quarta-feira, 24 de julho de 2019

A SENHORA P, de Hilda Hilst


   





Convivo há alguns dias com a senhora P, a porca que escapuliu do quintal de algum. Abri a porta e ela entrou numa corrida guinchada, bambolando. Lá fora o estriduloso da vizinhança, depois silêncio, depois algumas chalaças gritadas mas nem tanto. Depois algum lapuz berrou: vá vá Dominico, deixa a porca pra louca, tu tem tantas, porca e louca se entendem. Ficou num esquinado ao lado da cozinha, achei uns guardados de milho, dei água, umas verduras velhas arrancadas do que foi horta um dia no quintal. Olhei a macieira de maçãs azedinhas, disse que não tocaria mais coisa tão viva mas toquei, vivas nem tanto, são pequenas maçãs, esboçam o vermelho, tímidas em redondez, mais desengonço que redondo, não me queimam as mãos. Tento sair da minha pulverescência, e olho longamente a senhora P. Me olha. É parda, soturna, medrosa, no lombo uma lastimadura, um rombo sanguinolento. Hoje pude me aproximar muito lenta, e como diria o sóbrio: pensei-lhe os ferimentos. Roxoencarnado sem vivez este rombo me lembra minha própria ferida, espessa funda ferida da vida. Porque não me tocaste, Senhor, e nem me pensaste sóbrio os ferimentos, porque nem o calor da ponta dos teus dedos foi sentido por mim, porque mergulho num grosso emaranhado de solidões e misérias e te buscando emerjo de mim mesma as mãos cheias de lodo e de poeira, este meu roxoencarnado sem vivez reside em mim há séculos, lapidescente na superfície mas fervilhante e rubro logo abaixo, eterno em dor com a tua esquivez. Rimas pesadas ciciosas, sem intenção, e os unguentos no lombo da senhora P, roçados de focinho, fungadas mornas no meu braço, os olhos um aquoso de incompreensão e de doçura, um sem-Deus sem-Deus hifenizado sempre, semDeus sem-Deus. Conheces o canto do pássaro sem-fim, senhora P? sem-fim, sem-fim, sem-fim nosso existir sem-Deus. E me vem que só posso entender a senhora P, sendo-a. Me vem também, Senhor, que de um certo modo, não sei como, me vem que muito desejas ser Hillé, um atormentado ser humano. E SENTIR. Ainda que seja o aguilhão de um roxo-encarnado aparentemente sem vivez. 

E há de vir um tempo, meu pai, que tu e eu não estaremos mais, nem Ehud, e estaremos onde num sem tempo? Que hei de ficar tão velha e rígida como um tufo de urtigas as urtigas são veludosas 

Que hei de ficar tão velha e rígida como um tufo de urtigas, e leve num sem carnes, e tateante de coisas mortas, a cabeça fremente de clarões, a boca expelindo ainda palavras-agonia, datas, números, o nome dos meus cães, bacias de água quente pela casa os pés estão gelados, traz as bacias, deixa-me esfregar assim, ah, não adianta o nome dos meus cães, dos três pássaros, pedaços de frases 


incrível      sol   mo 

noite                 da 

dor pouco 

luz     palidez      am 

estranho      cães     sa 


incrível o sol de hoje e ela morrendo à noite ela tem muita dor e é noite daqui a pouco na luz vê-se mais a palidez, ela resiste até quando? até amanhã, disseram estranho, os cães ficam todos ao redor, eles sabem sabem sim, os cães de Hillé sabem como todos os cães não olha, até a porca vem vindo 

a senhora P. é esse o nome que Hillé deu à porca Hillé era turva, não? 

um susto que adquiriu compreensão. 

que cê disse, menino? o que você ouviu: um susto que adquiriu compreensão. isso era Hillé. 

Ahn. cê é daqui, menino? 

eu moro longe. mas conheci Hillé muito bem. 

como cê chama? 

me chamam de Porco-Menino. 

Por quê? 

Porque eu gosto de porcos. Gosto de gente também. 

Ahn. 


Livrai-me, Senhor, dos abestados e dos atoleimados. 



(A obscena senhora D) 





(Ilustração: esc. de Matt Verginer; foto sem indicação de a.)


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