sexta-feira, 13 de setembro de 2013
SETEMBRO É DE ALLENDE, de Antonio Skarmeta
Salvador Allende não era um guerrilheiro
que um dia desceu da montanha, nem um profeta alucinado que desembarcou de uma
arca com anjos armados até os dentes, nem um poeta irrealista que confundia
nuvens com tanques. Era mais parecido com um cidadão comum. Não uma aparição
súbita, mas alguém que esteve aí perto de sua vida todos os dias.
O mundo o recorda nos 40 anos de sua morte
no palácio presidencial La Moneda, do Chile, como um revolucionário. Para os
chilenos, sua "revolução" não era o exercício da violência para
"fazer parir" a história, mas a paciente e trabalhosa luta de uma
vida para alcançar a presidência da república, em 1970, que lhe permitisse dar
uma forma a seu sonho e ao da sociedade que representava: promover um
socialismo democrático - com todas as liberdades permitidas - original em seu
desenho e, portanto, diferente dos socialismos e comunismos estabelecidos no
mundo. Com voz marcadamente folclórica, Allende a chamou de "uma revolução
com gosto de empanada e vinho tinto".
Sua carreira política era a de um
funcionário exemplar - havia percorrido todas as instituições da república. Foi
ministro de Estado, deputado, senador e, antes de ser eleito para governar o
país, havia sido nada menos do que presidente do Senado, a suprema instituição
que cria as leis, o foco luminoso de legitimidade democrática onde estão
representados os diversos partidos para dar ao país uma condução republicana e
consensual. Antes de ser presidente do Chile, ele percorreu as instituições da
república e se sentia orgulhoso do país onde a Constituição regia a vida do
povo e queria acatar essas leis que a república criava.
Essa Constituição permitiu que, em 1970,
Salvador Allende fosse eleito com uma maioria relativa e depois ratificado pelo
Senado como presidente do Chile. Àquela altura, o povo o conhecia bem: era um
político tarimbado e voluntarioso, fora candidato a presidente três vezes, em
1952, em 1958 e em 1964. Às vezes, perdeu por muito, mas às vezes, por muito
pouco. Jamais desenhou outra estratégia senão as urnas e o voto popular para
chegar ao governo. Antes de ser eleito presidente, ele emitiu sua mais célebre
autoironia. Ele traçou seu próprio epitáfio: "Aqui jaz Salvador Allende,
futuro presidente do Chile".
Allende foi personagem de meus romances em
várias ocasiões. Destacadamente em A Garota do Trombone, obra que justamente
culmina com a celebração popular de seu triunfo eleitoral, em 1970, e se dedica
contundentemente a outros momentos mais íntimos e mais cálidos do
"mito". Allende, médico por profissão, visita a jovem protagonista e
narradora do romance, que está enferma, muito antes de ser o trágico herói
mundial de 1973.
A ação desse romance transcorre no ano de
1958, justamente quando a popularidade do candidato socialista é enorme e a
direita vê com pavor o fato de um "comunista" ter tantas chances de
vencer a eleição que desenha uma estratégia audaciosa para tirar-lhe votos. Ela
"inventa" um candidato de pitoresca atração popular, armado com um
discurso não menos esquerdista que Allende, mas com a vantagem de não ser um
tribuno marxista, mas um simpático padre de povoado, Catapilco, absolutamente
inofensivo, mas com um carisma na esquerda "inocente" que serve às
maravilhas a seu objetivo eleitoral.
Os números finais dos concorrentes de 1958
que realmente importam são estes: o candidato da direita, Jorge Allessandri,
teve 31,2% dos votos. Salvador Allende obteve 28,5%. E o padre de Catapilco,
3,3%. Milimetricamente o necessário para derrotar Allende. Era um tempo de
maquiavelismo folgazão. Eram os dias amáveis de A Garota do Trombone. A hábil
guerra das urnas. Allende está vivamente ativo no coração das disputas
eleitorais e acata a derrota amarga por pequena margem. Em 1973, porém, o
maquiavelismo lúdico se esfumaça: a direita conquistará com bombardeios,
tanques, ruptura institucional e ódio psicopata o que não pôde conseguir pelo
voto.
Allende tinha um físico - digamos, uma
expressão corporal - que transmitia calidez e certeza. Era uma pose soberana: o
olhar alerta, dentro de óculos de aros grossos e o peito inchado de pombo
orgulhoso. Era uma figura familiar e rotunda, a de alguém que representa a
história de um país ao qual serviu em tantas funções - talhado na nobreza dessa
tradição. Agora, aspirava conduzir essa tradição republicana para uma transformação
profunda que desse ao Chile soberania sobre seus recursos naturais e aos
trabalhadores uma porção maior na injusta repartição da riqueza.
