quarta-feira, 30 de abril de 2014

UM CREDOR DA FAZENDA NACIONAL, de Qorpo Santo





PERSONAGENS:


Credor


Porteiro


Um Major


Um Contínuo


Empregados da repartição


Outro credor


Leopoldino, Contador


Chefe de secção


Sr. Barbosa


ATO PRIMEIRO


UM CREDOR – (entrando em uma repartição pública; para o Porteiro) – Está o Sr. Inspetor?


PORTEIRO – Está; mas não se lhe pode agora falar.


CREDOR – Por quê?


PORTEIRO – Está muito ocupado!


CREDOR – Em quê?


PORTEIRO – Tem gente aí com ele.


CREDOR – Quem é?


PORTEIRO – Um Major!


CREDOR – Demorar-se-á muito?


PORTEIRO – Ignoro.


CREDOR – Pois diga-lhe que lhe quero falar!


PORTEIRO – Não posso ir lá agora.


CREDOR – Quantas horas estarei eu aqui à espera que o Sr. Major saia para que eu entre! 



(Passeia). (O MAJOR, saindo e encontrando-se com o Credor.) 



CREDOR (para o MAJOR) – Oh! O Sr. por aqui! Julgava-o quem sabe onde! Disseram-me que tinha ido para Rio Pardo há dias!


MAJOR – Tenho tido aqui numerosos afazeres, por isso não sei quando irei.


CREDOR – Fique certo que sinto o mais vivo prazer em vê-lo no gozo da mais perfeita saúde.


MAJOR – Onde é aqui a tesouraria?


CREDOR – Na Tesouraria estamos; mas o Tesoureiro está lá embaixo.


PORTEIRO – Lá, não; lá está o pagador!


CREDOR – Ah! Então é cá em cima; porém nos fundos; creio que na última sala.


MAJOR – Então para lá vou. (Segue.)


CREDOR – Agora entro eu. (Dirigindo-se à repartição.)


PORTEIRO – Está lá o Sr. Leopoldino Contador!


CREDOR – Ë célebre! Então vou à secção respectiva saber se foi informado o meu requerimento! (Caminha, e entra.)


PORTEIRO – Que diabo de homem este! Tem vindo mais de um cento de vezes à repartição... se há de...


CONTÍNUO – Faz ele muito bem [em] vir cá ! Deve-se-lhe, por que não se lhe há de pagar?


CONTÍNUO – Homem; isso é verdade! Qual a razão por que esta repartição há de paliar meses e anos!?


PORTEIRO – Custa a crer a retardação de pagamento ou a preguinha, segundo dizem alguns empregados!


CONTÍNUO – O caso é que ele tem procedido sempre com a maior prudência!


PORTEIRO – Isso é verdade. Mas quantos terão sofrido pela falta de cumprimento de deveres de alguns funcionários públicos?


CONTÍNUO – Ë verdade! Tem havido tantos males, que enumerá-los talvez fosse impossível.


PORTEIRO – Mas tu sabes o que os empregados querem? Talvez não saibas. Pois eu te digo: 


1º – Acabar com a Monarquia Constitucional e Representativa!


2º - Pôr termo às repartições públicas; isto é, acabarem com todas estas imposturas!


3º - Mudar a forma de governo para República.


4º - Fazerem uma liga entre todos que...


CONTÍNUO – (pondo as mãos na cabeça e puxando as orelhas) – Estás louco! Homem! D’onde vieram-te esses pensamentos!? Se não mudas de modo de pensar, vais parar à Caridade. 


PORTEIRO – Ah! Tu não ouves! És surdo! Não vês. Tens olhos e não enxergas! 


Ouvidos, e não ouves! Só falas! Tu verás a revolução que em breve se há de operar! Olha; eu estou vendo o dia em que entra por aqui uma força armada; vai aos cofres, papéis. E rouba quanto neles se acha. Acende um facho, e laça fogo em tudo quanto é papéis.


CONTÍNUO – (a correr) – Ih! Ih! Ih! Parece que já estou ouvindo o tinir das espadas! A voz do canhão troar. Deus meu! Acudi-me! Ai! Que eu morro! (Cai sentado.)Ai! Ai! Estou cansado! Fadigado! Quase... Meu Deus! Quantas mortes vos aprazerá ainda fazer!? Quando vos compadecereis de vossos entes ainda que maus!? Quando se aplacará a vossa ira!? Quando se saciará a vossa vingança! Céus! Que vejo! (Como amparado com as mãos; pondo o corpo de lado; ao ouvir o som da trovoada que em cima se faz.) Ah!...


PORTEIRO - (querendo acudi-lo) – Não é nada, companheiro e amigo! São os primeiros preparativos para a estralada que logo mais terá de ver e ouvir. Tranquiliza o teu coração. Ainda não desceram raios, fogo, e tudo o mais que se há preparado para grande revolução! Começará de cima; e descerá à terra, como a saraiva em certos dias chuvosos. (Ouve-se nova trovoada; relâmpagos.)


CONTÍNUO – (melhorando pouco; e levantado-se)- Acho-me um pouco mais animado? Parece-me que isto não é comigo. Que dizes? Hem? (batendo no ombro do porteiro.) Que diabo, pois eu nada fiz, o que devo temer!? Sou muito pusilânime.


PORTEIRO – Tu sempre foste um poltrão. De tudo te assustas; de tudo tens medo! Diabo! (Empurra-o) Toma juízo! Deixa-te de...


CONTÍNUO – Ora, ora! E não entendo o que é ter juízo, pelo que vejo, e pelo que ouço. Vivo em minha casa. Trabalho incessantemente em proveito meu, e da minha família. Não ofendo a pessoa alguma! Sucede-me isto! Dizei-me: - O que é ter juízo?


