segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
DANDO O TROCO, de Howard Jacobson
Finkler
fez por onde.
Foi
essa a conclusão de Tyler Finkler à época e também de Julian Treslove. Sam ia
ter o troco.
O
argumento de Tyler Finkler era mais forte. O marido estava trepando com outras
mulheres. Ou se não estivesse trepando com outras mulheres, poderia muito bem
estar trepando com outras mulheres, dado o volume de atenção que dispensava a
ela.
Para
Treslove, simplesmente Finkler teria o troco por ser finkler. Mas Treslove
também achava que uma mulher tão bonita quanto Tyler não devia ter de sofrer.
Tyler
Finkler. A falecida Tyler Finkler.
Lembrando-se dela enquanto tomava um segundo café, Treslove soltou um suspiro
profundo.
-
Sam está envolvido num projeto que lhe demanda muito - justificara para Tyler,
então. - É um sujeito ambicioso. Foi um garoto ambicioso.
-
Meu marido foi um garoto!
Treslove
sorrira sem jeito. Finkler não havia sido, com efeito, propriamente um garoto,
mas não lhe pareceu correto dizer isso à esposa enfurecida de Finkler.
Os
dois estavam deitados na cama de Treslove naquele subúrbio que ele insistia em
chamar de Hampstead. Não deveriam estar deitados na cama de Treslove em
subúrbio algum. Ambos sabiam disso. Mas Finkler fizera por onde.
Tyler
não ligara para Treslove a princípio para indagar se podia aparecer para
assistir ao primeiro programa da nova série do marido na TV de Treslove.
-
Claro - respondeu Treslove -, mas você não assistir com Sam?
-
Samuel está assistindo ao programa com a equipe, codinome amante.
Tyler
era a única pessoa que ainda chamava Sam de Samuel. Dava-lhe poder sobre o
marido, o poder de alguém que conhecera uma pessoa importante antes que ela se
tornasse uma pessoa importante. Às vezes, ela ia mais longe e o chamava de
Shmuelly para recordá-lo de suas origens, sempre que ele parecia correr o risco
de esquecê-las.
-
Oh - disse Treslove.
-
E o pior é que ela nem é a porra da diretora. Não passa de assistente de
produção.
-
Ah - disse Treslove, imaginando se Tyler estaria assistindo ao programa com
Sam, caso Sam, de forma mais convencional, estivesse trepando com a diretora.
Nunca se sabe exatamente onde se pisa quando se trata de finklers, homens ou
mulheres, e de questões que giram em torno de humilhação e prestígio. Os não
finklers pensam que todas as infidelidades são iguais, mas, por experiência,
Treslove sabia que os finklers são capazes de fazer concessões se o terceiro
por acaso for alguém importante. O príncipe Philip, Bill Clinton, até o papa.
Treslove esperava não estar estereotipando ninguém pensando assim.
-
Você vai trazer as crianças? - indagou Treslove.
-
As crianças? As crianças estão
estudando fora. Logo vão entrar na faculdade. Ao menos finja algum interesse,
Julian.
-
Não sou chegado a filhos - explicou ele. - Nem aos meus.
-
Bom, você não precisa se preocupar. Não vamos fazer filho nenhum. Meu corpo já
passou dessa fase.
-
Oh - disse Treslove.
Foi
a primeira pista de que e a mulher do seu amigo não veriam muita televisão
naquela noite.
-
Ah - disse ele para si mesmo, debaixo do chuveiro, como se fosse a vítima do que
quer que estivesse para acontecer, em lugar de um parceiro ativo na coisa toda.
Mas nunca houve a mais remota possibilidade de que pudesse ser capaz de
resistir a Tyler, por mais que ela o estivesse usando apenas para se vingar do
marido.
Embora
Tyler não fosse o tipo de mulher por quem normalmente se apaixonasse, ele se apaixonara
por ela mesmo assim na primeira vez que Sam a apresentou como esposa. Não via o
amigo havia algum tempo e não sabia que
ele estava namorando firme, muito menos que se casara. Mas esse um hábito de
Finkler: erguer a barra da própria vida um tiquinho, tão somente o bastante
para fazer Treslove se sentir intrigado e excluído, e depois baixá-la outra
vez.
A
recém-casada sra. Finkler não era de fato bonita, mas era como se fosse, morena
e angulosa, com feições nas quais um homem descuidado poderá se cortar e olhos
impiedosamente sarcásticos. Embora houvesse pouca carne a lhe cobrir os ossos,
de alguma forma ela conseguia sugerir ocasiões voluptuosas. Sempre que Treslove
a encontrava, Tyler estava vestida como se fosse a um banquete oficial, onde
comeria pouco, falaria com segurança, dançaria com graça com quantos pares
precisasse dançar e atrairia olhares admiradores de todos os presentes. Era o
tipo de mulher da qual um homem de sucesso precisa. Competente, sociável,
altivamente elegante - desde que esse homem não a esquecesse por causa do
sucesso. A palavra úmida vinha à
mente de Treslove quando ele pensava em Tyler Finkler. O que o surpreendia, já
que sua superfície era árida. Mas Treslove imaginava como ela seria por baixo
da superfície, quando penetrasse seu sombrio mistério feminino. Ela habitava
algum lugar onde ele jamais estaria e onde ele provavelmente não deveria sequer
pensar em estar. Era a eterna mulher finkler. Daí jamais ter existido para
Treslove a mais remota possibilidade de recusar a oferta quando a recebeu. Ele
precisava descobrir como seria penetrar o mistério feminino sombrio e úmido de
uma finkleresa.
