com um sintoma de governo tirânico é tão fácil porque o governo totalitário, em seus estágios iniciais, tem de conduzir-se como uma tirania e põe abaixo as fronteiras da lei feita pelos homens. Mas o terror total não deixa atrás de si nenhuma ilegalidade arbitrária, e a sua fúria não visa ao benefício do poder despótico de um homem contra todos, e muito menos a uma guerra de todos contra todos. Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens individuais, constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas. Abolir as cercas da lei entre os homens — como o faz a tirania — significa tirar dos homens os seus direitos e destruir a liberdade como realidade política viva; pois o espaço entre os homens, delimitado pelas leis, é o espaço vital da liberdade. O terror total usa esse velho instrumento da tirania mas, ao mesmo tempo, destrói também o deserto sem cercas e sem lei, deserto da suspeita e do medo que a tirania deixa atrás de si. Esse deserto da tirania certamente já não é o espaço vital da liberdade, mas ainda deixa margem aos movimentos medrosos e cheios de suspeita dos seus habitantes. 

Pressionando os homens, uns contra os outros, o terror total destrói o espaço entre eles; comparado às condições que prevalecem dentro do cinturão de ferro, até mesmo o deserto da tirania, por ainda constituir algum tipo de espaço, parece uma garantia de liberdade. O governo totalitário não restringe simplesmente os direitos nem simplesmente suprime as liberdades essenciais; tampouco, pelo menos ao que saibamos, consegue erradicar do coração dos homens o amor à liberdade, que é simplesmente a capacidade de mover-se, a qual não pode existir sem espaço. 

O terror total, a essência do regime totalitário, não existe a favor nem contra os homens. Sua suposta função é proporcionar às forças da natureza ou da história um meio de acelerar o seu movimento. Esse movimento, transcorrendo segundo a sua própria lei, não pode ser tolhido a longo prazo; no fim, a sua força se mostrará sempre mais poderosa que as mais poderosas forças engendradas pela ação e pela vontade do homem. Mas pode ser retardado, e é retardado quase inevitavelmente pela liberdade do homem; nem mesmo os governantes totalitários podem negar essa liberdade — por mais irrelevante e arbitrária que lhes pareça —, porque ela equivale ao fato de que os homens nascem e que, portanto, cada um deles é um novo começo e, em certo sentido, o início de um mundo novo. Do ponto de vista totalitário, o fato de que os homens nascem e morrem não pode ser senão um modo aborrecido de interferir com forças superiores. O terror, portanto, como servo obediente do movimento natural ou histórico, tem de eliminar do processo não apenas a liberdade em todo sentido específico, mas a própria fonte de liberdade que está no nascimento do homem e na sua capacidade de começar de novo. No cinturão de ferro do terror, que destrói a pluralidade dos homens e faz de todos aquele Um que invariavelmente agirá como se ele próprio fosse parte da corrente da história ou da natureza, encontrou-se um meio não apenas de libertar as forças históricas ou naturais, mas de imprimir-lhes uma velocidade que elas, por si mesmas, jamais atingiriam. Na prática, isso significa que o terror executa sem mais delongas as sentenças de morte que a Natureza supostamente pronunciou contra aquelas raças ou aqueles indivíduos que são “indignos de viver”, ou que a História decretou contra as “classes agonizantes”, sem esperar pelos processos mais lerdos e menos eficazes da própria história ou natureza. 

Nesse conceito, onde o movimento se torna a essência do próprio regime, um problema muito antigo do pensamento político parece encontrar solução semelhante à que já vimos para a discrepância entre a legalidade e a justiça. Se a essência do governo é definida como a legalidade, e se fica compreendido que as leis são as forças estabilizadoras dos negócios públicos dos homens (como realmente sempre o foram desde que Platão invocou em suas Leis a Zeus, o deus dos limites), surge então o problema do movimento do corpo político e dos atos dos seus cidadãos. A legalidade impõe limites aos atos, mas não os inspira; a grandeza, mas também a perplexidade, das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se deve fazer, mas nunca o que se deve fazer. O necessário movimento de um corpo político não se encontra em sua essência, porque essa essência — novamente desde Platão — sempre foi definida com vistas à sua permanência. A continuidade sempre pareceu um dos modos mais seguros de medir a virtude de um governo. Para Montesquieu, a suprema prova da imperfeição da tirania era ainda o fato de que somente as tiranias tendiam a se destruir por dentro, a engendrar o seu declínio, enquanto eram circunstâncias externas que destruíam todos os outros governos. Portanto, o que sempre faltou à definição de governo é o que Montesquieu chamou de um “princípio de ação” que, sendo diferente para cada forma de governo, inspiraria governantes e cidadãos em sua atividade pública e serviria como critério, além da avaliação meramente negativa da legalidade, para julgar todos os atos no terreno das coisas públicas. Esses princípios orientadores e critérios da ação, segundo Montesquieu, são, numa monarquia, a honra; numa república, a virtude; e numa tirania, o medo. 

Num perfeito governo totalitário — onde todos os homens tornaram-se Um-SóHomem, onde toda ação visa à aceleração do movimento da natureza ou da história, onde cada ato é a execução de uma sentença de morte que a Natureza ou a História já pronunciou, isto é, em condições nas quais se pode ter plena certeza de que o terror manterá o movimento em constante atividade —, um princípio de ação separado da sua essência seria absolutamente desnecessário. Não obstante, enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e, com o cinturão de ferro do terror, não transforma cada homem em parte de uma humanidade única, o terror, em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de movimento, não pode ser completamente realizado. Do mesmo modo como a legalidade, no governo constitucional, é insuficiente para inspirar e guiar as ações dos homens, também o terror no governo totalitário não é suficiente para inspirar e guiar o comportamento humano. 



(Origens do totalitarismo; tradução de Roberto Raposo) 



Notas: 

[1] Na oração fúnebre a Marx, Engels disse: “Tal como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da vida orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana”. Comentário semelhante encontra-se na introdução que Engels escreveu para a edição de 1890 do Manifesto comunista; e, na introdução a Ursprung der Familie, ele menciona outra vez, lado a lado, “a teoria da evolução de Darwin” e a “teoria de Marx da mais-valia”. 

[2] Quanto ao conceito de Marx do trabalho como “necessidade eterna imposta pela natureza, sem a qual não pode haver metabolismo entre o homem e a natureza e, portanto, não pode haver vida”, ver O capital, vol. I, parte I, capítulos 1 e 5. O trecho citado é do capítulo 1, seção 2. 



(Ilustração: Francisco de Goya - Saturno)

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