PORTEIRO – Ter juízo é cometer... e... ai!ai! (pondo as mãos no rosto) que também estou ficando doente!


CREDOR (voltando) – Ainda hoje não recebo dinheiro! Prometeu-me um Empregado, e a mais um indivíduo que espera... Como de... (Sai.) Veremos se se pode receber segunda-feira!


UM DOS EMPREGADOS – Por que razão não se há de pagar a este homem!?


OUTRO – Eu sei disso!?


CREDOR –(voltando) – Não tenho melhor resolução a tomar, que a de sentar-me em uma das cadeiras desta repartição e nela esperar até que se me pague.


CERTO INDIVÍDUO – Então, por quê?


CREDOR - Ora, porque!? Porque não dou um passo que não encontre um que não me peça o aluguel da casa. Outro, que não me peça... que não me fale!...


O INDIVÍDUO – Tudo isso é bom!


CREDOR – É ; é; para certos indivíduos; para mim é péssimo! Nunca gostei de ser atacado em casa, quanto mais pelas ruas da cidade! Todos os que compelem a honra, ou aos que desejam viver com seriedade, - a essas cenas, - deveriam em minha opinião ficar condenados a idênticos; ou a outros procederes piores, contrários à sua vontade, ou desejos.


O INDIVÍDUO - (com a mão querendo fazer uma cruz) – Resquié d’impace! Resquié d’impassere; Amem! Amem! N’amem! N’amem! (Saindo). E vou m’embora (Sai)



ATO SEGUNDO



Salão em que trabalham diversas secções


CREDOR (entrando) – É a vigésima... não me lembro se quinta ou sétima vez que venho a esta casa haver aluguéis de casa! E talvez ainda hoje saia sem dinheiro! (À parte: ) Mas eles hão de se arranjar! (A um dos empregados, o Contador: ) Vossa Senhoria faz-me o obséquio de dizer se está despachando o conteúdo, ou quer que seja, quando a um requerimento que aqui tenho?


CONTADOR – Será... (lendo) Castro... Car... Cirilo, Dilermando!?


CREDOR – Não! É um requerimento meu, assinado – José Joaqim de Qampos Leão, Qorpo-Santo.


CONTADOR – Ah! Esse está no chefe da quarta secção.


CREDOR – Bem, então lá irei.(Dirigindo-se ao chefe: )Faz-me o obséquio de dizer se já está despachado um requerimento que aqui tenho?


CHEFE (apontando) – Fale ali com o Sr. Barbosa.


CREDOR (dirigindo-se a este) – Ainda não encontrou o que procurava a meu respeito?


BARBOSA – Ainda não! Há aqui tantos papéis!


CREDOR – Ora, com efeito! Pois tanto custa ver um ofício da Presidência, ou ver o assentamento que em virtude desse ofício deve existir no livro competente? Isto é, no mesmo em que se acham debitados tais aluguéis!? (Senta-se.)


CHEFE – V. Exa. Não adianta nada em esperar aqui! Antes atrasa o serviço para conseguir o que quer; deixe estar que está se trabalhando!


CREDOR – Eu, nem venho interromper, nem venho adiantar! Mas apenas saber! Parece-me cousa tão simples; tão fácil...


BARBOSA – São três ofícios da Presidência que o Sr. Inspetor quer ver! Não é um só.


CREDOR – Srs., eu já sei o que hei de fazer, o que os Srs. querem! Voltarei em tempo! 


(Ao sair, encontra-se com outro.) 


O OUTRO – Então, não!? (Dá-lhe uma caixa de fósforos.)


CREDOR – Estou doente; e assim fico todas as vezes que venho a esta casa, e dela saio sem dinheiro!


O OUTRO – Então fico eu pelo Sr.! (O Credor sai; e o Outro entra.)


O OUTRO – Muito custa esta casa pagar a quem deve! Faz-se uma dúzia de requerimentos para se obter um despacho! Cada requerimento leva outra dúzia de informações! O despacho definitivo obtém-se por milagre! E a paga ou dinheiro que a alguém se deve – quase à força, ou pela força!


UM DOS EMPREGADOS – (para esse Indivíduo) – Com efeito! O Sr. é audaz de mais!


O OUTRO – Não! Não é por audácia! É apenas referir o que se passa... o que é verídico!


EMPREGADO – Sim; mas nós não temos culpa!


O OUTRO- Nem eu inculpo a alguém! Mas receio, Srs., que os numerosos incômodos que tenho sofrimento, pelo procedimento que esta repartição para comigo – vai tendo; os vexames; as faltas; as privações; e até as enfermidades que tem me causado e numerosos outros transtornos, farão de repente com que se espalhe fogo nestes papéis – e tudo se incendie (Toca uma caixa de fósforos numa mesa; esta incendeia-se; ele a atira para as mesas de um dos lados; faz o mesmo à outra, e atira para outro lado; enquanto os empregados trabalham para apagar o fogo em alguns papéis que começam a incendiar-se, ele sai.)


(Já se vê que há descompostura; repreensões; atropelamento, carreiras em busca d’ água; ligeireza para se apagar; aparecimento de alguns outros empregados, ao ouvirem o grito de fogo, etc. Pode acabar assim; ou com a cena da entrada do Inspector, repreendendo a todos pelo mal que cumprem seus deveres; e terminando por atirarem com livros e penas; atracações e descomposturas etc.)




(A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro: http://www.bibvirt.futuro.usp.br)



(Ilustração: Francis Bacon)






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