Os
dois ligaram a televisão, mas não assistiram a um único segmento do programa de
Sam.
-
Que grande mentiroso - disse ela, despindo um vestido que poderia ser usado
para assistir à condecoração do marido como cavaleiro. - Cadê aquela filosofia
todo quando não sirvo o jantar dele na hora certa? Cadê aquela filosofia toda
quando deveria estar com o pau dentro das calças por aí?
Treslove
nada disse. Era estranho estar diante da cara do amigo na tela da TV ao mesmo
tempo que segurava a mulher do amigo nos braços. Não que Tyler estivesse de
fato em seus braços. Tyler gostava
que fizessem amor a distância, como se não estivesse de fato acontecendo. Boa
parte do tempo, ela nem olhou para Treslove, trabalhando em seu pênis com a mão
atrás das costas, como se abotoasse um sutiã complicado ou lutasse com um vidro
difícil de abrir, enquanto comentava o marido, matraqueando incessantemente.
Preferia a luz acesa e não via qualquer virtude sensual no silêncio. Apenas
quando a penetrou - rapidamente, porque ela lhe disse que não lhe agradavam
intercursos longos - Treslove conseguiu de fato encontrar a sombria e cálida umidade finkleresa que antecipara. E ela
superou toda e qualquer expectativa.
Deitado
de costas, sentiu as lágrimas brotarem em seus olhos. E disse a ela que a
amava.
-
Não seja ridículo - rebateu Tyler. - Você nem sequer me conhece. Era com Sam
que você estava transando.
Ele
se sentou na cama.
-
Definitivamente não.
-
Não me importo. Por mim, tudo bem. A gente pode até repetir. E, se você se
excita por trepar com seu amigo, trepar ou lhe passar a perna, não há por que
tergiversar, por mim tudo bem.
Treslove
se apoiou no cotovelo para fitá-la, mas novamente ela lhe dera as costas. Ele
estendeu a mão para lhe acariciar os cabelos.
-
Não faça isso - objetou Tyler.
-
O que você não entende é que esta é a minha primeira vez.
-
A primeira vez que você transa? - Na verdade, ela não parecia muito surpresa.
-
A primeira vez... - Soava insosso agora que ele traduzia em palavras. - A
primeira vez... você sabe...
-
A primeira vez que você sacaneia Samuel? Eu não me preocuparia com isso. Ele
não pensaria duas vezes em fazer o mesmo com você. Provavelmente, até já fez.
Ele encara o fato como droit de
philosophe. Por ser um pensador, acha que tem o direito de foder quem bem
quiser.
-
Eu não quis dizer isso. Eu quis dizer que você a minha primeira...
Dava
para perceber que sua hesitação começava a irritá-la. A cama congelou ao redor
dela.
-
Primeira o quê? Desembuche. Mulher casada? Mãe? Esposa de um apresentador de
TV? Mulher sem diploma?
-
Você não tem diploma?
-
Primeira o quê, Julian?
Ele
engoliu a palavra duas ou três vezes, mas precisava ouvi-la da própria boca.
Dizer era quase tão doce em sua perversão quanto fazer.
-
Judia - conseguiu finalmente falar. - Judiiiiia - repetiu, demorando-se para
terminar, deixando as sílabas esquentarem em seus lábios.
Ela
se virou como se pela primeira vez precisasse ver como ele era, os lhos
brilhando com zombaria.
-
Judia? Você acha mesmo que sou uma judia?
-
E não é?
-
Essa é a pergunta mais gentil que você poderia me fazer. Mas de onde você tirou
a ideia de que eu seja o produto genuíno?
Treslove
não conseguiu pensar em algo para dizer, havia tanta coisa.
-
Tudo - foi o que, afinal, achou como resposta. Lembrou-se de ter ido a um bar
mitzvah de algum dos filhos de Finkler, mas, como não tinha certeza de qual
deles, permaneceu calado a esse respeito.
-
Bom, o seu tudo é nada - disse ela.
Ele
estava amargamente desconcertado. Tyler não nascera judia? Então o que era aquela sombria umidade na qual
penetrara?
Ela
fez beicinho para ele (e isso por
acaso não era tipicamente judeu?).
-
Você acha, honestamente, que Samuel se casaria com uma judia?
-
Bom, não pensei que não casasse.