Quando ele promoveu a nacionalização do
cobre, o Senado apoiou a medida por unanimidade. Ninguém queria ser renegado
como antipatriota. No entanto, quando veio o golpe de Augusto Pinochet, com a
consequente supressão do Senado, a primeira coisa que se decretou foi a
"desnacionalização" do cobre. Isto é, o "soldo do Chile"
passou de novo para companhias privadas e investidores estrangeiros.
Alguém poderia perguntar espantado por que
se tem do Chile uma memória tão viva e emocional em quase todo o mundo
ocidental, quando há tantos outros países que sofreram atropelos, repressões
bárbaras e violações dos direitos humanos semelhantes. Países que também
praticaram o "terrorismo de Estado" tal como o de Pinochet.
Minha resposta é que quando Allende se
tornou o primeiro "marxista" eleito democraticamente, os países
europeus, afetados por fortes crises e destinos incertos, viram nos episódios
do pequeno e longínquo Chile sinais que poderiam ser significativos na Europa.
Na Espanha ainda estava Franco. Na França, Mitterrand estava muito longe de
chegar ao poder. Na Alemanha, os "verdes" ainda não haviam se
constituído como partido. A atenção da Europa se concentrou em meu país com
curiosidade, simpatia e ternura. O que ele oferecia não poderia ser mais
desejável, um "socialismo democrático e pela via pacífica". E, quando
esse sonho foi arrebentado a canhonaços, eclodiu também a tristeza e a ira dos
cidadãos do mundo.
Grande parte dessa nobre imagem do Chile
como um país que quis percorrer com dignidade e alegria um caminho rumo a um
aprofundamento democrático tem a ver com a figura de Allende. Enfrentando um
mar de turbulências, ele tratou de levar em frente seu programa revolucionário
sem restringir a liberdade de ninguém, sem suprimir a oposição e sem reprimir
com violência os grupos insurreccionais que paralisavam o país.
Uma semana antes do golpe, eu fiz parte do 1
milhão de pessoas que desfilou diante dele para mostrar apoio e apreço. Entre
essa multidão era fácil distinguir um grupo de 500 jovens com passos marciais
gritando palavras de ordem de violência revolucionária e carregando sobre os
ombros um pedaço de madeira, no caso, um cabo de vassoura. Jovens que tinham a
ilusão de que poderiam defender seu presidente quando o golpe iminente chegasse
com armas. Os cabos que carregavam poderiam ter sido a metáfora de fuzis. Não.
Eram apenas isso: cabos de vassoura. A batalha de Pinochet foi contra um povo
desarmado.
Outro fator que contribuiu para a imensa
memória de Allende foi a dignidade de sua morte. Quando o Palácio de la Moneda
ficou à mercê dos aviões que o bombardeavam, ele fez seu último discurso.
"Pagarei com minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta
pátria". No entanto, nenhuma me calou mais fundo que esse sentido de
homenagem à paz, à ética e à responsabilidade republicana quando ele finalizou
dizendo: "Tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão, que pelo
menos será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a
traição".
"Pelo menos"... Ah, presidente.
Quanto "mais" há nesse "menos"! Os generais que o
derrotaram hoje fazem parte da ignomínia universal: seus nomes foram esquecidos
e, quando são recordados, o são apenas como ícones de horror e desumanidade. E
seu nome, Allende, seu "menos" continua inspirando homens e mulheres
do mundo que querem mais justiça, mais inclusão social, melhor repartição da
riqueza e verdadeira soberania nacional.
Os "golpistas", depois de seu
triunfo de 1973 sobre o povo desarmado, batizaram a avenida principal do bairro
mais rico do Chile de "Avenida 11 de Septiembre" para comemorar sua
façanha. Quarenta anos depois, até esse setor direitista e endinheirado da
população deu as costas ao mais fanático dos prefeitos pinochetistas, o coronel
Cristian Labbé, e elegeu uma vizinha do bairro, Josefa Errazuriz, que conseguiu
mudar o nome que ofendia os chilenos por sua designação tradicional, "Nueva
Providencia". Hoje, na memória dos chilenos, setembro não pertence a
Pinochet, mas a Allende.
(Tradução de Celso Paciornik; OESP -
11.9.2013)
(Ilustração: Salvador Allende; foto da internet, sem indicação de autoria)
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