quinta-feira, 14 de abril de 2016
TINHAM NOS AGARRADO QUE NEM RATOS, de Louis-Ferdinand Céline
Foi assim que isso começou. Eu nunca tinha dito nada. Nada. Foi Arthur Ganate que me fez falar. Arthur, um estudante de medicina, ele também, um colega. Nos encontramos na praça Clichy. Era depois do almoço. Quer falar comigo. Escuto. “Não vamos ficar do lado de fora!”, ele me diz. “Vamos entrar!” Entro. Pronto. “Essa varanda”, começa, “é para os ovos quentes! Vem para cá!” E aí a gente percebe que não tinha ninguém na rua, por causa do calor; nenhum carro, nada. Quando faz muito frio também não tem ninguém na rua; me lembro até que foi ele quem me disse a esse respeito: “Os parisienses têm cara de quem vive ocupado, mas na verdade passeiam de manhã à noite; a prova é que quando o tempo não está bom para passear, frio demais ou quente demais, eles desaparecem; está tudo dentro, tomando café com leite e cerveja. Assim é! Século de velocidade! é o que dizem. Onde? Grandes mudanças! é o que contam. Como assim? Na verdade nada mudou. Continuam a se admirar, e mais nada. E isso também não tem nada de novo. Palavras, e ainda assim poucas, mesmo entre as palavras, que mudaram! Duas ou três aqui e acolá, umas palavrinhas...”. E aí, muito orgulhosos de termos proclamado essas verdades úteis, ficamos ali sentados, radiantes, olhando as mulheres do bar.
Depois, o papo voltou para o presidente Poincaré que ia inaugurar, justamente naquela manhã, uma exposição de cachorrinhos; e depois, conversa vai conversa vem, para o Le Temps, onde isso estava escrito. “Esse aí é um jornal do barulho, o Le Temps!”, Arthur mexe comigo. “Igual a ele para defender a raça francesa não tem outro! — Bem que ela precisa, a raça francesa, já que não existe!”, respondi na bucha, para mostrar que eu sabia das coisas.
— Claro que sim! que existe uma! E uma bela de uma raça! — insistia ele —, e é até a raça mais bonita do mundo, e é um veado quem disser o contrário! — E aí, partiu para me esculhambar. Aguentei firme, é claro.
— É mentira! A raça, o que você chama de raça, não passa dessa grande corja de fodidos de minha espécie, catarrentos, pulguentos, espezinhados, que vieram parar aqui perseguidos pela fome, pela peste, pelas doenças e pelo frio, os vencidos dos quatro cantos do mundo. Não podiam ir mais longe por causa do mar. A França é isso e os franceses são isso.
— Bardamu — diz-me então, grave e um pouco triste —, nossos pais valiam tanto quanto nós, não fale mal deles!...
— Tem razão, Arthur, nisso você tem razão! Cheios de ódio e dóceis, estuprados, espoliados, sangrados e eternamente babacas, valiam tanto quanto nós! Isso você não pode negar! Nós não mudamos! Nem de meias, nem de mestres, nem de opiniões, ou então tão tarde que não vale mais a pena. Nascemos fiéis, estamos morrendo por causa disso! Soldados gratuitos, heróis para todo mundo e macacos falantes, palavras que sofrem, nós é que somos os xodós do Rei Miséria. É ele que nos possui! Quando a gente se comporta mal, ele nos aperta... Seus dedos estão sempre no nosso pescoço, sempre, isso atrapalha para falar, temos que prestar muita atenção se queremos poder comer... Basta uma coisinha à toa e ele nos estrangula... Isso não é vida...
— Existe o amor, Bardamu!
— Arthur, o amor é o infinito posto ao alcance dos cachorrinhos, e eu tenho minha dignidade, ora essa! — respondo.
— Vamos falar de você! Você é um anarquista, e mais nada! Em todo caso, um espertinho, o que vocês já devem estar notando, e com opiniões para lá de avançadas.
— Você está coberto de razão, sou um anarquista mesmo! E a melhor prova é que escrevi uma espécie de oração vingativa e social pela qual você vai me dar já já os parabéns: as asas de ouro! É o título!... — E aí recito para ele:
Um Deus que conta os minutos e os tostões, um Deus desesperado, sensual e resmungão como um porco. Um porco com asas de ouro, que cai por todo lado, de barriga para cima, pronto para ser acariciado, é ele, é nosso mestre. Beijemo-nos!