-
Então, você conhece muito pouco o meu marido. É atrás das gentias que ele
corre. Sempre correu. Você devia saber disso. Ele transou com judias. Nasceu
judeu. Elas não podem rejeitá-lo. Então, por que perder tempo com elas? Ele
teria se casado comigo na igreja se eu pedisse. Ficou ligeiramente furioso
comigo porque não pedi.
-
Então, por que você não pediu?
Ela
riu. Um ruído rouco de uma garganta seca.
-
Porque sou uma outra versão dele, só isso. Cada um de nós queria conquistar o
universo do outro. Ele queria que as goyim
o amassem. Eu queria ser amada pelos judeus. E gostava da ideia de ter filhos
judeus. Achava que eles se sairiam melhor na escola. E, cara, não que se saíram
mesmo?
(Ela
se orgulhava deles - isso também não
era tipicamente judeu?).
Treslove
estava perplexo.
-
Pode-se ter filhos judeus sem ser judia?
-
Não aos olhos dos ortodoxos. Não é fácil, de todo jeito. Mas nós fizemos um
casamento liberal. Até precisei me converter para isso. Durante dois anos eu
investi, aprendi como administrar um lar judeu, como ser uma mãe judia. Me
pergunte qualquer coisa que queira saber sobre judaísmo que eu respondo. Como
preparar uma galinha kosher, como
acender as velas do shabbes, o que
fazer em um mikva. Você quer que lhe
diga como uma boa judia sabe que sua menstruação acabou? Conheço mais a cultura
judaica do que todas as judias echt
de Hampstead juntas.
Treslove
se abstraiu, mentalmente juntando todas as judias não judias de Hampstead, mas o que perguntou foi:
-
O que é um mikva?
-
Um banho ritual. A gente vai lá para se purificar para o nosso marido judeu,
que morre se encostar numa gota de sangue da gente.
-
Sam quis que você fizesse isso?
-
Samuel não, eu quis. Samuel não estava nem aí. Achava uma barbárie essa
preocupação com o sangue menstrual, do qual, a bem da verdade, ele gosta um
bocado, o tarado. Fui ao mikva por
mim mesma. Achei calmante. Sou a parte judia do casal, mesmo tendo nascido
católica. Sou a princesa judia sobre a qual se lê nos contos de fada, só que
não sou judia. A ironia é que...
-
Ele trepa com as shiksas?
-
Óbvio demais. Ainda sou uma shiksa para
ele. Se ele quiser o proibido, pode tê-lo em casa. A ironia é que ele trepa com
as judias. Esse cocô da Ronit Kravitz, a assistente de produção. Eu não me
espantaria se ele a convertesse.
-
Acho que você tinha dito que ela já é judia.
-
Convertê-la ao cristianismo, seu pateta.
Treslove
calou-se. Havia tanta coisa que ele não entendia. E tanta coisa para deixá-lo
nervoso. Sentiu que haviam lhe dado um prêmio que há muito almejava, mas apenas
para tirá-lo dele antes que sequer encontrasse um lugar para exibi-lo. Tyler
Finkler não era uma finkler! Consequentemente, o profundo, úmido e sombrio
mistério de uma mulher finkler continuava, estritamente falando - e esse era um
conceito estrito, afinal -, desconhecido para ele.
Ela
começou a se vestir.
-
Espero não ter decepcionado você - disse Tyler.
-
Me decepcionado? Imagine. Você vem ver o segundo programa aqui?
-
Reflita a respeito.
-
O que há para refletir?
-
Ah, você sabe... - respondeu ela.
Tyler
não o beijou ao sair.
Mas
voltou-se da porta, para fitá-lo.
-
Um sábio conselho: não deixem que peguem você falando "judiiiiia" -
avisou, imitando a forma lânguida como ele pronunciara a palavra. - Elas não
gostam.
(A
Questão Finkler, tradução de Regina
Lyra)
(Ilustração: Angel Zárraga - la femme et le pantin)
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Howard Jacobson - Dando o troco
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
VOCÊ NÃO TEM CHAVES, de Fernanda D'Umbra
você não tem chaves
(eu não preciso)
você não tinge os
cabelos
(eu tinjo, se eu
quiser, mas tá legal assim)
você não tem
carteira assinada
(Deus me livre!)
você não tem patrão
(nunca tive, nunca
terei)
você não tem
cachorro
(eu viajo, não acho
justo)
você não tem
plantas
(eu viajo, não acho
justo)
você não tem filhos
(sou uma puta
madrastra, pode perguntar)
você não depende de
ninguém financeiramente
(eu sou uma
trabalhadora, uma mina normal)
você assusta,
Fernanda
(eu sei, eu sinto
muito)
(Ilustração: Loïc Allemand)
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Fernanda D'Umbra - Você não tem chaves
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
CANTEIRO, de Isabela Penov
Nessa maldita marmita sem mistura ele remexe o que atura todo dia
É meio dia, arroz, feijão e agonia requentada já salgada com suor de tanta lida
Restos de ontem, carne fria de segunda e na segunda a sua carne sente o açoite e a ferida
A vida amarga sem tempero e o dia inteiro, o dia inteiro no canteiro semeando a força bruta
“A vida é luta, a vida é luta” já dizia a sua avó
E aquele nó bem na garganta não desfaz mas disfarça a cada passo a vontade de gritar
Farinha seca, terra seca, gente seca, sua terra, sua gente, e a saudade lentamente triturada entre seus dentes
Palita os dentes com os ponteiros do relógio, cospe o ódio, engole o ócio e canta um verso num minuto que sobrar.
