quarta-feira, 4 de setembro de 2013
CORAÇÃO, de Francisco José Tenreiro
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
Saudades longas de palmeiras
vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o sol sensual pintou na
paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos do trigo
sem bocas
das ruas sem alegria com casas
cariadas
pela metralha míope da Europa e da
América
da Europa trilhada por mim negro de
coração em África.
De coração em África na simples
leitura dominical
dos períodos cantando na voz ainda
escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos
ardinas das cities boulevards e baixa da Europa
trilhada por mim Negro e por ti
ardina
cantando dizia eu em sua voz de
letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu Sporting ou não
ou antes ou talvez seja que desta
vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de
pinho;
oh as longas páginas do jornal do
mundo
são folhas enegrecidas de macabro
clube
com mourarias de facas e guernicas
de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de
África) –
Mac Gee cidadão da América e da
democracia
Mac Gee cidadão Negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e
do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração
endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do
seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores
vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e
também amarelas
na gama policroma da verdade do
Negro
na inocência de Mac Gee) – ;
três linhas no jornal como falso
cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito
seiva bruta dos poemas de Guillén
de coração em África com a
impetuosidade viril de I tôo am América
de coração em áfrica com as árvores
renascidas em todas estações nos belos poemas de Diop
de coração em África nos rios
antigos que o Negro conheceu e no mistério do Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo
Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo
da minha saudade do Congo de coração em África
de Coração em África ao meio-dia do
dia de coração em África
com o Sol sentado nas delícias do
zênite
reduzindo a pontos as sombras dos
Negros.
Amodorrando no próprio calor da
reverberação os mosquitos da nocturna picadela.
De coração em África em noites de
vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das
inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as
poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da
indiferença
mas que têm a beleza das rodas de
crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até
França
que cantam as volutas dos seios e
das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes
acesos.
De coração em África trilho estas
ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de
be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta sussura
olha o preto (que bom) olha um negro (óptimo) olha um mulato (tanto faz) olha
um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da
beira-mar
cheiro de maresias distantes e
areias distantes
com silhuetas de coqueiros
conversando baixinho à brisa da tarde
De coração em África na mão deste
Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do
caminho da cubata perdida na carapinha alvinitente;
de coração em África com as mãos e o
pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de
Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados
pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo
que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros
ou às riscas
e o coração entristece à beira-mar
da Europa
da Europa por mim trilhada de
coração em África;
e chora fino na arritmia de um
relógio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os
homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças
escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles que ninguém fala e
eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós
os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos
entre si.
Chora coração meu estala coração meu
enternece-te meu coração
de uma só vez (oh órgão feminino do
homem)
de uma só vez para que possa pensar
contigo em África
na esperança de que para o ano vem a
monção torrencial
que alagará os campos ressequidos
pela amargura da metralha e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de
prenhar as espigas de Trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas
destelhadas do último rincão da Terra
distribuíra o pão o vinho e o azeite
pelos alíseos;
na esperança de que às entranhas
hiantes de um menino antípoda
haja sempre uma túlipa de leite ou
uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
Deixa-me acreditar no grito de
esperança lançado pela paleta viva de Rivera
E pelos oceanos de ciclones frescos
das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero
másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do
mundo de coração em África.
(Obra Poética de
Francisco José Tenreiro, de São Tomé e Príncipe)
(Ilustração: Simon Mungai - hunter-out)
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