— Sua historinha não se sustenta diante da vida, sou a favor da ordem estabelecida e não gosto de política. E aliás no dia em que a pátria me pedir para derramar meu sangue por ela, há de me encontrar, é claro, e nem um pouco preguiçoso, disposto a lhe dar.
Foi isso que ele me respondeu.
Justamente a guerra se aproximava de nós dois sem que tivéssemos percebido, e minha cabeça já estava meio que batendo pino. Essa discussão curta mas exaltada tinha me cansado. Além do mais, eu também estava aborrecido porque o garçom me tratou de pão-duro por causa da gorjeta. Finalmente, Arthur e eu fizemos as pazes. Tínhamos a mesma opinião sobre quase tudo.
— É verdade, resumindo você tem razão — concordei, conciliador —, mas pensando bem estamos todos sentados numa imensa galera, remando sem parar, não é você que vai me dizer o contrário!... Sentados direto em cima dos pregos, e puxando tudo, nós aqui! E o que é que se tem em troca? Nada! Só porradas, desgraças, mentiras e tudo que é safadeza. Estamos trabalhando! dizem eles. É isso que é ainda mais nojento do que qualquer outra coisa, o trabalho deles. A gente fica lá embaixo, nos porões, botando os bofes pela boca, fedendo, os colhões pingando, e azar o nosso! Lá em cima, no tombadilho, no fresco, estão os mestres, pouco se lixando, com lindas mulheres cor-de-rosa e inundadas de perfumes, nos joelhos. Mandam a gente subir até o tombadilho. E aí, põem suas cartolas e depois nos metem pelo meio da cara um esporro daqueles: “Cambada de escrotos, estamos em guerra!”, dizem. “Vamos atracar onde estão os filhos da puta da pátria número 2, vamos meter-lhes bala nos peitos! Andem! Andem! A bordo vocês têm tudo o que é preciso! Todos em coro! Comecem a se esgoelar, a plenos pulmões, vamos ver só, e que tudo estremeça: Viva a Pátria número 1! Que sejam ouvidos de longe! Quem berrar mais alto vai receber a medalha e uns santinhos do Menino Jesus! Santo Deus! E tem mais: quem não quiser morrer no mar pode ir morrer na terra onde a coisa ainda é mais rápida do que aqui!”
— É isso mesmo! — concordou Arthur, que positivamente agora se convencia com facilidade.
Mas não é que bem defronte do café onde estávamos sentados um regimento começa a passar, e com o coronel à frente, em seu cavalo? E não é que ele tinha um jeitão muito simpático e tremendamente alegre, o coronel? Quanto a mim, tudo o que eu fiz foi dar um pulo de entusiasmo.
— Vou ver se é assim mesmo! — grito para Arthur —, e lá vou eu me alistar, e ainda por cima a passos rápidos.
— Você é mesmo um bab..., Ferdinand! — é o que ele grita de lá, Arthur, sem a menor dúvida envergonhado pelo espanto que meu heroísmo causava em todos que nos olhavam.
Isso me melindrou um pouco, que ele tomasse a coisa desse jeito, mas nem por isso parei. Eu estava andando a passo. “Já que estou aqui, vou continuar!”, pensei.
— Vamos ver que bicho que vai dar tudo isso, viu, seu bestalhão! — ainda tive até tempo de lhe gritar antes de fazer a curva com o regimento atrás do coronel e de sua música. Foi exatamente assim que isso aconteceu.
E então a gente marchou um tempão. Havia carradas de ruas, e nelas civis e suas mulheres que nos estimulavam e que jogavam flores, das varandas, diante das estações de trem, das igrejas repletas. Como havia patriotas! E depois começou a haver menos patriotas... Caiu uma chuva, e depois cada vez menos e depois mais nenhum estímulo, nem um único, pelo caminho.
Quer dizer que não havia mais ninguém, que só éramos nós? Uns atrás dos outros? A música parou. “Pensando bem”, disse então para mim mesmo, quando vi como era aquilo, “já não tem a menor graça! Vamos ter de recomeçar tudo de novo!” Eu ia ir embora. Mas era tarde demais! Devagarinho, tinham fechado a porta atrás de nós, os civis. Tinham nos agarrado que nem ratos.
(Viagem ao fim da noite; tradução de Rosa Freire d’Aguiar)
(Ilustração: Salvador Dalí)
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