E num lugar onde ninguém sabe o seu nome ao fim do dia à revelia uma pergunta lhe consome:
quem escolhe o que come?
quem escolhe o que come?
quem escolhe o que come?
Em meio a ordens tem que mastigar a vida, digerir toda a comida, as feridas mais doídas, sua classe e sua cor
Uns comprimidos, a tevê e a bebida não dão conta de prender e segurar dentro do peito esse viver doído e estreito de trabalho e desamor
E ele vomita cada dia então perdido, os pedidos que não fez, os sóis e céus que não viu, as paisagens que perdeu, os minutos que engoliu
Em meio à bile escorreram da sua boca dois mil sóis meio apagados paga dos dias passados que ele nunca viu passar
E foi cuspindo um triste grito sem medida, umas lágrimas contidas, todas as contas vencidas e as que nunca vai pagar; suas olheiras, a xepa do fim da feira, a canseira, a bebedeira, os trocados amassados na carteira, a chuteira pendurada, a bem amada que se foi sem ter porquê
Enxuga os lábios com uns versos amassados que ele fez nos intervalos com a esperança de alguém ler.
Quando menino ele sonhava em ser poeta, mas a vida é incerta, e a mão semianalfabeta sucumbiu ao desatino, vendeu o sonho menino por moedas no batente
Ingenuamente achou que vender os sonhos lhe daria outra vida de comida mais decente
Sem esperança, esqueceu que foi criança e entrou na contradança da máquina de moer gente.
Toca a sineta então na terça como um tiro de escopeta no seu peito de poeta que não foi e nem será
Abre a marmita mirrada de todo dia, arroz feijão e agonia, outro dia a lhe gastar
E num lugar onde ninguém sabe o seu nome é que ele come mas a fome lhe consome ao fim do dia
Dentro do estômago e do peito ele tem fome e não é fome de pão, é fome de poesia.
Entre o arroz e um pirão meio mal feito, a barriga, a mente e o peito roncam a dor que carcome
E num lugar onde ninguém sabe o seu nome ao fim do dia em rebeldia uma pergunta lhe consome:
quem escolhe o que come?
quem escolhe o que come?
quem escolhe o que come?
(Ilustração: Jean Béraud - inverno)
sábado, 17 de janeiro de 2015
SONETILHO DE VERÃO, de Paulo Henriques Brito
Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A ideia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.
O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.
(Trovar Claro)
(Ilustração: afresco de Pompeia)
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Paulo Henriques Brito - Sonetilho de verão
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
HEILIGENSTÄDTER TESTAMENT / O TESTAMENTO DE HEILIGENSTADT(1), de Ludwig Van Beethoven
O ihr Menschen, die ihr mich für feindselig, störrisch oder misantropisch haltet oder erkläret, wie unrecht tut ihr mir; ihr wißt nicht die geheime Ursache von dem, was euch so scheinet; mein Herz und mein Sinn waren von Kindheit an für das zarte Gefühl des Wohlwollens, selbst große Handlungen zu verrichten, dazu war ich immer aufgelegt, aber bedenket nur, daß seit 6 Jahren ein heilloser Zustand mich befallen, durch unvernünftige Ärzte verschlimmert, von Jahr zu Jahr in der Hoffnung, gebessert zu werden, betrogen, endlich zu dem Überblick eines dauernden Übels [daß durchstrichen] (dessen Heilung vielleicht Jahre dauern oder gar unmöglich ist) gezwungen, mit einem feuerigen, lebhaften Temperamente geboren, selbst empfänglich für die Zerstreuungen der Gesellschaft, mußte ich früh mich absondern, einsam mein Leben zubringen, wollte ich auch zuweilen mich einmal über alles das hinaussetzen, o wie hart wurde ich dur[ch] die verdoppelte traurige Erfahrung meines schlechten Gehör's dann zurückgestoßen, und doch war's mir noch nicht möglich, den Menschen zu sagen: sprecht lauter, schreit, denn ich bin taub, ach wie wär es möglich, daß ich dann die Schwäche eines Sinnes angeben sollte, der bei mir in einem vollkommenern Grade als bei andern sein sollte, einen Sinn, den ich einst in der größten Vollkommenheit besaß, in einer Vollkommenheit, wie ihn wenige von meinem Fache gewiß haben noch gehabt haben - o ich kann es nicht, drum verzeiht, wenn ihr mich da zurückweichen sehen werdet, wo ich mich gerne unter euch mischte; doppelt wehe tut mir mein Unglück, indem ich dabei verkannt werden muß, für mich darf Erholung in menschlicher Gesellschaft, feinere Unterredungen, wechselseitige Ergießungen nicht statt haben, ganz allein fast nur so viel, als es die höchste Notwendigkeit fodert, darf ich mich in Gesellschaft einlassen, wie ein Verbannter muß ich leben, nahe ich mich einer Gesellschaft, so überfällt mich eine heiße Ängstlichkeit, indem ich befürchte, in Gefahr gesetzt zu werden, meinen Zustand merken zu lassen - so war es denn auch dieses halbe Jahr, was ich auf dem Lande zubrachte, von meinem vernünftigen Arzte aufgefordert, so viel als möglich mein Gehör zu schonen, kam er [nur durchstrichen] fast meiner jetztigen natürlichen Disposition entgegen, obschon, vom Triebe zur Gesellschaft manchmal hingerissen, ich mich dazu verleiten ließ, aber welche Demütigung, wenn jemand neben mir stund und von weitem eine Flöte hörte, und ich nichts hörte; oder jemand den Hirten singen hörte, und ich auch nichts hörte; [Seite 2] solche Ereignisse brachten mich nahe an Verzweiflung, es fehlte wenig, und ich endigte selbst mein Leben - nur sie, die Kunst, sie hielt mich zurück, ach es dünkte mir unmöglich, die Welt eher zu verlassen, bis ich das alles hervorgebracht, wozu ich mich aufgelegt fühlte; und so fristete ich dieses elende Leben - wahrhaft elend; einen so reizbaren Körper, daß eine etwas schnelle Veränderung mich aus dem besten Zustande in den schlechtesten versetzen kann - Geduld - so heißt es, sie muß ich nun zur Führerin wählen, ich habe es - dauernd, hoffe ich, soll mein Entschluß sein auszuharren, bis es den unerbittlichen Parzen gefällt, den Faden zu brechen, vielleicht geht's besser, vielleicht nicht, ich bin gefaßt - schon in meinem 28. Jahre gezwungen, Philosoph zu werden, es ist nicht leicht, für den Künstler, schwerer als für irgend jemand - Gottheit, du siehst herab auf mein Inneres; du kennst es, du weißt, daß Menschenliebe und Neigung zum Wohltun drin hausen, - o Menschen, wenn ihr einst dieses leset, so denkt, daß ihr mir unrecht getan, und der Unglückliche, er tröste sich, einen seinesgleichen zu finden, der trotz allen Hindernissen der Natur, doch noch alles getan, was in seinem Vermögen stand, um in die Reihe würdiger Künstler und Menschen aufgenommen zu werden - ihr meine Brüder Carl und [Johann fehlt], sobald ich tot bin, und Professor Schmid lebt noch, so bittet ihn in meinem Namen, daß er meine Krankheit beschreibe, und dieses hier geschriebene Blatt füget ihr dieser meiner Krankengeschichte bei, [ein unleserliches Wort durchstrichen] damit wenigstens so viel als möglich die Welt nach meinem Tode mit mir versöhnt werde - zugleich erkläre ich euch beide hier für [meinen durchstrichen] die Erben des kleinen Vermögens, (wenn man es so nennen kann) von mir, teilt es redlich, und vertragt und helft euch einander; was ihr mir zuwider getan, das wißt ihr, war euch schon längst verziehen, dir Bruder Carl danke ich noch insbesondere für deine in dieser letztern spätern Zeit mir bewiesene Anhänglichkeit; mein Wunsch ist, daß [ich durchstrichen] euch ein bessers sorgen[volleres durchstrichen] loseres Leben als mir werde, empfehlt euren [nach durchstrichen] Kindern Tugend, sie nur allein kann glücklich machen, nicht Geld, ich spreche aus Erfahrung, sie war es, die mich selbst im Elende gehoben, ihr danke [Seite 3] ich nebst meiner Kunst, daß ich durch keinen Selbstmord mein Leben endigte - lebt wohl und liebt euch, - allen Freunden danke ich, besonders Fürst Lichnowski und Professor Schmid. Die Instrumente von Fürst L. wünsche ich, daß sie doch mögen aufbewahrt werden bei einem von euch, doch entstehe deswegen kein Streit unter euch, sobald sie euch aber zu was nüzlicherm dienen können, so verkauft sie nur, wie froh bin ich, wenn ich auch noch unter meinem Grabe euch nützen kann - so wär's geschehen - mit Freuden eil ich dem Tode entgegen - kömmt er früher, als ich Gelegenheit gehabt habe, noch alle meine Kunst-Fähigkeiten zu entfalten, so wird er mir trotz meinem harten Schicksal doch noch zu frühe kommen, und ich würde ihn wohl später wünschen - doch auch dann bin ich zufrieden, befreit er mich nicht von einem endlosen, leidenden Zustande? - komm, wann du willst, ich gehe dir mutig entgegen - lebt wohl und vergeßt mich nicht ganz im Tode, ich habe es um euch verdient, indem ich in meinem Leben oft an euch gedacht, euch glücklich zu machen, seid es -
Ludwig van Beethoven
Heiglnstadt
am 6ten October 1802
Tradução de Manuel Malzbender:
Ó vós, humanos, que me julgais ou declarais hostil, obstinado ou misantropo, como sois injustos para comigo, pois não sabeis as causas secretas que me forçam a parecer como tal, desde a infância que o meu coração e o meu espírito se inclinam para o terno sentimento da afeição, e sempre estive disposto a realizar grandes actos, mas considerai que nos últimos seis anos me tem atormentado um estado lastimável, agravado por médicos incompetentes, de ano para ano iludido com a esperança de melhorar, e, finalmente, forçado a encarar a perspectiva de um mal permanente (cuja cura poderá durar anos se não for de todo impossível), nascido com um temperamento vivo e ardente, sensível até às distracções da sociedade, cedo tive de me isolar dela e passar a minha vida em solidão, e quando por vezes quis superar tudo isto, oh como fui duramente repelido pela redobrada triste experiência da minha surdez, contudo não me foi possível dizer às pessoas: falai mais alto, gritai, pois eu sou surdo, ah como poder divulgar a fraqueza desse sentido que eu deveria possuir num grau mais perfeito do que os outros, um sentido que outrora possuíra na sua maior perfeição, numa perfeição que certamente só poucos na minha profissão possuem ou possuíram - oh, não posso, por isso perdoai-me quando vereis que me retiro, eu que gostaria tanto de me juntar a vós, a minha desventura é duplamente penosa pois, devido a ela, sou obrigado a ser mal julgado, para mim já não poderá existir prazer na vida em sociedade, nem conversações distintas, nem mútuas confissões, só me é permitido juntar-me à sociedade quando uma estrita necessidade o exige, sou obrigado a viver como um exilado, quando me aproximo de um grupo de pessoas aflige-me uma ardente angústia, com receio de correr perigo de dar a perceber o meu estado - assim vivi este meio ano que passei no campo, seguindo o conselho de um médico sensato, a poupar o mais possível o meu ouvido, o que quase correspondia à minha actual disposição natural, embora por vezes arrastado pela necessidade de companhia me deixasse seduzir, mas que humilhação, quando alguém ao meu lado ouvia o som longínquo de uma flauta, enquanto eu nada ouvia, ou quando alguém escutava o canto do pastor, e eu mais uma vez nada ouvia, esses acontecimentos levaram-me quase à beira do desespero, e pouco faltou para eu ter posto um fim à minha vida - só ela, a arte, me deteve, ah pareceu-me impossível abandonar o mundo antes de ter produzido tudo aquilo para o qual me sentia predisposto, e assim prolonguei esta vida miserável — verdadeiramente miserável, com este corpo de tal modo frágil, que qualquer mudança súbita consegue fazer passar do melhor estado ao pior — paciência —, sim, é ela que terei então de escolher como guia, dizem, e assim o fiz - espero que a minha resolução de perseverar seja duradoura, até ao momento em que as impiedosas Parcas desejem quebrar o fio, talvez melhore, talvez não, mas estou sereno - apenas com 28 anos forçado a ser filósofo, não, não é fácil, e para um artista muito mais difícil do que para qualquer outro — Deus! tu contemplas do alto a minha alma, conhece-la, sabes que o amor ao próximo e a vontade de fazer bem residem nela, ó humanos, quando um dia lerdes isto, pensai que fostes injustos para comigo, e que o desditoso se console por ter encontrado alguém como ele, que, apesar de todos os obstáculos da natureza, fez sempre tudo o que esteve no seu poder para pertencer ao mundo dos homens e artistas dignos — vós, ó meus irmãos Karl e Johann, logo que eu tiver morrido e o professor Schmid ainda estiver vivo, pedi-lhe em meu nome que descreva o meu mal, e juntai esta folha escrita à história da minha moléstia, para que ao menos o mundo se reconcilie tanto quanto possível comigo - ao mesmo tempo declaro-vos ambos herdeiros da minha pequena fortuna (se for permitido chamar-lhe assim), reparti-a honestamente, entendei-vos e ajudai-vos um ao outro, o que me fizestes de mal, isso vós o sabeis, já vos perdoei há muito, a ti irmão Karl agradeço particularmente a dedicação que por mim tens demonstrado nos últimos tempos, o meu desejo é que tenhais uma vida melhor e com menos preocupações que a minha, recomendai aos vossos filhos a virtude, apenas ela poderá dar felicidade, não o dinheiro, falo por experiência própria, foi ela que me ergueu da miséria, só a ela devo, como à minha arte, não ter terminado em suicídio a minha vida - adeus e amai-vos um ao outro -, agradeço a todos os amigos, nomeadamente ao príncipe Lichnowski e ao professor Schmidt. — Desejo que os instrumentos musicais do príncipe L. sejam guardados por um de vós, mas que nenhuma disputa surja entre vós por causa disso, porém, logo que vos possam servir para algo mais útil, vendei-os, como fico feliz ao saber que, mesmo debaixo do meu túmulo, vos poderei valer - então, assim seja - caminho com alegria ao encontro da morte - se ela vier antes de eu ter tido a oportunidade de realizar todas as minhas capacidades artísticas, então terá chegado cedo de mais, apesar do meu triste destino, e eu desejaria que a minha morte tardasse — no entanto também ficarei satisfeito se ela vier logo, pois não me libertará ela de um estado de tormento infinito? — Vem, quando quiseres, com coragem te enfrentarei — adeus, e não me esqueçais inteiramente depois da minha morte, bem o mereço da vossa parte, pois pensei muitas vezes em vós durante a minha vida, desejando fazer-vos felizes, sede-lo --
Ludwig van Beethoven.
Heiligenstadt, 6 de
outubro de 1802
[1] A tradução aqui apresentada respeita a
pontuação e a sintaxe descontínua do Testamento, evitando assim a imposição ao
texto de uma calma e coerência que o original não possui. (N. do T.)
(Dois Mil e Quatro.
Antologia literária)
(Ilustração: John Michael Carter - la pianiste)
domingo, 11 de janeiro de 2015
TERAPIA, de Izacyl Guimarães Ferreira
Esse passado é meu. Posso mudá-lo.
Posso esconder um corpo e duas lágrimas,
posso fechar os olhos e esperar de novo.
Posso até mudar de nome.
Posso deixar no escuro uma cidade,
secar o mar em meu lenço,
apagar palavras do pensamento.
(Ia escrevendo a seguir:
Este presente hoje ainda, amanhã ontem,
posso inventá-lo.
O que me aflige é que é só isso o que eu
posso fazer.
Mas não era isto o que eu queria dizer.)
Esse passado é meu. Posso salvar
um sonho ou dois
enquanto a amiga enxuga os olhos.
Posso gravar meu nome numa pedra,
posso dizer perdão, amor,
posso deixar
que um tempo morra sem morrer por ele.
Esse passado é meu. Posso adiá-lo.
(Declaração de Bens - 1980)
(Ilustração:Virginia Derriberry)
Marcadores:
Izacyl Guimarães Ferreira - Terapia
quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
TEMPO É TERNURA, de Fabrício Carpinejar
Viver tem sido adiantar o serviço do dia seguinte. No domingo, já estamos na segunda, na terça já estamos na quarta e sempre um dia a mais do dia que deveríamos viver. Pelo excesso de antecedência, vamos morrer um mês antes.
Está na hora de encarar a folha branca da agenda e não escrever. O costume é marcar o compromisso e depois adiar, que não deixa de ser uma maneira de ainda cumpri-lo.
Tempo é ternura.
Perder tempo é a maior demonstração de afeto. A maior gentileza. Sair daquele aproveitamento máximo de tarefas. Ler um livro para o filho pequeno dormir. Arrumar as gavetas da escrivaninha de sua mulher quando poderia estar fazendo suas coisas. Consertar os aparelhos da cozinha, trocar as pilhas do controle remoto. Preparar um assado de 40 minutos. Usar pratos desnecessários, não economizar esforço, não simplificar, não poupar trabalho, desperdiçar simpatia.
Levar uma manhã para alinhar os quadros, uma tarde para passar um paninho nas capas dos livros e lembrar as obras que você ainda não leu. Experimentar roupas antigas e não colocar nenhuma fora. Produzir sentido da absoluta falta de lógica.
Tempo é ternura.
O tempo sempre foi algoz dos relacionamentos. Convencionou-se explicar que a paixão é biológica, dura apenas dois anos e o resto da convivência é comodismo.
Não é verdade, amor não é intensidade que se extravia na duração.
Somente descobriremos a intensidade se permitirmos durar. Se existe disponibilidade para errar e repetir. Quem repete o erro logo se apaixonará pelo defeito mais do que pelo acerto e buscará acertar o erro mais do que confirmar o acerto. Pois errar duas vezes é talento, acertar uma vez é sorte.
Acima da obsessão de controlar a rotina e os próximos passos, improvisar para permanecer ao lado da esposa. Interromper o que precisamos para despertar novas necessidades.
Intensidade é paciência, é capricho, é não abandonar algo porque não funcionou. É começar a cuidar justamente porque não funcionou.
Casais há mais de três décadas juntos perderam tempo. Criaram mais chances do que os demais. Superaram preconceitos. Perdoaram medos. Dobraram o orgulho ao longo das brigas. Dormiram antes de tomar uma decisão.
Cederam o que tinham de mais precioso: a chance de outras vidas. Dar uma vida a alguém será sempre maior do que qualquer vida imaginada.
(Zero Hora/ Porto Alegre (RS), 21/06/2011)
(Ilustração: Balthus - the card game)
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Fabrício Carpinejar - Tempo é ternura
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
LÚCIA, de Castro Alves
Na formosa estação da primavera
Quando o mato se arreia mais festivo,
E o vento campesino bebe ardente
O agreste aroma da floresta virgem...
Eu e Lúcia, corríamos — crianças —
Na veiga, no pomar, na cachoeira,
Como um casal de colibris travessos
Nas laranjeiras que o Natal enflora.
Ela era a cria mais formosa e meiga
Que jamais, na Fazenda, vira o dia ...
Morena, esbelta, airosa... eu me lembrava
Sempre da corça arisca dos silvados
Quando via-lhe os olhos negros, negros
Como as plumas noturnas da graúna,
Depois... quem mais mimosa e mais alegre?...
Sua boca era um pássaro escarlate
Onde cantava festival sorriso.
Os cabelos caíam-lhe anelados
Como doudos festões de parasitas...
E a graça... o modo... o coração tão meigo?!...
Ai! Pobre Lúcia... como tu sabias,
Festiva, encher de afagos a família,
Que te queria tanto e que te amava
Como se fosses filha e não cativa...
Tu eras a alegria da fazenda;
Tua senhora ria-se, contente
Quando enlaçavas seus cabelos brancos
Co'as roxas maravilhas da campina.
E quando à noite todos se juntavam,
Aos reflexos doirados da candeia,
Na grande sala em torno da fogueira,
Então, Lúcia, sorrindo eu murmurava:
"Meu Deus! um beija-flor fez-se criança...
Uma criança fez-se mariposa!"
Mas um dia a miséria, a fome, o frio,
Foram pedir um pouso nos teus lares...
A mesa era pequena... Pobre Lúcia!
Foi preciso te ergueres do banquete
Deixares teu lugar aos mais convivas...
....................................................
Eu me lembro... eu me lembro... O sol raiava.
Tudo era festa em volta da pousada...
Cantava o galo alegre no terreiro,
O mugido das vacas misturava-se
Ao relincho das éguas que corriam
De crinas soltas pelo campo aberto
Aspirando o frescor da madrugada.
Pela última vez ela chorando
Veio sentar-se ao banco do terreiro...
Pobre criança! que conversas tristes
Tu conversaste então co'a natureza.
"Adeus! pra sempre, adeus, ó meus amigos,
Passarinhos do céu, brisas da mata,
Patativas saudosas dos coqueiros,
Ventos da várzea, fontes do deserto! ...
Nunca mais eu virei, pobres violetas,
Vos arrancar das moitas perfumadas,
Nunca mais eu irei risonha e louca
Roubar o ninho do sabiá choroso...
Perdoai-me que eu parto para sempre!
Venderam para longe a pobre Lúcia!..."
Então ela apanhou do mato as flores
Como outrora enlaçou-as nos cabelos,
E rindo de chorar disse em soluços:
"Não te esqueças de mim que te amo tanto..."
................................................................
Depois além, um grupo, informe e vago,
Que cavalgava o dorso da montanha,
Ia esconder-se, transmontando o topo. . .
Neste momento eu vi, longe... bem longe,
Ainda se agitar um lenço branco...
Era o lencinho tremulo de Lúcia...
Epílogo
Muitos anos correram depois disto ...
Um dia nos sertões eu caminhava
Por uma estrada agreste e solitária,
Diante de mim u'a mulher seguia,
— Co'o cântaro à cabeça — pés descalços,
Co'os ombros nus, mas pálidos e magros ...
Ela cantava, com uma voz extinta,
Uma cantiga triste e compassada ...
E eu que a escutava procurava, embalde,
Uma lembrança juvenil e alegre
Do tempo em que aprendera aqueles versos...
De repente, lembrei-me. . . "Lúcia! Lúcia!"
... A mulher se voltou ... fitou-me pasma,
Soltou um grito. . . e, rindo e soluçando,
Quis para mim lançar-se, abrindo os braços.
... Mas súbito estacou ... Nuvem de sangue
Corou-lhe o rosto pálido e sombrio ...
Cobriu co'a mão crispada a face rubra
Como escondendo uma vergonha eterna...
Depois, soltando um grito, ela sumiu-se
Entre as sombras da mata... a pobre Lúcia!
(Os Escravos)
(Ilustração: Jean-Baptiste Debret - sala de jantar)
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
CARTAS A UM JOVEM POETA (PRIMEIRA CARTA), de Rainer Maria Rilke
Paris, 17 de fevereiro de 1903
Prezadíssimo Senhor,
Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizívies quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.
Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e carregue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.
Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o Senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de sua consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.
Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.
Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.
Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.
Com todo o devotamento e toda a simpatia.
(Cartas a um jovem poeta, tradução de Paulo Rónai)
(Ilustração: Vladimir Kush - pillow book)
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